Wednesday, December 18, 2013

Uma Fada no Front


O jovem Braga

Muita gente não sabe, mas Rubem Braga, foi, durante quatro meses, redator do jornal Correio do Povo, de Porto Alegre.

Mais do que isso, o certamente maior cronista brasileiro (sempre levando em consideração que essas duas palavras, se não nasceram juntas, andam de mãos dadas) de todos os tempos manteve, nesse mesmo período de tempo, uma crônica diária na Folha da Tarde.

Quando o jovem escritor desceu do Lóide Brasileiro no Cais do Porto, nos primeiros dias de 1939, ele já tinha uma imensa folha corrida de serviços prestados à causa jornalística, em jornal do Rio, São Paulo, Minas e Pernambuco.

Sempre coerente em suas convicções políticas - de esquerda, embora não militante, Braga sempre fazia o arquétipico papel do defensor dos fracos e oprimidos, sempre estando do lado do mais fraco na hora de destilar sua verve no papel – não sem mesmo destilar, quando reclama ou cobra dos superiores, um pouco do seu simpático mau-humor.

Suas posições políticas no entanto, paquidermicamente incomodavam muita gente - ainda mais quando virou redator do semanário Diretrizes, de Samuel Wainer. Já sob a égide do Estado Novo, Braga era alvo da polícia secreta de Getúlio Vargas. Foi acossado pela ditadura que ele resolveu exilar-se no sul.

Mais precisamente em nosso curioso burgo açoriano, como diria Carlos Reverbel que foi quem recebeu nosso herói no cais.

(um parêntese: imagine você morar numa cidade onde os viajantes chegavam de paquete ou navio, e você ia recepcioná-los no cais. Imagine, Porto Alegre foi uma cidade legal)

Ao chegar no entanto, a polícia gaúcha havia recebido ordens de Filinto Miller para meter nosso intrépido cronista no xilindró.

Com a ajuda do dono do Correio, Breno Caldas perante o interventor do Estado, Cordeiro de Farias, o jornalista foi solto. Já em liberdade, Caldas convidou-o para integrar o quadro da extinta Companhia Jornalística Caldas Júnior.

O exílio de Rubem em Porto Alegre, uma quadra de relativo conforto em meio aos atribulados anos políticos do autor, durou quatro meses e 91 crônicas (publicadas na recém inaugurada Folha da Tarde). Uma rescolta desse material foi publicado, em 1994, num volume intitulado Uma Fada No Front*.

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Livro pouco conhecido, se comparado à maioria da obra do jornalista capixaba, ele tem uma peculiaridade: ao serem publicadas seriadamente, respectivamente datadas e em ordem de publicação, elas fogem à linguagem perene das conhecidas coletâneas do autor de O Conde e o Passarinho.

Aqui, a produção do velho Braga está inserido num contexto cronológico e local, já que o cronista glosa o mote das ruas da cidade de uma Porto Alegre bucólica e provinciana que se urbanizava, se industrializava e crescia para o céu (como mancheteia a primeira edição da Folha, de 1936), no final dos anos 30 e começo dos 40.

Mais do que isso, o material de Uma Fada no Front, quem sabe pela primeira vez, mostra Rubem Braga como cronista diário, e não como num conjunto homogêneo de crônicas cujo contexto reside na sua própria estética particular.

No livro, podemos ver a prosa de Rubem singrando uma sequência de fatos, travando conhecimento dos pequenos dramas e demandas do burgo açoriano de seu amigo, Carlos Reverbel e encontramos seu inconfundível estilo em textos que, a rigor, a não ser pelo valor histórico, não seriam destacados para uma coletânea.

Por coincidência, Braga chega às vésperas da Segunda Guerra Mundial, e o reflexo na comunidade tanto de Porto Alegre quanto do Vale dos Sinos é visível em textos como “Coloninho” “Fora do Barulho” “Guerra” e “Arianismo”. Ao mesmo tempo, ele explora esse paradoxo, amalgamando a vida do cotidiano com as notícias do front europeu, sempre com o apelo à paz, em sua nota humanista.

(mais um parêntese: cabe ressaltar que a Folha da Tarde, à época, sob influência da imprensa portenha, foi o primeiro a usar teletipos por aqui**, ou seja, havia uma espécie de comprometimento maior por parte do material factual em detrimento do meramente político, que era a tônica da imprensa porto-alegrense até o Estado Novo)

Contudo, a mais bela crônica do livro é, justamente, “Uma Fada no Front”, que reproduzo aqui:

Desta vez a primavera chegou no começo de setembro às ruas de Porto Alegre. Aí anda florindo pelas ruas batidas de sol, em marchas e cantos. É doce afastar os olhos das negras notícias que os jornais trazem da Velha Europa, é doce desligar o rádio de ondas curtas cheio de palavras de ódio e de mortes e simplesmente sair pela rua, pela nossa rua brasileira onde desfilam meninos, rapazes e moças. Em um escuro minuto do mundo estamos vivendo nesta cidade uma bela e mansa alvorada humana. Há uma ingenuidade matinal nessa festa de gente moça de uma terra moça. É um prazer puro ficar numa beira de calçada vendo esse desfile de rapazes e meninos de todas as raças, de lindas moças que avançam tão felizes no ritmo de sua marcha como se a marcha fosse uma dança simples e sincera. 

Ora, no meio dessas festas de Semana da Pátria eu quero pedir ao homem da rua de Porto Alegre que deixe um momento de acompanhar com os olhos o alegre desfile para contemplar com respeito e amizade essa figura modesta de mulher que faz e renova todo o milagre anti-geográfico da união nacional: a professora pública. Agora que tanta festa se faz com archotes e piras em simbolismos gregos eu quero lembrar essa figura humilde que, silenciosamente, em cada canto perdido do Brasil, vai passando, através dos tempos, para as mãos das gerações que amanhecem, todo o fogo e toda a luz do sentimento brasileiro. É uma fada burocrática, uma fada cotidiana, sempre mal-remunerada, uma fada que se integra na banalidade de nossa paisagem da classe média. Por isso mesmo nem a notamos. É, entretanto, uma fada – e é, hoje, sobretudo no Rio Grande do Sul, uma fada no front.

Trata-se de um front sentimental; mas não são os fronts sentimentais que marcam as linhas dos outros. Não se trata, sesse país de muitas terras e pouca gente, de conquistar terras, mas conquistar gentes; e gente só se conquista pelo coração. É gente de nossa terra que essa lutadora está conquistando para a nossa terra. Quando a sua mão passa, ternamente, pela cabeça áspera de um pretinho ou na cabecinha macia de um menino louro, ela está semeando compreensão para as nossas colheitas de ideal. 

Não está ensinando geografia, nem leitura, nem aritmética; está ensinando Brasil.
Recebida, tantas vezes, com prevenção em uma ou outra zona colonial, ela tem de ser, muitas vezes, dentro do Brasil, uma espécie de consulesa do Brasil. 

E Roma não perderia o seu império se o seu império tivesse sido confiado, ao invés de a rudes cônsules guerreiros, a essas suabilíssimas consulesas. E que mesmo quando não seja um prodígio de consulesas. É que mesmo quando não seja um prodígio de cultura pedagógica ou de Inteligência, ela tem, para se orientar, o instinto fundamental de água mansa, de ave lépida, de suave sombra, de árvore boa, de praia preguiçosa e de animal generoso: o instinto d ternura da mulher brasileira. 

Ternura há em todo o mundo e em todo o mundo há mulheres cheias de ternura. Mas cada ternura tem o seu jeito; e é o jeito da ternura brasileira que a fada burocrata vai ensinando.

Pais e mães de meninos do Rio Grande: ajudem essa missionária do Brasil. Aqueles dentre vocês que não são brasileiros, não tenham medo de que seus filhos se tornem brasileiros. Isso não os afastará de vocês, porque ser brasileiro não afasta um homem de nenhum outro homem do mundo. Ser brasileiro é apenas o jeito da gente do Brasil ser humana. Não pensem que, aprendendo a amar esse Brasil tão grande, seus filhos não terão mais espaço no peito para amar também a terra de vocês. Terão sim. Quem aprende a amar uma terra tão grande não sente necessidade em amar, de uma vez, a terra inteira.

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À despeito da pauta sempre vinculada às notícias da Folha, como doação de verba à obras de caridade, construções da Prefeitura, cartas de leitoras aspirantes à poetas, a crônica “Um Clube” alude à fundação da primeira Escola Superior de Jornalismo, no Rio. Não sem ironia, Braga diz que teria “muito a aprender” no curso, porém, entendia que a sobrecarga de trabalho em jornal não lhe franquearia tempo para estudar.

- Não aprendi a fazer muita coisa em jornal e pelo fato simples de que estava trabalhando – diz.

E arremata:

-- Mas o pior é que esses doutores terão como lente os “rábulas” atuais”...

Noutra crônica, ele comenta a respeito do clássico “Um Rio Imita o Reno”, do Viana Moog (que fora editorialista do Correio por breve tempo) achando-o romance de tese demais. Noutra, ele questiona Erico Verissimo, se é possível viver só de literatura. Braga diz que não, e que o autor de “Caminhos Cruzados” é apenas exceção.

(parêntese: é fato, naquele momento exato, Verissimo gozava de extrema popularidade, após o lançamento de “Olhai os Lírios do Campo”, que esgotava sucessivas edições, e compelia os ávidos leitores à outras obras do autor que, por sua vez, até então, à muito custo desencalhavam da gráfica da Globo)

A crônica mais divertida, no entanto, em minha opinião, é “Belém Velho”. Nela, o Braga descreve o dia na fazenda que foi a sua vigileatura pelo arrabalde de Porto Alegre, no bairro de mesmo nome:

- Eu me demorei a contemplar um bode branco que meditava na brisa serena que lhe beijava a barriga – revela.

Rubem diz que o convite partiu do escritor e colaborador do Correio do Povo, Telmo Vergara. Descreve a paisagem do bairro desde a vista do telhado do Hospital Belém que, naquele tempo, era um sanatório, tendo à frente do Dr. Oscar Pereira:

- Vimos de longe Itapuã – revela. – a paisagem é tão ampla e linda que dá ao mesmo tempo vontade de viver e de saltar para a morte, no suave abismo que o vento ondeia.

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Uma Fada no Front saiu originalmente em 1994, mas logo esgotou. Não chegou a ter distribuição nacional, porquanto a Artes e Ofícios é uma editora radicada no sul. Porém, em 2002, a Record o relançou, com o subtítulo "Um episódio em Porto Alegre". Edição esta que está em catálogo e vale muito a pena ler.





NOTAS:
  

* BRAGA, Rubem, Uma Fada no Front. Artes e Ofícios, Porto Alegre,  1994

** RUDIGER. Francisco. Tendências do Jornalismo. EDUFRGS, Porto Alegre, 2002.




 

 

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