Monday, June 18, 2018

Arrombando a Festa

Capa do livro


Creio que muito já se falou a respeito do autobiografia da Rita Lee (2016). Porém, eu gostaria de abordar uma questão que me intriga, que aparece de forma meio lacunar no texto e, no entanto, não chega a ser problematizado a fundo, que é a relação da Rita e dos Mutantes com a indústria fonográfica naquele período entre o fim dos anos 60 e começo dos anos 70.
Dada a largada, nas palavras dela:
Os Mutantes nunca foram vendedores de disco nem frequentadores das paradas de sucesso em rádios. Éramos apreciados por nossa esquisitice visual e sonora. Hoje somos considerados cult, mas, na época, ganhamos o apelido brega de “os brasiliân bitous” (escrito assim mesmo), para orgulho dozmano e um certo constrangimento meu, afinal, ser fã dos Beatles não significava querer ser os Beatles. Por essas e por outras que começamos a nos desentender, até que rolou a primeira guerra de verdade e kaput, a banda acabou (p.95).
Uma questão interessante é ver como a trajetória inicial da banda está vinculada aos festivais da canção, de 1967 a 1972, ambos polêmicos contudo por razões diversas. Ao estarem ligados à eles, os Mutantes pareceram sempre deslocados do mundo da Jovem Guarda, que seria, em termos, a música jovem do momento.
Mais do que isso, ao integrarem o grupo tropicalista, eles estavam, de fato, mesmo que mantendo alguns pontos de contato, seguindo por uma outra via que, sendo cada vez mais autoral e carnavalesco, ia contra aquilo que o gosto comum dos fãs de Roberto Carlos e companhia vendiam.
A outra questão é que, enquanto a Jovem Guarda ficou tematizada no universo do iê iê iê típico da Beatlemania e não conseguiu sair de lá, os Mutantes justamente já se integravam ao som pós-66.
Enquanto a banda acompanhava de perto as mudanças recentes do rock estrangeiro, a JG se engessava num formato esquematizado e que permaneceria adiante até desaguar no “cafona” dos anos 70. Opinião polêmica, pois, entender o “movimento” de Roberto e Erasmo como o nascimento do pop brasileiro depois chamado de brega.
No livro, Rita sempre pontua que os discos dos Mutantes foram fracassos em execução nas rádios, a despeito de suas constantes aparições no FIC ou no Chacrinha.
A questão é que, a despeito de serem considerados cult hoje, nenhuma gravadora investiria num artista se não fosse para que eles vendessem. Isso explicaria porque a JG vendia e eles não. Independente de gosto, elas haviam enquadrado o gosto do público e forneciam um material decalcado em covers de qualidade questionável se em qualidade, não muito na questão de vendas em compactos-simples, por exemplo.
Mesmo tendo um estilo sofisticado e experimental, os Mutantes estavam longe de venderem bem, apesar da extensa visibilidade que eles gozavam naquela época. Porém, mesmo além daquela temática piegas tão cara à Jovem Guarda, a banda parecia ter autonomia para criar na Polydor e isso é marcante se falarmos de artistas tão jovens como os Mutantes, quando o que se sabe é que, salvo em alguns momentos, como Roberto Carlos, nenhum cantor dispunha de tanta liberdade. Como Rita fala a respeito da sua Divina Comédia: “o trabalho novo foi sumariamente ignorado pelas rádios (p.87).
A coisa mudaria quando Nara apresentaria aos Mutantes sua versão de Joseph, de Georges Moustaki. A fórmula, óbvia no mundo dos covers brasileiros da época, eram versões de canções de San Remo e do Eurovision (coisas como “Puppet On a String”, da Sandie Shaw, por exemplo) ou o pop italiano que fazia muito sucesso no Brasil.
Nada mais anti-Mutantes do que seguir o que era comum. Porém, á guisa de carro-chefe de um álbum solo de Rita, a música caiu como uma luva: contrariando todos os números até então, Rita estourou com “José”. A ironia é que, a partir de então e até hoje, “José” é uma piece de resistance em qualquer set de rádios AM populares em todas as partes do país. Como diz Rita, o episódio “José” foi um passo atrás e á frente no sentido de buscar um hit.
Nesse momento, enquanto André Midani, boss da Philips planejava a carreira solo de Rita, os Mutantes (Arnaldo e Sérgio) queriam entrar de cabeça no rock progressivo.
Aqui entra o glorioso capítulo de como ser roqueiro nos anos 70 no Brasil; quando, segundo Rita, você tinha ou fama de drogado ou de bandido, ou nas palavras dela: “roquenrou era oposição e tinha cara de bandido” (p.166). No caso, pelo menos dois eram os rubicões: um, ou fazer som próprio, como todo mundo na fase do progressive sound; a outra, ter um pedaço de pão com manteiga para barrar por cima, como diria Nelson Rodrigues citando o Eça, e se vender ao circuito de bailes da Zona Norte, porém tocando sucessos e covers em geral.
Na primeira opção, você poderia, mesmo que o horizonte não respondesse, gozar de uma certa reputação a posteriori. Por outra, você seria apenas mais um fazendo o que todos faziam.
O outro problema é vender esse mesmo perfil singer-songwriter para as gravadoras, ainda mais propondo produzir a própria música. A tendência era você pregar no deserto ou, como no caso dos Mutantes, perderem o contrato com a Polydor.
Os Mutantes seguiram sem Rita mas tiveram o A e o Z vetado pela Philips. Seriam “salvos” pela Som Livre, o braço fonográfico da Globo que, naquele momento, representava um símbolo da indústria cultural setentista no Brasil. Com trilhas de novelas, eles haviam descoberto o mapa da mina e passavam a praticamente a ditar o que tocava se não em todas as rádios (era inevitável, pois todos viam as novelas), pelo menos nas emissoras do sistema Globo, como a Mundial do Rio, por exemplo que, ao ser comprada por Roberto marinho em 1969, á quela altura já era líder de audiência no estado.
Dessa forma, com o mercado fonográfico integrado com as demais mídias, era impossível querer impor um gosto musical aqui como as bandas americanas e europeias podiam dar-se ao luxo de fazer. A tendência era ou enquadrar-se (ser enquadrado por um produtor, fazer música para o mercado, como foi o caso do movimento “made in brazil”, que vale outro post) ou pregar no deserto.
Isso explica a vida lacunar de bandas de rock no Brasil. Ou limitavam-se a um ou dois discos por carreira (geralmente curta), e quase sempre em gravadoras menores. Mas como dissemos acima, no caso da Som Livre, o selo àquela época resolveu “ser” uma gravadora com cast e tudo e chegou a apostar nos Mutantes em seu disco Tudo foi Feito Pelo Sol, de 74.
No caso de Rita, no entanto, permanecer na Polydor/Philips implicaria andar conforme o que eles ditavam num momento em que a gravadora queria dedicar-se a um cast que compreendesse o melhor da nascente MPB: Bethânia, Caetano, Chico, Gil, Edu, Tom Jobim, Elis, Macalé, Gal (Arnaldo lançaria seu bissextíssimo Loki na Philips em 74, mais pela loucura de Roberto Menescal em apostar nele. No fim das contas, o álbum acabou virando cult e, como aconteceu com o resto do catálogo dos Mutas, ganhou uma vida posterior eterna).
De repente, é como se os Mutantes parecessem anacrônicos nessa viravolta. Ela mesmo conta que, numa reunião (p.133), tentaram tutelar sua carreira, o que provocou sua saída e a formação do Tutti Frutti.
Em seu terceiro disco, Rita gravaria “Bruxa Amarela”, que Raul Seixas compôs especialmente para ela. Raul deve ter servido de exemplo de que querer ir além da híbris de qualquer contratado de gravadora significava o ostracismo. Ele, como músico e produtor da CBS, já tinha provado do veneno quando do episódio do disco Sessão das 10, uma aberração para a linha dura da Columbia, acostumada com robertos, jerrys adrianis e wanderléas.
Mesmo roqueiro e maluco de carteirinha, Raul nunca entrou nessas de querer virar um essênio do rock. Suas canções, depois dos kavernistas, mesmo que falando de uma vida anti-estabilishment, nunca deixavam de ser pensadas tocando nas rádios e aparecendo em programas como o Fantástico.
Tanto forçaram que os Mutantes forçaram barra e foram defenestrados. Tanto que Rita, por sua vez, investiu no pop desde o (re) começo e fez grande sucesso com “Ovelha Negra”, que pavimentaria a sua cada vez mais sólida carreira solo.
A coisa se deu quando João Araújo intercedeu por ela no episódio da prisão e ela, julgando-se no dever de retribuir o gesto, que seria o compacto “Arrombou a Festa” (parceria com Paulo Coelho). A beatlemania de Rita iria começar com o disco homônimo, de 1979 e a sua longa e frutífera parceria com a Som Livre. Flagra, por exemplo, venderia na época mais de 2 milhões de cópias e rita finalmente hoje é (como diz o fantasminha) a mulher brasileira que mais vendeu discos no Brasil.

Bibliografia: 

LEE, Rita. Uma Autobiografia. Globo Livros, 2016. 

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