Tuesday, August 07, 2018

Maria Fumaça


Estação de Pedro Osório-RS



Tem um artigo da Wikipedia em inglês que lista músicas cuja temática de trem.
Por exemplo: "Orange Blossom Special", imortalizada por Johnny Cash; "Tuesday's Gone", do Lynyrd Skynyrd. Outras: "The Ballad of Casey Jones", "Hey Porter", "Rock Island Line", "The Night They Drove Old Dixie Down", "Love In Vain", "Take This Hammer", "Night Train", e muitas outras tantas.

Ou seja, é um tema recorrente no repertório americano, dado que este meio de transporte se mistura com a própria formação e a história daquele país.

Basta lembrar que o tema aparece na literatura também. Não preciso lembrar de Jack Kerouac que, como seu amigo Cody/Dean, trabalhou como guarda-freios na Califórnia e, como a maioria dos vagabundos e os desesperados okies do livro do Steinbeck da primeira metade do século passado, pegava carona em vagões vazios, uma cena também recorrente em toda a sua obra. Ou seja, o trem faz parte da paisagem e do imaginário americanos mais especificamente.

Por isso que no Brasil, que é um país sem trens, usá-lo como tema causa certo estranhamento. Por exemplo, quando ouvimos "Sob um Céu de Blues" ou "Expresso do Blues (quem lembra dessa?). Ela fala sobre alguém que foi abandonado numa estação de trem, uma coisa bem "Love In Vain". Grande licença poética, porquanto é o cenário perfeito, mesmo que seja difícil ambientar uma cena dessas por aqui. Porque não tem trem.

Como se sabe, a ditadura sucateou a rede ferroviária federal nos anos 70 para pavimentar o caminho para as empreiteiras transformarem o Brasil no país do asfalto. Então não dá pra fazer música de trem porque não tem trem, é algo ligeiramente anacrônico.

O que restou da malha hoje está cedida a empresas particulares.

Se o leitor for à Cruz Alta, e espero que vá, irá conhecer a estação de trem da cidade (fica atrás do museu Erico Verissimo). É como voltar no tempo. A estação está lá, muito bem conservada, mas só para visitação. Os trens são todos da América Latina Logística (ALL). Uma estação de trem na Europa é uma estação de trem. Aqui, é pura nostalgia ou saudade de um tempo que muitos viveram no passado, mas que nós não vivemos.

"Sob Um Céu de Blues", por exemplo, pode ser considerada anacrônica, já que foi engravatada numa temática típica do rock, mas num ambiente fora do tempo. Mas existem canções de trens do tempo que andávamos sobre trilhos. Por exemplo, lembrei-me de "Maria Fumaça", que é do primeiro disco da dupla Kleiton  & Kledir.

Lembrei dela por acaso e, ao mesmo tempo, lembro também da minha infância, quando tínhamos o disco gravado numa fita Philips (na verdade uma miscelânea dos dois primeiros álbuns, feita com carinho com um amigo nosso que era fã de música regionalista) e sempre ouvíamos os primeiros discos do Kleiton e Kledir nas nossas viagens e passeios de carro. Sempre que eu ouço "Maria Fumaça", lembro das longas vigileaturas entre Curitiba e Porto Alegre.

Ela tem todos os elementos da canção de trem, a começar pelo ritmo que mimetiza o andar da locomotiva. A música conta, como um crônica não sem uma boa dose de humor e nostalgia (para nós) as atribulações de um noivo que vai de Porto Alegre a Pedro Osório para casar antes que o padre resolve colocar outro em seu lugar, como diz a letra. No fim, achando que não vai chegar à tempo, perora que vai querer indenização da Rede Ferroviária Federal (RFFSA).

A letra faz menção à linha que ligava Rio Grande a Bagé, e que existiram até pelo menos 1980 (época de lançamento do disco). Também fala de um passageiro que seria de Canguçu - onde havia um histórico ramal que ligava Pelotas até Santa Maria, até os anos 60.  Já a citada linha de Pedro Osório continuaria ativa até o começo dos anos 90.

Já a RFFSA citada em "Maria Fumaça", representou a união de todas as linhas do país, e existiu por meio século, até a sua extinção, em 2007, há pouco menos de uma década. Contudo, nessa época, o transporte ferroviário de passageiros formalmente já não existia há décadas no país. Quando o governo federal concedeu as linhas públicas à iniciativa privada, as empresas não se interessaram pelo transporte de passageiros.

O restante da malha ativa pertenceu depois à America Latina Logística, que é o logo que vemos nos vagões da empresa quando vamos visitar a estação de Cruz Alta. Chega a ser curiosamente fantasmagórico quando, de madrugada, é possível ouvir apitos de trem pela noite da pequena cidade do noroeste gaúcho.

Acabou o trem e acabou a poesia, só temos agora a infinita highway...

No comments: