Tuesday, December 17, 2013

O Vampiro do Andaraí


Machado de Assis



Me causou espanto a palestra do professor José Antônio Pasta Jr, a respeito da Metafísica em Machado de Assis. Fazendo um irretocável retrato dos personagens do autor, ele se referiu ao Conselheiro Aires como um “vampiro”.

Vejamos. Procurei em Créméné: Vampiro é um ser mitológico ou folclórico que sobrevive se alimentando da essência de vida criaturas vivas (...), independentemente de ser um morto-vivo ou uma pessoa viva (Mythologie du Vampire, p. 89). Resolvi enveredar pelo lado metafórico, e é possível encontrar a expressão com uma certa conotação moderna ligada à política.

Mas não me serve. Até que descobri o conceito de vampirismo psíquico. Embora não seja um fato reconhecido vamos dizer assim, cientificamente como tal, um psicólogo chamado Albert J. Bernstein, no livro Emotional Vampires se refere ao fenômeno como um parasitismo anímico. Ou seja, pessoas cuja influência exaurem a virtude emocional de outrem.

Aires é um diplomata em idade provecta, aposentado e que retorna à Corte, para sua casa, no Andaraí. Veja o leitor que nada é gratuito. O professor Pasta falou em vampiros ao se referir ao conselheiro. Pois fui eu cá pesquisar e descobri que, pela  etimologia a palavra “andara-y” vem do indígena, e significa, pasme: “rio dos morcegos”. Com vocês, o Vampiro do Andaraí.

Ele entra em contato com o casal Aguiar participa sempre dos serões que sempre acontecem na casa deles. É ele quem enfeixa toda a trama de situações que ocorrem à roda desse círculo de amizades, e volta e meia, faz seus excusos à sua irmã, Rita.

Na verdade, fiquei com a idéia fixa de “vampiro” na mente à repassar o livro na memória, de forma a aceitar a tese. E já vejo alguma consistência. O que deve chamar a atenção daquele que lê o enredo é que o Memorial de Aires tem uma atmosfera rarefeita, cheirando a velas e coroas de orquídeas. Toda a ação dos personagens não esconde um elemento que paira no ar, que tem sempre algo de fúnebre, de fenecido.

O romance começa no São João Batista, onde Aires revê os antepassados e conhece Fidélia. No meio do livro, todos vão felizes ao cemitério em ocasião do Dia de Finados. Por fim, a morte do pai da viúva e do corretor Miranda. Fora isso, os aguiares não têm filhos, Fidélia é uma viúva solteira e Aires também é um viúvo sem filhos (Machado naquela altura também o é, e isso não pode passar desapercebido do leitor).

Se aceitarmos a tese do vampirismo de Aires, a história perde aquele ar de romantismo decadentista em favor de uma nota humorística. Até porque somos tomados pela ternura do casal Aguiar e pela devoção dos dois à singela Fidélia, num romance onde todos parecem pios exemplos de dignidade (com exceção da linguaruda da D. Cesária). Aires poderia entrar no rol, mas a verdade é que ele destila o seu fel em alguns momentos em que se encontra à sós com o papel (como ele se refere ao seu manuscrito, nos diários).

Em outras palavras, pegando o mote do vampiro, o conselheiro é, com efeito, um secador. Ele tem atração pela bela viuvinha – a despeito do mórbido paradoxo de que ela em vida se encontra ligada ao defunto, inclusive usando um camafeu com a foto dele (do defunto) e guardando o luto agressivamente em suas vestes inclusive.

Desde o começo, é essa figura ainda desconhecida dele que o liga ao clã dos Aguiar. Tanto que, com a partida do paquete com ela e Tristão, o Memorial termina (às vésperas da República onde, aliás, começa boa parte da ação de Esaú e Jacó). No mais, ele vive em função de enfeixar as atribulações dos personagens que o cercam nesse núcleo, bancando o histriônico às avessas.

O vampiro Aires só quer sugar o íntimo do que se passa aos personagens, supondo coisas, coletando fofocas. O que lhe distrai é o consolo dos aguiares, em adotarem Fidélia e terem em retorno à Corte do jovem Tristão, vindo da Europa.

Como são isentos de filhos, os dois completam a família postiça do casal, que vive de novo tendo-os em seu regaço, retendo os dois com mimos e ternuras.

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A despeito do vampirismo do Aires, cabe ressaltar que o Memorial é, também, uma reflexão de Machado sobre si mesmo (saudade de si, como ele fala na última frase do livro), um painel de memórias onde o personagem do autor se fragmenta nas vozes do romance e se transforma nas pessoas reais de Dona Carmo e Aguiar, uma representação literária do venturoso casal Assis.

A segunda parte da história nos mostra o distraído idílio entre Tristão e Fidélia, união improvável do filho pródigo postiço que foge para além-mar e a eterna Penélope, a viúva Aguiar, que cose todas as noites a mortalha do seu falecido marido, e cujo amor e devoção pós mortem (que pode porventura impacientar o leitor) parece inexpugnável como as pedras do cais Pharoux.

Tristão, nome de personagem da famosa tragédia transformada em drama musical por Richard Wagner, artista de predileção do autor de Iaiá Garcia e que também ele, Tristão, sabe espargir a música do mestre alemão nas teclas do piano nos serões dos Aguiar. O estouvado jovem acaba, tão distraída quanto necessariamente buscando os braços da viúva porém honesta Fidélia.

O Machado velho está no idílio dos Aguiar assim como, de certa forma, está jovem também na paixão de Tristão e (quase escrevi Isolda, ato falho, caro leitor) Fidéia. O Bruxo veio de um casamento improvável, quando conhece a irmã de seu compadre, Faustino Xavier de Novais, Carolina. Ela, culta, inteligente, madura e mais velha, assim como acontecera com o pai do chato do Brás Cubas, conheceu o jovem escritor num dos serões promovidos por seu amigo.

Improvável porque, como se sabe, o Bruxo do Cosme Velho era de família humilde, mulato; a família dela foi contra, exceto Faustino. E o consórcio se deu à revelia dos pais dela, como ocorrera com o primeiro casamento da viúva com o primeiro marido.

Aires, aposentado e solteiro, mal disfarçando (se ele dissimula aos seus pares no romance, não passa desapercebido ao leitor), deseja a triste e bela enlutada jovem, acredita que ela esqueça o morto.
Até que a jovem se apaixona por Tristão.


O conselheiro, que até concebia o amor eterno dela por seu respectivo marido, cujo túmulo visitava amiúde, agora assistia aos arrufos de viúva com Tristão. Em vão, sadicamente torce pelo defunto.

No fim, os dois perdem: Aires perde a sua Isolda que, por sua vez, enterra o marido duas vezes: a segunda, pois, simbólica mas não menos definitiva.

Se a partida de Tristão e Fidélia surpreende a todos (menos Aires, que fica sabendo antes, por intermédio daquele), ao leitor, salvo engano, isso não passaria desapercebido. No amor, não existem culpados. Ou, como na célebre frase do livro: "basta amar para escolher bem; o diabo que fosse era sempre boa escolha".

Vamos e venhamos: seria egoísmo de D. Carmo querer retê-los na Corte apenas por eles dois, sendo que à Tristão lhe aguardava a aurora de uma carreira política em Portugal e, quanto à Fidélia, era jovem demais para morrer só e aos poucos, sendo amorosamente vampirizada por Aires e, de certa forma, amorosamente por seus pais postiços. Como fazem os pais de verdade. Honni soit que mal y pense.

Aires se apercebe disso, e racionaliza: “se os mortos vão depressa, os velhos se vão mais depressa ainda, viva a mocidade!”

Campos não me entendeu, nem logo, nem completamente. Tive então de lhe dizer que aludia ao marido defunto, e aos dois velhos deixados pelos dois moços, e concluí que a mocidade tem o direito de viver e amar, e separar-se alegremente do extinto e do caduco. Não
concordou, — o que mostra que ainda não me entendeu completamente (MACHADO DE ASSIS, 1975, p 217)


Nessa amarga reflexão, o vampiro Aires entende Aguiar e D. Carmo como um casal de mortos vivos (e, sem titubear, bota o mesmo chapéu), vivendo, no cabo de seus dias, a pior morte de amor, pior que a de Tristão e Isolda: a irremediável solidão a dois.

Moral da história (se é que tem alguma moral): Jovens, não envelheçam, apenas vivam.




NOTAS

ASSIS, Machado de. Memorial de Aires. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, 219 p

http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas/index_bairro.htm. Acessado em 17/12/2013

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