Thursday, October 10, 2013

Contracapa para Verdi


O compositor na época de Rigoletto



Certa vez, Giuseppe Verdi disse que a posteridade iria esquecer sua obra. Para o compositor, no máximo, iriam lembrar-se de algum coral, de alguma ária ou algum trecho orquestral.

Em parte ele tinha razão: dezenas de peças de sua autoria vivem na memória musical de todo mundo até hoje, mesmo que a maioria dos ouvintes sequer aprecie o canto lírico. Um exemplo é a ária "La Donna É Mobile", da ópera Rigoletto, que foi popularizada pelos maiores tenores do século passado e, volta e meia, é usado pela publicidade em geral.

Pois a maioria das pessoas que conhece essa ária hoje certamente não conhece a sua história e muito menos o que representou Verdi para a política e a cultura italiana no século XIX.

Apesar de ser herói nacional italiano hoje, quando o teatro La Fenice encomendou-lhe uma nova ópera, no começo de 1850, Verdi era um artista jovem de uma Itália que ainda não existia: estava repartida em vários estados, muitos deles subjulgados à estados estrangeiros. Essa situação adversa fez com que o sentimento irredentista aflorase.

Naquele tempo, Veneza sofria censura dos austríacos que, por conta do Congresso de Viena, dominavam Vêneto e a Lombardia desde 1815). Alguns movimentos revolucionários se insurgiam contra o Império, mas a filosofia política do Ressorgimento ainda engatinhava.

Por conta disso, toda a produção cultural das regiões dominadas pela Áustria passavam pela censura do Império. Mesmo que a Itália ainda fosse uma colcha de retalhos, essa produção cultural unia os seus povos pela literatura: livros, peças, tudo ganhava conotação política.

Na música, isso não seria diferente: quando Verdi compôs Nabucco, em 1842, a situação adversa do hebreus diante do cativeiro babilônico era, na verdade, uma mensagem cifrada; uma metáfora do domínio estrangeiro na península. Com o tempo, os censores austríacos passaram a fiscalizar toda a produção cultural dos estados subjulgados.


Ora, quando Verdi escolheu O Rei se Diverte, de Victor, Hugo para transformá-la em argumento para a sua mais novo ópera, ele sabia que a peça tinha todos os ingredientes para desagradar tanto a igreja quanto aos governantes austríacos, que dominavam a cidade naquele tempo.

A peça, que foi censurada na França) era um retrato sem retoques de uma corte falida, viciada, corrompida, cortesãs dissolutas e nobres pervertidos. No centro, havia Treboulet, um bobo-da-corte amoral que ridicularizava a tudo e a todos, e era mais feio por dentro que por fora. Semeia vento, aponta gente inocente para enganar, esposas para roubar. No fim, ele seria vítima do próprio veneno que inoculava.

Para driblar a censura, Verdi confiou o libreto (o texto da ópera) para Francesco Piave, que tirou o "rei" da peça, cujo tempo foi recuado para o século XVI. Francisco I da história original virou o Duque de Mântua, e Treboulet se tornou Rigoletto. Piave havia dado à ópera o nome de La Maledizione, mas Verdi demoveu seu libretista desse título: a Igreja iria proibir qualquer nome que fizesse menções à superstições e sortilégios.

Experiente, sabendo da encrenca que poderia se meter com um argumento explosivo, Verdi primeiro sublimou tudo o que escandalizara crítica e público em Victor Hugo. Num segundo momento, passou a trabalhar a música de forma a pôr as partes vocais em primeiro plano.

Hoje isso passa batido, mas o compositor queria fazer literatura de rés do chão, muito antes do realismo de Puccini e Leoncavalo: um realista antes do realismo. Afinal, a Itália dividida da época exigia algo além de idealizações e de mitologias. Ao mesmo tempo, queria fazer arte vocal, de gosto popular, ou seja, fazer concessões ao público naquilo que deveria ser acessível: nada de wagnerianismos. "Ópera é ópera", escreveu, certa feita.

Já para os momentos sombrios da história, Verdi colocava música alegre e ligeira. Aliás, fez isso o tempo todo, como se travestisse uma ópera-bufa (gênero que ele se debruçara apenas duas vezes em toda a sua careira) em fumos de tragédia.

Rigoletto estreou na Quaresma de 1851, no dia 11 de março da quele ano. "La Donna È Mobile", onde o Duque zomba do lado volúvel da alma feminina, ganhou ares de canção popular. De quebra, se tornaria o primeiro sucesso mundial de Verdi.

Se formos pensar nesse lado, Verdi tinha razão e sabia o porquê: suas árias, e isso ele aprendeu com Rossini, precisavam conquistar o coração do público. Mas, por outra, em parte, ele errou feio; mesmo depois de 200 anos de seu nascimento, em 10 de outubro de 1813, em Busseto, Itália, praticamente todas as suas ópera s estão no repertório das grandes orquestras em todo o planeta.

No comments: