Thursday, September 26, 2019

De volta a Abbey Road

Foto alternativa para a capa do disco

Primeira lembrança que eu tenho do Abbey Road é a versão que eu tinha em cassete, daquelas escrita ESTÉREO assim mesmo. As fitas vinham com qualidade de som melhor que os discos em vinil, na maioria das vezes.

Lembro de ouvir, ouvir, e o som não me entrava na cabeça. Não conseguia memorizar o lado B direito, mas era divertido de ouvir. Parecia algo meio improvisado de ouvir. Mas, naquele tempo, eu não era capaz de inferir nada a respeito do disco, mesmo. Mas sentia que ele tinha algo que me prendia. Gostei de cara de "Something". Essa eu tinha certeza que eu tinha ouvido antes, em algum lugar, de alguma forma. Quando eu comecei a ouvir os Beatles, eu ouvia pela música. Não tinha uma noção orgânica ou de conjunto do conjunto da obra ou do contexto geral e da forma como a evolução da banda se relacionava com outras bandas, outras cenas musicais.

Toda bibliografia era muito escassa e o que existia estava esgotada e fora de alcance. Sem falar que, na minha ótica de fã, eu teria que me descolar dessa fissura, palmilhar outros caminhos musicais, aprender inglês, ter noções de música e, depois, retornar aos discos dos Beatles. Me interessei por eles porque eu gostava de rock dos anos 50 e, por coincidência, eles também. Na verdade, os Beatles me conduziram para o resto do espectro da música. Não teria ouvido jazz, música clássica ou experimental ou progressiva se não fosse por eles. Mas então eu empreendi uma longa jornada que me trouxe de volta a eles. Porém, tentando entender outras coisas em sua música, em outras perspectivas. Não mais o fã chato que sabe quantas tomadas eles levaram para gravar determinada música ou em que dia saiu o disco tal (confesso que ainda sei alguma coisa de fã chato). Por exemplo, hoje eu fico pensando como um cara como John Lennon, com apenas vinte e poucos anos, fosse capaz de escrever uma letra como "In my Life". Isso sempre me pareceu uma epifania de uma vida inteira, não de um jovem que, há apenas alguns anos antes, estava destruindo cabines telefônicas em Hamburgo.

Na verdade, eu era fã sem ser fã, porque gostava mais das trucagens de estúdio e bastidores de gravações. E dos bootlegs que mostravam esses detalhes. Essa engenharia genética de como eles criavam uma canção, da influência de determinada canção, da forma como eles gravaram, de como eles descobriram uma nova tecnologia para gravar e montar uma música e de como essa nova tecnologia criou todo um novo ambiente para a criação musical deles. É claro que, nesse momento, eu volto a ser o fa chato, embora acredite que é por uma boa causa.

Eu fissurava muito na fase iê iê iê deles. Mesmo incipientes, eles eram criativos e prolíficos. Achava incrível a capacidade dos Beatles em fazer um álbum de 14 faixas em tempo recorde, tirando música da cartola como se fossem coelhos, e ainda por cima ter que produzir mais duas faixas pra um single para chegar ao topo das paradas, e cada vez mais sofrendo uma concorrência feroz. Se no começo os Fab disputavam com Kenny Linch, Gene Pitney ou Helen Shapiro, anos depois eles tinham os Byrds, Jefferson Airplane, Hendrix, Who, Cream na cola e tudo o mais.

Como banda, Mark Lewisohn (1) destaca, ao descrever a evolução dos Beatles disco a disco que eles jamais pensavam no segundo disco baseado no anterior. Ou decidiam por um disco sem covers, todo autoral, ou passavm a usar outros instrumentos, ou descobriam uma forma de phasing eletrônico, ou quem sabe tocar uma guitarra ao contrário, ou improvisar um pedal caseiro, no melhor estilo professor Pardal. Ou captar um solo com o microfone quase colado nas cordas e com o boost estouradaço. Creio os Beatles são a banda fetiche nesse aspecto de voyeurizar todas essas manias do quarteto em estúdio. Isso é Les Paul. Eles conheciam ele, sabiam que ele era o Pardal mor. Les Paul era o pai do overdub quando todo mundo gravava no acústico, como os músicos de jazz. Ele influenciou Buddy Holly, ele influenciou os Beatles. E Buddy influenciou os quatro também, no sentido de libertar-se do rockabilly e criar uma forma de rock-canção, mais redonda, mais pop, mas sem perder o foco na guitarra. Boa parte do começo dos Beatles está aqui.

O problema é que, esse expediente, os Beatles trocaram naturalmente o público pela mesa de controle. Com o tempo, eles viraram produtores. Já não pediam ao George Martin o que eles queriam fazer. No White Album os Beatles demitiram o produtor. Claro que sem o elemento parental, a coisa desandou para a briga. O Álbum Branco captou o quarteto de forma singular, tão singular que eles não se importavam com muitas pequenas derrapagens na produção deles que, de certa forma, eram propositais. Ou em certas escolhas importantes, como a de emular Stockhausen em "Revolution 9", faixa que os fãs detestam, mas que eu acho que é importante para mostrar elementos de música eletroacústica e concreta para um grande público. Por mais que os fãs detestem, eu acho uma das faixas mais importantes do disco.

O paroxismo dessas 'férias' do George Martin foram as sessões Get Back que, quando elas terminaram, decidiram engavetar tudo. É possível que tenham sentido nostalgia de um produtor controlando o ímpeto deles. E, como quatro filhos pródigos, pediram ajuda ao seu produtor. Martin com efeito talvez soubesse que isso iria acontecer. Por mais rebeldes e independentes que eles fossem, os Beatles sabiam que precisavam de um produtor. O resto eles já sabiam. Quando os cinco se reuniram, depois de tantas idas e vindas, de tantas loucuras e brigas, agora eles eram uma banda adulta, e que, de forma adulta, iam fazer o seu último rock.

Acho que isso é o que tão admirável em Abbey Road, disco que faz 50 anos hoje. É o álbum onde eles plasmam todo o conhecimento adquirido em todos esse anos e é o seu derradeiro trabalho juntos. Esses dias, eu estava ouvindo o lado B e pensando que, por mais genial que seja, ele sempre vai me bater como uma grande despedida. E é. Porém, quando eu ouço algo como o With the Beatles, é sempre aquela sensação de que são os quatro prontos para conquistar o mundo. É o começo da jornada dos heróis. Seus primeiros trabalhos, embora mais simples, têm essa aura da banda no seu começo, com toda a sua vibração, todo seu ouriço, toda a sua energia, toda o seu ímpeto. No Abbey Road, eles são senhores de sua música, eles são pais daqueles garotos que gravaram "Love Me Do", mas eles estão longe do público, eles não irão gravar um disco para sair em turnê. Eles se reuniram para entregar, consciente ou inconscientemente, seu último trabalho para a EMI.

Se o lado A parece ter esse espírito dos velhos tempos, para mim, e acredito que para muita gente, depois de "Because", começa a bater aquela melancolia. Quanto mais surpreendente e genial o lado fica, faixa a faixa, maior é a sensação de que o tempo está passando, e o fim - literalmente - está próximo.

Diferente dos relançamentos anteriores (Pepper's e White Album) a edição especial do Abbey Road não traz tantos outtakes como os anteriores. Isso se explica pelo fato de que, ao contrário dos citados, os Beatles dessa vez adotaram o regime de discos como Rubber Soul e Help: menos tomadas, menos tempo de estúdio. Enfim, um trabalho mais conciso em estúdio. Além do mais, o Álbum Branco era prolífico em demos, desde o material de Esher até as centenas de variações em mono. No caso do Abbey Road, ele foi o primeiro a ser lançado em estéreo apenas. E além disso, o single é extraído do próprio disco o que simplificou o número de faixas trabalhadas.

Não menos atrativo do que o material alternativo que a nova caixa promete é a nova mixagem de Abbey Road. Pelo aperitivo que apareceu no Youtube, é para você jogar fora o CD original (ainda mais se for aquele que você comprou lá em 1989 no Carrefour). Parece um outro disco. Mas mais do que isso, a nova mixagem, empreendida por Giles Martin, talvez mostre ao ouvinte o Abbey Road como ele deveria ter sido conhecido, com uma tecnologia de reprodução que nos permita escutá-lo fazendo jus à forma como ele foi concebido: com uma mesa TG 123545, que fora instalada em novembro de 69, e que os Beatles não chegaram a aproveitá-la. Aliás, uma das constantes brigas da banda com a EMI era que, desde 68, havia uma mesa de oito canais empacotada e jogada num canto dos estúdios e que eles não podiam usar. A frustração deles era, às vezes, descontada no próprio staff. Agora, eles tinham um produtor de volta e toda a tecnologia possível para gravar o maior trabalho deles.

De certa forma, com um espectro de som de muito maior alcance, essa mesa  jogou o som dos Beatles em outro patamar. Isso podia ser sentido no vinil mas, com a nova mixagem, é possível sentir o som mais claro, mais branco, mais puro, muito além de que se podia sentir, mesmo com aquele CD do Carrefour. Muitos críticos malharam a produção. Como sempre, achavam que era um disco totalmente tributário de truques de estúdio. E também não gostaram, à época, do uso de moog.  O que não impediu que Abbey Road chegasse a 31 milhões de cópias vendidas em junho de 1970.

Mas quem é da antiga, deve se lembrar daquele famoso bootleg do Abbey Road que foi disseminado pelo fã-clube Revolution, nos anos 80. O disco consistia em outtakes de faixas do álbum, em péssima qualidade de registro, como era comum com os piratas da época. Faixas como "Something" continham uma misteriosa parte; "You never give me your money" com o final original, ainda sem o corte do medley, culminando num rock. Outras faixas eram demos dos tempos das sessões Get Back, como "Sun King" O "Her Majesty" aparecia com o acorde final, que foi solapado no disco original que, curiosamente, tem os dois extremos decepados. Esse pirata ainda contava com uma gravação fora de contexto, com George e Paul Simon tocando "Here comes the sun", já nos anos 70. E, por fim, uma gravação fake de "I want you" que, a despeito de ser falsa, é de repente a melhor faixa desse bootleg. Essa gravação é possível encontrá-la no Youtube.

Mark Lewisohn diz sobre o disco que trata-se do melhor disco da banda. De largada, porque a música colocou toda a animosidade entre eles fora da porta dos estúdios e, assim, eles puderam submergir na própria música. John com sua verve e vocação roqueira; Paul com sua perspectiva sinfônica no medley do lado B e suas baladas; George no auge de sua capacidade criativa como músico e compositor; e Ringo tocando maravilhosamente, explorando, a cada canção, todas as possibilidades da bateria, como nunca. Sobre a produção, ele diz que os Beatles chegavam em estúdio concisamente com a base das faixas na cabeça, sendo que os acréscimos posteriores nas mixagens tratavam-se apenas de detalhes que não os levassem à digressões maiores, com maior perda de tempo, fator que, segundo Mark, foi um problema recorrente no White Album.

George Martin acreditava ser Abbey Road uma retomada da "linha evolutiva" do Sgt. Pepper's. Para ele, o disco pôde ser inovador "de forma controlada", ao contrário do Álbum Branco e o Let It Be, diz ele (naturalmente ressentindo-se de ter sido alijado desses projetos). Também salientou seu papel na elaboração do lado B, no sentido de orientar a perspectiva sinfônica da peça como um todo, inclusive, se pensarmos no retorno do tema de "You never give me your money" no final, dando um caráter ligeiramente rapsódico para o medley, certamente foi sugestão de George Martin.

Phil Mc Donald, um dos engenheiros de som dos estúdios na época, relembra que John era contra o medley, e foi quem sugeriu que suas canções todas deviam ficar no lado A e as de Paul no B. Foi atendido, pelo menos em parte. Essa divisão, de certa forma, faz parte da mitologia sobre Abbey Road.



(1) MARK LEWISOHN. The Complete Beatles' Recording Sessions. Hamlyn, Londres, 1989.







Wednesday, September 25, 2019

O coelho errado




Sobre a polêmica do Mílton Nascimento a respeito das paradas de sucesso atuais, eu gostaria de contar uma história.  Temo que ela não tem muito a ver com o assunto da semana mas que, de certa forma, pode até ter. É a respeito de uns apontamentos  que o André Midani escreveu na sua autobiografia (1) sobre os bastidores do mercado da música que ele, como produtor atuando no Brasil, no México e na França, conheceu mais do que ninguém.

Nos anos 80, a expansão da indústria fonográfica fez com que conglomerados da comunicação comprassem todos os selos independentes, e passaram a ditar as regras. Isso mudou a política das gravadoras, que, segundo ele, trabalhavam exclusivamente em função da formação de um cast.

Antes, o artista era como se fosse criado numa incubadora, levando em consideração inclusive perdas e danos, até que esse determinado artista se consolidasse perante ao público e formasse uma comunidade de fãs. A partir dali, tudo muda.

"Ficou longe a época em que as gravadoras eram dirigidas por quem gostava de música, sendo, ao mesmo tempo, bom administrador", diz Midani. "Ficou longe a era da competição amigável e ética entre as companhias. De súbito, os conglomerados disseram “Fora com os líderes criativos e dentro com os tecnocratas”. Para eles, os contratos artísticos estavam se tornando custosos para deixar a direção dos negócios nas mãos de gente com "paixão pela música".

André Midani dizia que os tecnocratas viviam em sua esfera específica. Quanto mais competentes e quanto mais tudo andasse no azul, maior sua distância com relação aos artistas. "Pouco a pouco, aos olhos da maioria dos tecnocratas", os artistas viraram inimigos, considerados pouco confiáveis, pouco sérios e sem o menor senso de responsabilidade".

Ele lembra a velha política das rádios antes do jabá. Comparando, como as progressive radios americanas dos anos 70, quando o DJ tinha certa autonomia na hora da fazer a programação. Sobre os conglomerados, seu objetivo era a recuperação dos investimentos de imediato; assim,  os lucros se tornaram o único elemento de importância.

A partir desse ponto, ocorre o contrário: se num passado recente, a gravadora vivia em função do artista, agora ocorre o inverso. E o foco passa a ser a canção, e não necessariamente o artista.

Esse vinha por último e, se colar, colou. Midani culpa a adoção desse modelo à prática de programas televisivos de caça-talentos que, como se sabe, existem até hoje (claro que esse agenciamento de novos talentos é anterior aos anos 80). Uma fórmula prática, embora, segundo Midani, guardava seus efeitos colaterais. "o que parecia ser uma solução passou a ser o início da decadência", explica. "A canção de sucesso é imprevisível por natureza — pois a vida de um hit é efêmera, mas a vida do artista, não".

De acordo com ele, trabalhar a música em vez do artista mudou o comportamento da indústria fonográfica e a obrigou a introduzir novas técnicas de marketing. "Quando a música se tornou o fator preponderante, e não mais o artista, o público passou a adotar uma nova postura", anota. "A canção, e não mais o disco inteiro, tinha que ter começo, meio e fim, e se transformar num “jingle da vida” durante os três minutos de sua existência... Todas as estações de rádio foram obrigadas a tocar a mesma música".

Se essa prática virou padrão naquele tempo, imagine hoje, na era do streaming, quando volta a prática do single? Sem contar com a facilidade de lidar com tendências de mercado no mundo da música, qual é a moda do momento para que uma gravadora adote, num perspectiva industrial, a produção fonográfica, que vai desde a adoção de compositores profissionais, lançamento de promos no Youtube e agendamento de shows. Hoje, tudo ficou mais cínico e pragmático. O mercado hoje, cada vez mais, em tempo de oligopólios, concentra cada vez mais. E, quanto mais concentra, mais exclui. E o corolário são as paradas de sucesso. Não é nem uma questão de ser música boa ou má, mas, sim, de existir cada vez mais formulismos e menos diversidade. E quanto a isso, caro leitor, não há o que fazer. 

Midani porém lembra que a catituitagem é uma antiga prática, e remonta a música lírica. Pessoas eram pagas para aplaudir ou vaiar cantores. E quem lograva sucesso em cidades como Marselha, passando por essa prova de fogo, podia então tentar a sorte em Milão ou Paris. Ou se fracassar, ficar por lá mesmo.

Ele diz que, nos anos 1960, (lembremos: mesmo depois da famosa CPI da Payola que acabou com a carreira de Alan Freed e que enquadrou Dick Clark) era comum contratar promotores de rádios independentes (as grandes emissoras das grandes cidades sofriam o controle da legislação do jabá) para promover seus 'projetos'. A forma de pagamento ia desde viagens para shows até prostitutas, drogas e dinheiro. Como se sabe, isso se transformou numa cultura, até ser institucionalizada.

No caso americano, Midani anota que quando a máfia descobriu que as gravadoras chegavam a pagar cerca de 300 mil Dólares para promover um single, ela se infiltrou no meio desses promotores e enquadrou o esquema a seu favor, com a Network. A partir daí, a Máfia iria doutrinar as rádios estadunidenses. Essas, por sua vez,  passariam a tocar exclusivamente as músicas que esse sindicato indicava.

Para se ter ideia da força desse esquema, diz Midani, a Máfia também se infiltrou nos departamentos de promoção de rádio das próprias gravadoras, chegando a peitar os chairman das majors que os desafiassem.

Em 1979, Dick Asher, então presidente da CBS, resolveu enfrentar a Network tendo como cavalo de batalha o The Wall, do Pink Floyd. A banda lotava estádios e o disco estava na casa dos 2 milhões de cópias vendidas, rumo ao 1º lugar.

Quando a Network soube que Asher instruiu seu staff a não pagar para a execução do single da banda, eles o chamaram. E ele recusou-se a atendê-los. "Diante de sua recusa em recebê-los", diz Midani, "a máfia deixou o seguinte recado: a música passaria, na semana seguinte, para a 10ª colocação, na outra cairia para a 50ª, na outra semana, para a 94ª, até desaparecer para sempre, apesar da demanda do público".

Diante da expectativa provocada pela Network, Asher percebeu, pálido de espanto que o percurso do single seguiu exatamente o trajeto descrito por eles. Foi quando as gravadoras perceberam que não somente a Network podia criar o sucesso, mas também o contrário. "O Dick acabou pagando, e a música subiu imediatamente para o 1º lugar", conclui Midani.

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Peguei esse exemplo a fim de tentar explicar que, quando criticamos um tipo de moda hegemônica no campo musical, em qualquer parte do mundo, sempre sobra para o artista, que tem que passar pelo injusto corredor polonês do gosto popular. Eu muitas vezes observo as pessoas pichando os artistas que fazem sucesso por aí. No caso do Mílton, ele acabou virando uma espécie de 'apelo à autoridade' para que o senso comum se insurgisse contra as paradas, cumprindo o seu papel. Porém, na verdade, quando estamos descendo o malho nos artistas de sucesso da semana, podemos estar tentando acertar o coelho errado. Algo botou eles lá. Nos anos 1970, o governo criou aquele bordão de "música é cultura" a fim de estimular o mercado da música, e que vinha impresso nas contracapas dos discos. Pois bem, de certa forma, não podemos nos iludir porque, no âmbito da indústria cultural, (e posso aqui estar proclamando o óbvio)  música também é dinheiro. Então, quando você vocifera contra o artista que faz sucesso e você não gosta, você é apenas mais um cão que ladra enquanto a caravana passa. 



(1) ANDRÉ MIDANI, Música, ídolos e poder: do vinil ao download. Nova Fronteira, 2006.



Saturday, September 21, 2019

Max Weber e o Pateta no trânsito




Quem via desenhos antigamente ou faz algum curso de direção já deve ter assistido a um desenho, que já é clássico, chamado Motormania ou, aqui no Brasil, Pateta no trânsito, de 1940.

Este desenho, para quem não sabe ou lembra, conta a história de um pacato cidadão que, ao dar a ignição no carro, transforma-se num sujeito prepotente, arrogante e dono da rua. Passa por cima de tudo e todos. Quando ele sai do carro, ao chegar à cidade, ele é atacado por outros motoristas que, por sua vez, diante da direção, assumem a mesma atitude. Quando ele retorna ao carro, sua persona agressiva reaparece, quase como um Médico e o Monstro.

A despeito do caráter de diversão, ou de referir-se a este papel agressivo de todo motorista, Motormania poderia ser considerado como uma aula de sociologia. Aqui, o desenho estabelece uma tipificação, um modelo que existe na sociedade e que pode ser resumido a um tipo ideal, ou um modelo que se repete na sociedade em geral. O conceito do "pateta no trânsito" como tipo ideal nos remete a um dos grandes luminares da sociologia, um senhor chamado Max Weber.

Considerado um dos fundadores da Sociologia, Max Weber (1864-1920) legou uma obra cuja influência tem um vasto espectro —  da economia ao direito e da ciência política a administração. Boa parte de sua produção foi dedicada ao estudo dos processos de racionalização do capitalismo. Texto capital no corpus de sua obra, a Ética protestante e o espírito do capitalismo defende a tese de que o protestantismo influenciaria a progressiva burocratização dentro do capitalismo em sua etapa monopolista.

Para Weber, a sociologia é “uma ciência voltada para a compreensão interpretativa da ação social e, por essa via, para a explicação causal dela  no seu transcurso e nos seus efeitos”.

Ele recolhe dois exemplos que explicam tal entrega: o primeiro se reflete na forma como o sociólogo se coloca diante das questões práticas do dia, como manifestar-se publicamente contra grupos que colocaram-se contra a social-burocracia nos eventos relacionados ao fim da Primeira Guerra Mundial - atitudes que quase transcendem o caráter não-político do sociólogo. O segundo exemplo está na postura teórica da Weber.

Weber dizia que o nome do sociólogo está associado à formulação do conceito capital para a observação histórico-social, o “tipo ideal”. Como expediente metodológico, trata-se de uma forma de orientar o pesquisador diante da interminável variedade de fenômenos sociais.

Apesar da expressão estranha, o tipo ideal não é um tipo idealizado. É um que se reproduz na sociedade. O Pateta no trânsito, lembre que o desenho é de 1940, sempre existiu e sempre vai existir. Sérgio Buarque de Hollanda, por sua vez, um weberiano nato, tinha o seu tipo ideal: o homem cordial. No Raízes do Brasil, ele diz que o homem cordial é aquele que não consegue separar o público do privado. Isso está na medula da sociedade brasileira e, com certeza, sempre estará.

Assim, o tipo ideal seria uma forma de enfatizar traços da realidade, como o burocrata profissional, até tipificá-lo numa expressão pura e consequente, mas que não se apresenta de tal forma em situações efetivamente observáveis. Por conta disso, esses tipos precisam ser concebidos na mente do sociólogo: “existem no plano das ideias sobre os fenômenos e não nos próprios fenômenos”.

O conceito de tipo ideal é discutido por Weber em A Objetividade do conhecimento nas ciências sociais. Para o pensador alemão, a única forma de apreender a realidade aqueles traços específicos que interessam ao sociólogo são “metodicamente exagerados” para, num segundo momento, seja possível formular questões pertinentes a respeito das relações relevantes sobre as relações entre os fenômenos observados.

O Pateta pode ser, pois, uma construção dessa tipificação do cidadão que vira um monstro. O desenho não perde a oportunidade de caracterizá-lo com cores grotescas. Ele provoca o riso no começo. Mas, depois, fica a questão. Esse personagem, que é caricaturado na figura do Pateta, ele é um ser real. Por isso que, como expediente pedagógico, escolas de direção passam Motormania para os jovens motoristas. Para que eles se vejam no Pateta no trânsito. O estúpido "inocente".

Se formos pensar, a guisa de conclusão, é que o Pateta no trânsito não está só diante do volante. Ele está por aí; está na política, ele está nas redes sociais, ele pode estar na frente de você na fila do supermercado. Ele é aquela pessoa pacata que cumpre todos os seus deveres de cidadão, ele cuida do seu jardim, ele posta fotos bonitas no Instagram mas, numa situação singular, ele se transforma. E talvez, como no Pateta no trânsito, essas pessoas nem se deem conta da forma agressiva, prepotente e estúpida como eles agem: acham naturalmente que podem dizer tudo sobre todos.

E é só no momento em que eles logam nas redes sociais. Depois, voltam para o seu jardim e para as fotos no Instagram. Essa é uma tipificação singular, no sentido que, através do espaço e do tempo, em qualquer situação, no trânsito ou na Internet, todos agem dessa forma. A rigor, eles não são assim o tempo todo. Mas numa determinada situação, todos agem da mesma forma.

Por que nós somos patetas no trânsito?


Referência:

GABRIEL COHN. Max Weber. Sociologia. Ática, 2003. 


Lawrence da Arábia contra o etnocentrismo

Peter O Toole como T E Lawrence


Tem uma cena do filme Lawrence da Arábia (David Lean, 1962) quando o protagonista, depois de ganhar roupas de beduíno, integrar os árabes e tomar Ácba, pondo os turcos para correr e atravessar o deserto até chegar em Cairo, quando depara-se com um guarda na entrada do seu QG, não é reconhecido. O guarda barra-lhe a passagem e diz: "para onde você pensa que vai, mustafá?
Numa cena anterior, quando Lawrence diz que quer retornar ao Egito, é criticado pelo personagem de Omar Shariff. Ele diz: "lá vai você dizer que andou com um bando de beduíno com roupas ridículas não é?".

Interessante ver como nessas duas cenas nós podemos entender o que os antropólogos chamam etnocentrismo. Segundo o antropólogo Rafael José dos Santos, ele consiste numa atitude que nós tomamos nossos valores e nossa cultura como medida para julgar as práticas dos outros. Ele diz que, ao basearmos em nossas crenças para julgar os outros, nós não somos capazes de enxergar o outro.

Enfim, o que se defende aqui é que nós assimilamos nossos valores desde o começo, e isso exerce uma influência grande em nós, de julgar como absolutas coisas que, na verdade, são relativas.

A antropologia, ou o estudo antropológico se estriba no fato de que é preciso entender a relatividade entre as coisas de nossa cultura e da cultura do outro. Esse é um passo fundamental para entender os processos de estudos antropológicos.

Nós também sabemos que o etnocentrismo está arraigado no senso comum. É possível ver como as pessoas julgam as diferenças dos  outros pelos seus valores até mesmo no preconceito contra pessoas do interior ou de outros estados, só para pegar um exemplo aleatório.

O senso comum é implacável. Você sabe que é etnocêntrico quando comete esse tipo de olhar o tempo todo. Ter noção de que somos etnocêntricos e que, na maioria das vezes, cometemos essa derrapagem ao achar que determinado grupo é errado e o que fazemos é o certo. O importante, como diz Rafael, é que reconheçamos isso, saibamos que isso existe - não só eu com relação ao outro mas, também, o outro com relação a mim - e sabermos lidar com essa dificuldade no "reconhecimento do que nos é estranho".

Quando os valores de determinado grupo ou sociedade superiores a qualquer outra, corremos o risco de querer impor nossos valores nesse outro.

É o caso do Lawrence. Para os ingleses, que ocupavam militarmente o Egito durante a Primeira Guerra Mundial, os árabes eram um bando de beduínos sem rumo  ou direção, selvagens e ignorantes. Eram, enfim, mustafás. Na fala de Shariff, ele entendia a diferença e certamente, como se pode depreender de sua fala, sentia o preconceito, ou a visão etnocêntrica dos ingleses com os árabes.

Este militar inglês, que também era antropólogo, relativizou a relação entre essas diferenças. Ele entendeu os árabes como eles eram, e soube fazer o que os demais britânicos não conseguiam: uni-los contra o inimigo comum: os turcos.  O exemplo do filme de David Lean, um belíssimo filme, é mostrar a grandeza dessas lições nos pequenos detalhes do roteiro.


Referência
SANTOS, Rafael. Antropologia Para Quem Não vai ser Antropólogo. Tomo Editorial, 2005.

Thursday, August 22, 2019

O último e o primeiro homem

Dante


Italo Calvino dizia no seu Por que ler os Clássicos que toda leitura de um clássico é uma releitura, pois o leitor passa por um livro que foi muito lido e comentado, além de estar presente no imaginário ou cultura de até quem nunca o leu. Veja o caso de Don Quixote. E Dante. Já temos o conceito de dantesco, as imagens aterradoras do inferno, as pinturas feitas a partir da obra, etc. De repente, a leitura pode parecer enganadora: o livro não é nada do que eu imaginava, como quando li a Ilíada pela primeira vez, ou era muito mais do que eu esperava, como no caso da citada obra de Cervantes. Sem falar das barreiras e problemas da tradução, o que levava Borges a dizer que a exploração de uma obra, como no caso da Divina Comédia, é uma expedição sem fim. Isso é ruim e bom por vários motivos. Bom porque é um longo caminho de conhecimento pela frente; ruim porque nunca iremos apreender todo o conhecimento possível.

Eduardo Sterzi tem um volume, Por que ler Dante (Globo, 2005) que é basilar como uma introdução ao autor florentino. Ele parte de todo o contexto medieval até abordar as influências e a forma como Dante reinventou a poesia provençal e de como através dele o poeta chegou à sua fórmula peculiar de produção, a terza rima, e o uso do vernáculo em lugar do latim.

Ele ambienta o período medieval para citar Focilon e Vasari: para o primeiro, a gestação da
renascença começa no medievo. Vasari aponta o Trecento como uma prenuncia a Renascença. Por fim,  que entende ão haver uma quebra a Renascença é o corolário de uma evolução constante e contínua desde o século XII. Lembra que foi nesse período que aparecem as primeiras universidades. E fala do impacto da descoberta de toda a obra de Aristóteles crucial para a  definição da modernidade em Dante. O filósofo, que estava num index na Universidade de Paris, ganhou um novo status quando o tomismo é adotado pela Igreja de forma a combater heresias europeias. Não é a toa que Dante o coloca no seu Paraíso.

Com o gótico, surgem as primeiras manifestações poéticas em vernáculo, as ordens franciscana e dominicana. Por fim, nesse ponto, Sterzi coloca a Comédia como o momento decisivo para a fixação de uma cultura vernacular para enfrentar a hegemonia do latim na Europa. No campo religioso, o Concílio de Lyon lança a ideia de purgatório, espaço importante na escritura do poema dantesco. Ao compor sua obra, Dante constrói o futuro com a evocação do passado. Robertis observa: ele é  a última voz do Medievo. O liquidante de um mundo em declínio mas ao mesmo tempo o anunciador de uma "vida nova".

Le Goff aponta a Comédia como um testamento poético do século XIII. O fim de uma era e o começo de outra. Ele é o último homem medieval: "se Dante se deixa levar até essa iluminação na qual se esquecem todas as coisas terrestres se deve que a sociedade e os valores que ele amava já desapareceram aqui embaixo e as luzes do verão cederam o passo às sombras mescladas com chamas do outono à crise da cristandade medieval".

Há na Europa uma grande crise financeira nessa época. Episódios de obscurantismo, refluxo econômico, grandes obras inacabadas, guerras que, enfim, prenunciavam a crise do feudalismo. Esse é o "difícil parto da modernidade" para Le Goff. O que parece crise também tem cores de renovação  o uso da expressão 'ars nova' por exemplo]. "dos desastres da guerra nascerá um mundo verdadeiramente novo [...] a resposta senhorial à crise dos anos 1200  1300 provocará a liquidação da Idade Média".

Diz o autor que a Vida Nova de Dante plasma essa incerteza dos novos tempos: da mesma forma que profetiza uma nova ordem, ela ainda está eivada com resquícios daquele mundo que agonizava. Do trovadorismo, Dante irá inspirar-se para passar a usar o vernáculo no lugar do latim. No seu apogeu com Cercamon, no século X, a poesia occitana espalha-se pela Europa. Nessa época ela mistura-se com a propagação de uma heresia: o catarismo, que é perseguida pela Igreja que, por sua vez, inclusive, propõe uma cruzada européia contra eles. Muitos acusavam os trovadores de professarem tal crença embora não houvesse nenhuma ligação suficientemente comprovada entre os poetas e as heresias.

A cruzada contra os algibenses ou cátaros provocou o fim daquele movimento mas, também, a sua propagação pelo mundo afora, como a Espanha e Itália. Na época logo anterior a Dante, o trovadorismo já havia saído do occitano e se reencontrado em idiomas locais, como aconteceu em Portugal.  Como diz Sterzi, permanece o amálgama de amor e desejo, como fora concebido pelos trovadores.

Em sua alquimia literária, Dante flana do trovadorismo inicial para uma concepção metafísica mais afeita ao espírito toscano de seu tempo e que se tornaria conhecido como doce estilo novo, um processo de retomada e superação que é o cerne daquele pensamento da época. O amor sexual sublimado passa a ser em seu novo contexto porém um amor marcadamente espiritual e simbólico conotativo de relações sobretudo imaginárias (p. 69) . E o Vita Nuova seria antes da Comédia decisiva para os desdobramentos da própria literatura européia e o primeiro a percebermos o que seria a literatura italiana. Mesmo que houvessem outros exemplos contemporâneos registrados em códices este é, com efeito, o primeiro livro e assim concebido como tal na emergente produção não escrita em latim na Europa.

Com o tempo, diz Sterzi, os trovadores empobreceram e levaram sua arte para o ambiente burguês. Ao mesmo tempo, línguas regionais passaram a ocupar o lugar da linguagem comum occitânica. Permanece contudo aquela relação entre poesia e amor, linguagem e desejo inventado por eles (p. 65)
Giacomo da Lemtini adota o vernáculo local e elabora as bases do soneto.  Dante herda esse espírito em sua lírica da juventude, ao passo que parte para a abordagem metafísica própria dos toscanos e que, mais tarde, ele cunharia como o “dolce stil nuovo”.

Esse processo de retomada e superação já se dava nos poetas anteriores, e não seria diferente com Dante. A abordagem do amor, no entanto, deixará, no novo ambiente italiano e nesse processo do amor sexual para o espiritual. A relação efetivamente cortesã, ao mesmo tempo, deixa o universo cortês para uma relação sobretudo imaginária (p. 69). É o amor platônico, sublimado.

No caso da Vita Nuova, a obra que plasma esse novo estilo, é considerado por Sterzi como o “primeiro livro concebido e executado como livro em toda a então emergente produção literária nos vernáculos europeus” (p.72). Ao mesmo tempo, se mostra não exatamente como um livro de poemas, mas sim um compósito que alterna prosa, poesia, filosofia, manifesto de uma nova poética, diário e ensaio de autobiografia, como diz Maria Corti (p.74).

Dante pode ser considerado o primeiro a ter uma certa noção “histórica” ou “contextual”, de diálogo com o passado, da poesia como algo dado no tempo e no espaço e como algo que ele possa pensar, tanto na própria sincronia da poesia quanto na trajetória da poesia vernacular desde os occitanos até ele. Ou , como quer De Robertis, segundo Sterzi “a certidão de nascimento da consciência literária” da Itália. Para ele, a prosa é o fato novo em Dante nesse momento.

No entanto, a instância que, por sua vez, legitima essa prosa e dá sentido ao testemunho da prosa é, justamente, a poesia (p.77). Ou, como diz Giulio Bertoni (idem), ele foi capaz de criar uma prosa que ainda não existia. Nessa perspectiva teórica, ele pensa a arte literária em todas as suas formas e relações, sendo, ao mesmo tempo, o trovador “submisso” às leis de cortesia como poeta e o prosador imbuído de autoridade para pensar sobre o ato de escrever, tudo amalgamado a partir de uma perspectiva subjetiva que também se processa em Vita Nuova (p.78).

Na nova concepção poética, anota Sterzi, Dante lida com quatro tropos ideais, que são a memória, o segredo, o amor e a morte. Nesse sentido, o amor transcende a própria morte do ser amado. Se para a lírica provençal isso poderia significar o fim, para Dante é o começo. O fim redimensiona o sentimento e a grandeza do sentimento da coisa amada; é na interioridade do poeta que a dama ganha existência (p.80). A morte afiançaria por sua vez a inextinguibilidade da distância: a necessidade da morte é a “necessidade da distância levada ao extremo e é a necessidade da própria poesia enquanto fundação do sujeito na linguagem ( p.81).

Dada a influência manifesta de Dante na lírica em Petrarca como “tomada de consciência e guinada numa realidade em formação (idem;) poderíamos entender, de acordo com Sterzi, que a Vita Nuova é uma “teoria da lírica”.

Seguindo à Vita Nuova, Dante passa por um processo de reelaboração de sua musa: a Beatriz da obra anterior passa por uma espécie de formulação do material figurativo (Convivio, De vulgari eloquentia) como uma estação rumo à Divina Comédia que, para Sterzi, também é outro recomeço (p.92).

A partir de 1293, Dante trabalha nesses dois modelos, a antiga lírica e este, rumo à sua obra capital, embora sua atividade política tenho tornado seu ofício literário cada vez mais esparso e lacunar. Contudo, como observa Cesare Vasoli, segundo Sterzi (p. 93) vê-se a resuluta pasagem existencial  e poética da Vita Nuova rumo à uma complexa elaboração filosófica de tratados como a Monarquia.
De acordo com o Starzi, muito do que fora teorizado, tanto neste tratado quanto no De vulgari eloquentia (curiosamente escrito não em língua vulgar, mas em latim), como projeção ideal, muito do que encontraríamos na filosofia da Comédia.

A ligação entre as duas etapas, do Convívio ao seu grande poema teológico residem inclusive no fato de que Alighieri abandona o tratado em favor de seu grande poema (aliás, ambos os tratados são abandonados nesse momento), a partir de 1307. Também muitos elementos que Dante elabora na sua genealogia da poesia, desde os occitânicos até ele, no De vulgari eloquentia seriam retomados, de forma tematizada, no seu reencontro com Beatriz, no Paraíso. Ao fazer essa genealogia da poesia de antes com a sua época, ele ressalta tanto a importância desse movimento quanto a necessidade de uma ruptura.

A respeito desse tráfego de influências e misturas, ao fazer seu estudos sobre a linguagem, Dante postula que haveria uma unidade entre o francês, o occitano e o italiano, no plano poético, como uma "poesia das três línguas". Seu tratado busca uma periodização da história da poesia européia desde o occitano até ele, num compósito de historiografia e autobiografia. E ao mesmo tempo, e considerado texto fundador da lírica amorosa já vernacular.

Sterzi salienta pois a importância de textos como Rimas, Convivio, De vulgari... mas que, em certo momento, ele focou seu objetivo totalmente na Divina Comédia, que eu comentarei, se possível, em outra ocasião.

Monday, July 22, 2019

Mr. Bossa Nova





Segundo disco de Lannie Dale, de 1965


Lennie Dale estava moribundo numa cama de hospital do Coler Hospital em Nova Iorque. Mesmo assim teve forças para um último desejo. "Pediu uma fita com canções de João Gilberto para ouvir no walkman: "Música americana me dá dor de cabeça", disse a jornalista Mariana Moraes. Dale, aliás, Leonard Laponzina, de 57 anos, morreria dias depois em 9 de agosto de 1992 em decorrência da AIDS. Ele estava internado há pelo menos dois anos, quando teve que deixar o Brasil para o tratamento da doença.

Quase esquecido na história da música do show-biz e da música brasileira, Lennie foi lembrado no livro Chega de Saudade, de Ruy Castro. À convite de Carlos Machado, ele veio ao país como coreógrafo. Em pouco tempo, sua história se confundiria com a bossa nova. No Beco das Garrafas, mais precisamente no Bottle's, ele seria o tutor das carreiras de Wilson Simonal e Elis Regina no palco. Ensinava-lhes algo que não existia por aqui: ensaio. Antes dele, os artistas do Beco se apresentavam frios, sem qualquer preparação ou concepção de presença de palco. Dale seria a pessoa que lhes mostraria como podiam literalmente crescer diante da platéia, mesmo que fosse a do Bottle's, que era liliputiano com seus 15 metros quadrados: uma pessoa de pé era uma mesa a menos no recinto. Esse era o espírito dos botecos da Duvivier, uma travessa de Copacabana que ganhou esse nome (dado por Sérgio Porto) porque os moradores dos prédios costumavam jogar coisas pela janela a fim de afugentar em vão a balbúrdia das pessoas da calçada, nas madrugadas.

Carlos Machado, o rei da noite, e que havia até destronado o Barão Stukart se seu posto no Vogue quando criou o Sacha's, achou Dale em Roma numa festa de lançamento do filme Cleópatra, com Liz Taylor em 1963. Lennie era justamente o responsável pela coreografia no épico de Joseph L. Mankiewicz. Foi quando o empresário o convenceu a deixar a produção e ir para o Brasil. No Rio, Machado o colocou como coreógrafo em suas produções, mais precisamente o show Elas atacam pelo Telefone, no Fred's. Lennie enquadrou as vedetes, que sobreviveram ao regime espartano de ensaios.

Ruy Castro (1990) diz que Dale transformou o Beco na 'Broadway de tanga' se comparado ao estado da arte do que eram os shows no local até então: tudo muito pobre, sem ensaios, enfim, até artistas com quase uma década de carreira, como Sylvinha Telles, apresentava-se na base do improviso. O gringo então pegava qualquer um e o ensaiava passo a passo, como se fossem um bando de principiantes. Tudo, absolutamente tudo era ensaiado. Era algo tão profissional que muitos não conseguiam compreender o que um cidadão com cacife para vencer em Nova Iorque estava fazendo como uma espécie de Bob Fosse do baixo café-society do Rio.

Além de ensaiar Elis, que não tardaria a voar como uma hélice nos palcos paulistanos e amealhar um festival, o da Excelsior, em 1965, com "Arrastão", de Edu Lobo - praticamente tornando-se um anátema como forma de apresentar-se nos palcos dos festivais, girando, abrindo os braços e puxando tarrafas imaginárias (Elis dizia que a coreografia era criação dele e ele dizia que era dela) , Lennie Dale, já plenamente integrado ao cenário musical, tentou inventar uma dança para aquelela bossa nova sessentista, então cada vez mais jazzística e dominada por conjuntos como o Tamba, o Zimbo Trio, o Sambalanço e tantos outros.

A dança não pegou. Porém, seu criador foi veículo para que ele mesmo se tornasse um espetáculo. Além de coreógrafo, Dale estreava pockets no mesmo Bottle's, de Alberico Campana. O prato principal de seu show era seu número de "O Pato", canção popularizada por João Gilberto em seu segundo disco, O amor, o sorriso e a flor, de 1960. Lennie entrava em cena com um pato dentro de uma taça gigante (na verdade, o pato era um filhote e a taça uma fruteira). O espetáculo se tornaria um sucesso, até que o pato ficou grande demais para a taça, e ser substituído por outro pato, já devidamente coreorafado (os patos também ensaiavam).

Ruy Castro anota que, com exceção de Elis (as as dançarinas do conjunto de Sergio Mendes, depois o Brazil 66) Lennie acabou se notabilizando mais como artista do que como coreógrafo. Ele naturalmente já havia decorado todo o songbook da bossa nova, de "Corcovado" de Tom Jobim até "Samba de Mudar", de Geraldo Vandré. Como um show-man, ele devia saber e fazer de tudo debaixo dos holofotes. E Dale era um aspirante a cantor como as enxurradas de novos sinatras que apareciam   na indústria musical americana nos anos 1950. E, além dos clássicos da bossa nova, ele sabia estoques de standards do Great American Songbook, como "The Lady is a Tramp" ou "Old Black Magic".

Lennie não era cantor para valer. Mesmo assim, acabou gravando quatro álbuns pela antiga gravadora Elenco, de Aloísio de Oliveira: Um Show de Bossa (1964), Lennie Dale e o Sambalanço Trio-Gravado no Zum Zum (1965) e A 3a Dimensão de Lennie Dale (1967). Os discos foram lançados nos anos 60. No entanto, aocontrário do que aconteceu com os lançamentos mais 'memoráveis' de Elenco (como o Baden Powell à Vontade ou o Vinícius e Caymmi no Zum Zum), esses discos não foram relançados nem quando a Companhia Brasileira de Discos (depois Phonogram e depois Polygram) esses álbuns do Lennie Dale ficaram de catálogo por décadas, até serem redescobertos na era do mp3, quando todos foram digitalizados por colecionadores (como o Loronix, nos anos 2000) e posteriormente apareceram em páginas de streaming ou o Youtube.

Os três álbuns, como era feito à moda da Elenco, era uma versão recriada em estúdio de shows ao vivo, como o com o Sambalanço Trio (no Zum Zum) em parcerias de Aloísio com Flávio Ramos, que comprou o Ao Bon Gourmet de José Fernandes (idealizado pelo Barão Stuckart depois do trágico incêndio do Vogue) na rua Nossa Senhora de Copacabana quase esquina com o Beco das Garrafas), quando a onda das boates em Copacabana já vivia uma fase de lenta decadência, embora renovada com o relativo sucesso da bossa nova.

Gravados primeiro com o Bossa  (Luís Carlos Vinhas (piano), Tião Neto (contrabaixo) e Edison Machado (bateria) e depois com o Sambalanço de César Camargo Mariano, Humberto Claiber e Airto Moreira, são um testemunho do que eram aqueles shows capitaneados por Dalle, completamente à vontade em pout-pourris incríveis. Além disso, também mostram, pelo estilo peculiar de Lennie ao interpretar, que ele de fato foi uma escola para Elis, Simonal, Leny Andrade e tantos outros.

No Um Show de Bossa (versão ao vivo de estúdio do show do Ao Bon Gourmet) , destaque para o medley com "Perdido", do Duke, "Day-In, Day-Out", do Johnny Mercer e "Samba de uma nota Só" e uma versão com letra alternativa em inglês de "Corcovado". Dale e Sambalanço Trio repete a fórmula, porém o show foi apresentado no Zum-Zum (na Barata Ribeiro 184, na frente da Duvivier e ao lado do balança onde morava Dolores Duran). Destaque para "O Pato", "Menino das Laranjas" (que Elis estourou em São Paulo pouco antes do Fino da Bossa) e uma versão sensacional de "Reza" do Edu Lobo - para mim, a melhor versão do clássico do autor de "Canção do Amanhecer". Por fim o A 3ª dimensão de Lennie Dale com Trio 3-D (1966), com "Strangers In the Night", um delicioso cover de "Canto de Ossanha" e outro melhor ainda de "Upa, Neguinho", essas duas últimas também sucessos com sua aluna ilustre, Elis. Dale naturalmente não era cantor como ela, mas seu diálogo com o bopping dos trios e seu senso de divisão e de ritmo são tão perfeitos que você ouve os discos como se tivesse assistindo ao show. Além do mais, a própria cantora já estava difundindo esse tipo de hard bossa numa fase em que São Paulo carregava a criança da bossa nova no colo e a difundia pela tevê.

Deixo uma provinha do Lennie para vocês:



REFERÊNCIAS:

CASTRO, Ruy. Chega de Saudade. A História e as histórias da Bossa Nova. Companhia das Letras, São Paulo, 1990.

Tuesday, July 09, 2019

O Primeiro disk-jockey

Martin Block, o pai dos DJ




É comum relacionar o trabalho do disk-jockey a um apresentador de segmento musical jovem — mais precisamente associá-lo a partir do nascimento de um gênero específico, o rock’n roll. No entanto nem a expressão DJ nasceu com o rock e muito menos os programas de música gravada surgiram nessa época. É importante destacar, nesse caso, aquele que foi o primeiro disk-jockey da história, Martin Block.


Martin Block começou a carreira no rádio como office-boy na General Eletric. No começo dos anos 30, ele se muda para Nova Iorque. Lá, ele consegue um emprego como locutor, enquanto trabalhava como radioamador em Nova Jersey. Em 1934, encontramos Block como apresentador na WNEW. Enquanto apresentava um programa durante a transmissão do julgamento do assassino de Charles Lindbergh Jr, Block colocava música nos espaços vazios entre os boletins. 

A ideia de fazer um programa com discos viria logo depois, com o Make Believe Ballroom. Como sugere o título, o programa consistia em imitar algo que era comum no rádio norte-americano nos anos 30: transmissões de big bands ao vivo. Com uso de sonoplastia, Block criava a ilusão de uma transmissão de um baile com os maiores sucessos de swing da época. Para isso, ele mesmo precisou arranjar os discos: a WNEW não dispunha de uma discoteca. O tema de abertura do Make Believe era “Sugar Blues”, mega-sucesso de Clyde McCoy, de 1931. 

Contudo, o departamento comercial da emissora advertiu a Martin que ninguém se interessaria em patrocinar um programa de música gravada, ainda mais imitando um baile ao vivo (Chacrinha teria a mesma ideia original com a Boate do Chacrinha, na rádio Tamoio, nos anos 50). Ele mesmo correu atrás de um anunciante, uma empresa que fabricava pílulas para emagrecer. Em uma semana de programa, o retorno foi positivo o suficiente para deixar os executivos  da WNEW perplexos. Block também inovava ao adotar um estilo peculiar de ler os reclames. Ao invés de apregoar aos brados, como era comum na época, ele lia o texto com voz sóbria, como se estivesse conversando com o ouvinte. 

Anos depois, o Make Believe Ballroom já tinha uma espécie de bolsa de anunciantes do programa que, a essa altura, em 1941, já havia consolidado o formato, e transmitido para todo o país. Nessa fase, o Make Believe já apresentava atrações ao vivo, de Tommy Doorsey a Count Basie. Na divisão do jazz, aos sábados, Martin criou o "Saturday Night in Harlem", apenas com as estrelas do bairro de Manhattan: Cab Calloway e Duke Ellington, entre outros. Durante a Segunda Guerra, quando o sindicato dos músicos promoveu uma paralisação e o mercado fonográfico retraiu-se em decorrência dos esforços de guerra, Block sustentava o Balroom através de discos que ele recebia da Inglaterra. 

Joe Franklin, considerado o criador do talk show, começou sua carreira nos anos 40 como discotecário na WNEW, co-produzindo o Ballroom com Block. Ainda jovem, aos vinte e dois anos, ele era uma espécie de “assessor de assuntos aleatórios”. Posteriormente, Joe seguiria uma carreira no rádio e na televisão, que se estenderia por décadas. Nos anos 50, o Make Believe possuía duas edições: uma no fim da manhã e outra, no cair da tarde. Ao mesmo tempo, produzia uma edição especial que era transmitida para todo o mundo através da Voz da América. No auge do Ballroom, os grandes nomes do jazz desfilavam pela então 1130 AM, “where the music lingers on”: Dianah Shure, Glenn Miller, Artie Shaw, Rosemary Clooney, Pattie Page, Bing Crosby, Tony Bennett no começo da carreira.

Além do Ballroom, nesta fase Martin Block apresentava também o Columbia Record Shop, retransmitia o programa da WNEW na costa oeste pela KFWB, produzia filmes curta-metragens para a MGM e ainda estrelava outro, o Block Party. Como era prática comum com relação à disck-jockeys (Alan Freed também não seria o pioneiro), muito antes do escândalo da payola, ele possuía editoras musicais — a Martin Block Music and Embee Music, assinava parcerias em canções de sucesso, entre elas o tema do Balroom, creditada junto com Glenn Miller.

Em 1955, Block foi para a ABC Radio, depois WABC, apresentar o Martin Block Show, onde fazia a parada de sucessos, já fa fase do rock, anunciando Fats Domino ou Elvis Presley. Enquanto William B. Williams tomava seu posto no programa da WNEW, transformando o Ballroom na resistência dos grandes cantores e compositores norte-americanos do Tim Pan Alley e arredores, de Lena Horne a Frank Sinatra, quando este havia reencontrado o sucesso ao assinar com a Capitol. Nessa fase, Sinatra e o Ballroom cerravam fileiras em torno de um culto pelo swing e a canção americana. 

No entanto, quanto Block não via restrições com relação a tocar rock, Williams politicamente se colocou contra o gênero. Mesmo assim, quando a própria WNEW percebeu que o rock era algo incontornável, mesmo a contragosto, o DJ foi obrigado a mudar sua posição. Já no final dos anos 70, a emissora retornaria ao formato adulto contemporâneo, revivendo o Ballroom (nos anos 80, com Steve Allen no microfone), pouco antes de tornar-se definitivamente all news. Martin Block morreu em setembro de 1967.



Referências:

HINCKLEY, David. Future of the radio: Martin Block makes Believe. New York Daily News, 17 mar 2004. 


Sunday, May 19, 2019

Love Me or Leave Me

Doris Day


Num interessante ensaio*|, Ruy Castro defende a tese que Doris Day é uma das, se não a mais subestimada cantora norte-americana de todos os tempos. E isso ocorreu por conta de um tabu, que a teria estereotipado como uma espécie de eterna "namoradinha da America".

No entanto, ele observa, a carreira de Doris, que morreu na semana passada, é uma trajetória de exploração de sua imagem e todo o sofrimento de ser uma artista mulher num mundo masculino. Ele cita Will Friedwald que,  no livro Jazz Singing: America's Great Voices from Bessie Smith to Bebop and Beyond, a coloca entre os cinco maiores intérpretes americanos do século XX,  junto com Bing Crosby,  Frank Sinatra, Louis Armstrong e Billie Holiday.

Castro diz que esse tabu em torno de Doris fez com que ela sumisse da memória das pessoas. Havia, e ainda há,  um silêncio sobre ela. Doris,  com sua maldosamente chamada 'castidade promocional' nas telas,  parecia ser a antítese da Nova Holywood. Em pouco mais de dez anos,  sua carreira estava encerrada.

Ao mesmo tempo, a imagem que ficou dela é a de suas comédias água-com-açúcar que,  até coisa de umas duas décadas, ainda apareciam nas madrugadas da Globo.

Se sua vida parecia colorida nos filmes com Rock Hudson e Tony Randall, a realidade foi bem diferente: Doris cresceu com a ausência do pai,  que deixou a família com uma amante que ele levava para namorar em casa. Teve um irmão que, em consequência de um traumatismo craniano, precisou de cuidados especiais pelo resto da vida.

Com 13 anos ela ficou até 17 no gesso por conta de um acidente de carro. Em recuperação, ele desenvolve o talento de cantora. Foi levada pelo irmão de Bing Crosby,  Bob, para ser crooner na banda de Les Brown, em Chicago. Lá ela conheceu e envolveu-se com um trombonista,  Al Jorden. Ciumento, maluco varrido e paranóico, assassino e com tendências suicídas, ele batia em Doris constantemente.

Ela pedia ajuda da família de Jorden mas,  segundo ela,  eles achavam que ela tinha lá os seus motivos para apanhar do marido. Ele continuou abusando dela,  mesmo estando grávida de Terry (Melcher, mais tarde produtor dos Byrds e dos Beach Boys),  é um milagre que o menino tenha nascido.

Doris pediu o divórcio. Levou,  mas Al não se conformava: perseguia-a e ameaçava sequestrar Terry. Depois de meses,  ele morreu ou suicidou-se, jogando o carro barranco abaixo. Nesse meio tempo, ela viveu um dilema: ou casar-se e virar uma dona de casa ou retomar a estrada com Les Brown e seguir o sucesso que conquistou com sua versão para "Sentimental Journey".

Diferente do que possa parecer, a vida de crooner era difícil para um cantor, imagine para uma cantora. Na era do swing, as big bands viviam em turnês, viviam na estrada quase pelo ano inteiro, muitas vezes cruzando os Estados Unidos num inverno glacial, em ônibus sem calefação e sem dinheiro ou tempo para ficar em hotéis. Ao mesmo tempo, precisava dar conta da lavanderia das próprias roupas e ensaiar com a orquestra, tudo peripateticamente, ou seja, na estrada.

Além de Doris, todas as crooners tiveram que submeter-se a isso: Jo Stafford, Helen Forrest, Peggy Lee Anita O' Day, Marion Hutton. Enfim, todas eram obrigadas a lavar a roupa na pia. Claro que todos passavam por isso na estrada, mas elas estavam muito mais expostas, muitas sequer tinham vinte anos, viviam meses longe de casa e tinham que estar frescas no palco. Sorte de Doris, diz Ruy, que Brown era compreensivo com ela e, além disso, não admitia bêbados ou drogados em sua banda, uma atitude rara em matéria de show biz.

O sonho delas, e de Doris, era amealhar sucesso o bastante para seguir uma carreira solo. Era pois, viver essa etapa ou desistir. Ela foi salva pelo cinema, em 48, quando Sammy Cahn a levou para um teste com Michael Curtiz para o musical Romance em Alto-Mar. Nos próximos sete anos, ela estrearia dezoito filmes para a Warner.

Em 55, livre do contrato com a Warner, que era menor no reino dos céus hollywoodianos, ela vira freelancer, e atua pela MGM, quando faz Love Me or Leave Me, uma cinebiografia de Ruth Etting. O filme, aliás, mostra pontos de contato entre as duas: muita coisa que Etting passa na história não estava longe da própria trajetória anterior de Doris.

Love me Or Leave Me talvez tenha sido o mais "realista" dos seus filmes onde Doris estava mais para uma persona de fita noir do que da imagem que ela incorporaria a partir de 55, com o lento ocaso dos musicais de Hollywood.

Nessa mesma fase, ela casou com Marty Melcher. Com o tempo, ele provaria ser tão nocivo para ela quanto seu primeiro marido. Junto com Jerry Rosenthal, ele explorou dezenas de atores. No caso dela, Melcher torrou toda a grana dela em negócios furados, de redes de hotéis a ações. Quando ele morreu, no fim dos anos 60, Doris descobriu que estava falida. Teve que vender a casa para processar rosenthal. Depois de anos em tribunais, ela finalmente pode reaver parte da sua fortuna. Mas nesse momento, ela já era uma "has-been" em Hollywood.

Ruy diz que, mais do que isso, havia um silêncio sobre ela. Após Sinatra, diz ele, ela fora a única artista americana que amealhou uma carreira triunfal no show-biz. Tornar-se has-been passava por toda uma mudança nos costumes nos anos 60, que jogou sua imagem para o paleolítico da história do cinema e da música que, naquele momento, preferiria Joan Baez, Grace Slick ou Janis Joplin.

No fim do ensaio, Castro perora: "de algum tempo para cá, os arqueólogos do século 20 voltaram timidamente a ouvir Doris Day. E ao fazer isso, começaram a desconfiar que ela é a mais subestimada das cantoras americanas, um aparente contra-senso, quando as listas de revistas como Cashbox e Metronome mostram a quantidade de vezes que ela esteve entre os top ten nos anos 50.

Esse sucesso, diz Ruy, não quer dizer que ela fosse apenas uma cantora popular. "Seu território musical compreendia a Broadway, Hollywood e o Tim Pan Alley".

Outros críticos, mais alertas, entende, têm se dado conta que a despeito da enorme popularidade de Doris, ela era uma verdadeira cantora de jazz. Ela tinha swing, e não precisava de scats e vibratos. Seus discos hoje podem ser encontrados na internet, ao contrário de quando Ruy escreveu o ensaio, em 98.

Esqueça "Que Sera". Hoje podemos ouvi-la em discos de sua fase crooner, com Harry James ou Page Cavanaugh, Frank De Vol ou Percy Faith. Infelizmente, foi preciso que Doris partisse para que percebêssemos isso. O tempo certamente irá fazer justiça à ela.



*| CASTRO, Ruy. Saudades do Século XX. Companhia das Letras, 1998. 

Saturday, May 11, 2019

O dia em que a terra não parou



Orson Welles


Depois de muito tempo eu fui finalmente escutar a transmissão do Guerra dos Mundos do Orson Welles. O programa, na verdade um episódio do  Mercury on the Air, da CBS, foi transmitido no Dia das Bruxas de 1938. Em torno dessa transmissão, surgiu um mito de que Welles tivesse aterrorizado metade dos Estados Unidos com uma pegadinha, ao ter dramatizado o que seria uma invasão alienígena no planeta.

Ao ouvir a íntegra do episódio um locutor informa, no começo, que se trata de uma radio-novela. No fim da primeira meia hora, outro aviso. Só isso teria bastado para provar que o programa não era propositalmente falso. Outro fato é que, nas noites de domingo, o Mercury on the Air concorria com um programa humorístico na NBC e ele perdia sempre. Ao mesmo tempo, a transmissão da CBS era local, ou seja, não era costa a costa, como se poderia anacronicamente imaginar.

Toca a cortina do programa, o piano concerto do Tchaikowsky. Welles faz um prólogo.

O resumo da adaptação é uma simulação de uma programação normal de rádio da época, uma transmissão ao vivo de um baile num teatro de Manhattan. No começo, tem a previsão do tempo. Entre uma música e outra, o locutor dá conta de explosões em Marte. Um repórter ao vivo entrevista um astrônomo em Princeton sobre o fato. Durante a entrevista, eles ficam sabendo da queda de um meteoro - coincidentemente?? muito perto dali; isso dá tempo para que ambos cheguem numa progressão fulminante no teatro dos acontecimentos.

A "cobertura" então troca a transmissão do programa musical pela cobertura do incidente, em Grover's Mill. Para segurar as lacunas na cobertura, o operador entremeia os movimentos do repórter, que entrevista o dono da fazenda onde o meteoro caiu, com trechos de Chopin. Até que o repórter e o professor passam a descrever o meteoro, na verdade um disco-voador.

Aqui é o ápice da narração: o disco-voador está cercado por militares. De repente, algo se move. O repórter descreve a cena perplexo, lembrando Herbert Morrison narrando a explosão do dirigível Hindenburg. A nave se mexe. Uma serpente sai lá de dentro e pulveriza quem está perto, inclusive o repórter. A transmissão ao vivo "cai" e um locutor do estúdio segura a cobertura.

Porém, desse momento em diante, o foco muda: é como se estivéssemos assistindo a um rádio verité. Acompanhamos então os movimentos do exército na tentativa de dominar a invasão, que é avassaladora. O paroxismo é um massacre provocado em Nova Iorque, não muito longe de Princeton, onde centenas de milhares de pessoas são mortas por um gás letal.

Nesse ponto, entra o locutor da CBS dizendo: "estamos transmitindo o programa Mercury on the Air". Na segunda parte da transmissão, encontramos um sobrevivente do massacre, o professor de Princeton, dialoga com um estranho e profere palavras aladas sobre o futuro da humanidade.

A partir daí, é evidente que trata-se de uma radio-novela. No fim, entra Welles e encerra o Mercury on the Air.

A tradição dá conta de que Welles teria aterrorizado metade dos Estados Unidos e, naturalmente, isso também serviu para guindá-lo à estatura de gênio. Da mesma forma, o episódio teria entrado para a história como um exemplo de como o rádio é capaz de mexer com o imaginário dos ouvintes.

Curioso é saber que, como se soube muito tempo depois que a lenda de Welles houvesse se espalhado, na verdade o tal pânico em massa provocado pela Guerra dos Mundos foi muito menor do que se imagina. Como eu disse antes, a maioria das pessoas que estava diante de um aparelho de rádio naquela noite de 31 de outubro de 1938 estava escutando o The Chase and Sanborn Hour (um programa apresentado por Edgar Bergen, pai da Candice, e por incrível que pareça, era um programa de ventríloquo, como se fosse possível algo do tipo). Quem estava ouvindo a CBS desde o começo, obviamente sabia que era uma dramatização. Ou teria sabido da atração daquela noite através do New York Times, que havia anunciado o tema do episódio daquele domingo.

Porém, quem estava sintonizado na NBC pode ter trocado de estação no intervalo, e pego a parte da cobertura do repórter sem ter ouvido o começo. E então pode ter acreditado que tudo era real. É possível que esses ouvintes tenham grudado na transmissão a partir daí,e foi assim que o pânico começou. Não a ponto de botar metade dos americanos em polvorosa. Mas o suficiente para que muitos ligassem para os meganhas ou para a própria CBS, a fim de saber se era verdade ou não o tal ataque marciano.

O pandemônio real na verdade ocorreu em dois tempos: num primeiro, pouco antes do fim do Mercury on the Air, os telefones da emissora não paravam. Ao mesmo tempo, a polícia, que fora chamada, invadiu os estúdios, diante dos perplexos radioatores. Num segundo, a imprensa escrita, nas duas semanas seguintes, iria sensacionalizar o caso  - aí sim provocando a repercussão que transformou Welles no homem que pôs os Estados Unidos em pânico.

Claro que ele teve que se explicar. E disse que era um programa, e que aquilo era uma tempestade num copo d'água. O que soube-se depois é que, aviltada com a fuga de publicidade dos jornais para as emissoras, a imprensa escrita aproveitou o episódio para tentar demonstrar que o rádio, como Welles dera a entender, ao - voluntária ou involuntariamente - manipular a audiência, não era um meio confiável.

De qualquer maneira, o episódio serviu para guindar o homem do Cidadão Kane a paradigma e a histórica e polêmica adaptação de mote para milhares de estudos de comunicação. Problema é que, por anos e anos, glosou-se este mote sem que se analisasse o programa em si.

A gravação, de quase uma hora [como o Mercury on the Air não era patrocinado, ele não tem interrupções], prima pelo realismo, excelência da ótima e instigante caracterização. Contudo, a despeito disso, ela tem muitos pontos inverossímeis- tantos que apenas uma audição flutuante seria capaz de fazer com que alguém embarcasse na potoca.

O primeiro problema é: como seria possível uma transmissão em tempo real, com entradas telefônicas em 1938, com os telefones como eram em 1938, quando você perdia mais tempo falando com a telefonista do que com  pessoa que você queria realmente falar? O segundo: o repórter entra no meio de um programa musical para entrevistar um astrônomo para repercutir explosões em Marte. Qual seria  sentido de misturar as coisas num mesmo programa?

Claro que isso é capital no fulcro da dramatização. Porém, se fosse real, soaria puro disparate, como entrevistar o ministro da fazenda no meio de uma cobertura esportiva. Faria sentido entrevistar um "especialista" para repercutir o incidente, depois da efeméride. Antes não faria sentido, a não ser para servir, na narrativa, como "causa" da invasão. Claro que, depois, entra outro astrônomo para avaliar as consequências do ataque alienígena. Contudo, nesse ponto, os ouvintes incautos estão mais angustiados que barata de ponta-cabeça.

No começo, repórter entrevista o professor. No meio da entrevista, ele "recebe" um telegrama dando conta de um meteoro que caiu há doze milhas dali. Ambos vão até o local numa questão de pouquíssimos minutos. Depois, os marcianos matam dezenas de pessoas - inclusive o repórter, e o staff da "rádio" não parece ficar em estado de choque com isso. Ao contrário, eles tapam o buraco da cobertura com o estudo nº1 opus 25 do Chopin?  Nada faz sentido.

O que se percebe que Chopin entre na transmissão como uma espécie de muleta para tapar as lacunas, como se o operador de áudio possa segurar a transmissão usando música calma. Porém, dada a "gravidade" do incidente, esses interlúdios ardilosamente só aumentam a dramaticidade da situação

Além disso, depois de meia hora de programa, fica evidente que é uma novela. Mesmo assim, o pânico [bem menor do que a 'tradição' dá conta] está instalado. Claro que o que foi chave para que a dramatização colasse na cabeça dos ouvintes que embarcaram na história foram duas coisas: uma, o realismo do episódio, mesmo que, depois do repórter ter virado torresmo, a narrativa tenha perdido eira e beira, o fato de que, como o Mercury on the Air não tinha intervalos, a transmissão ininterrupta desse a entender que era uma cobertura em tempo real.

Outro fator que deve ser levado em consideração: o mundo estava em vias de uma guerra mundial e a opinião pública acompanhava, pela primeira vez através dos meios de comunicação, o dramático desenrolar da crise que culminaria no conflito. Paul White, executivo da CBS, ao avaliar o corolário do pânico provocado pela polêmica adaptação de H.G Wells, defendeu a tese de que tal pânico se deu menos por uma intenção de fazer uma pegadinha com os ouvintes [hipótese sempre associada a Welles] e mais por resposta a uma tensão psicológica coletiva experimentada por boa parte da opinião pública.

White salienta, por exemplo, que esses ouvintes 'distraídos' que sintonizaram a transmissão do Mercury on the Air sequer tinham noção de que tipo de ameaça ou de ataque estava em questão: poderiam pensar que fosse uma catástrofe ou começo da guerra. Ou seja, de qualquer maneira havia algum tipo de ameaça no ar.

Se você ouvir o áudio da rádio-novela a partir dos 14 minutos, por exemplo, não vai entender a princípio o que está acontecendo. Sabe que o repórter ambienta o que está acontecendo e entrevistando alguém.

De repente, algo acontece [o marciano ataca], populares gritam e a transmissão "cai". A rádio fica "fora do ar" por quatro segundos, até que o locutor retoma a transmissão do estúdio, como que pego de surpresa. Esse momento, esse exato momento da transmissão, se você "sintonizou" o programa a partir daí quanto tentava entender o que estava acontecendo, é nesse momento que o ouvinte distraído é raptado pela fantasia dessa fantástica adaptação.

Toda a gradação - dos 14 aos 16 minutos é o momento em que esse ouvinte distraído é raptado.

Enfim, para pôr mais fogo na fogueira, recomendo que ouçam com seus próprios ouvidos a transmissão original, que provavelmente existe porque foi preservada em transcription [espécie de "vídeo-tape" do tempo do rádio antigo que era gravado em elepês de 33 rotações em acetato]. E recomendo a matéria da revista Slate: The Myth of the War of the Worlds Panic, e que pode ser encontrada online. A tal matéria vocês procurem; o vídeo está aí:






PS: sobre a direção musical do programa, quem está por trás dela é um tal de Bernard Hermann.

Friday, April 19, 2019

No tempo do 45 Rotações

Compacto original de "That's All Right, de 49


David Browne assina uma matéria muito interessante sobre os setenta anos do single de 45 rotações na Rolling Stone americana de março. Em março de 49, a Victor lançou uma série de compactos nesse formato, indo do clássico ligeiro ao rhythm'n blues, passando pela música infantil. Um desses singles, e que se tornaria clássico, é "That's All Right Mama" com Arthur Crudup.

Browne compara o impacto do 45 na época como Iphone nos dias de hoje. Nos anos seguintes, essa seria a mídia que iria ser a base do pop mundial.

Ele fala da ascensão e queda do compacto, principalmente com relação à adoção, por parte dos artistas, do álbum em detrimento do single, no final dos anos 60 e do advento do CD duas décadas depois. Porém, entende que a concepção do single como modelo de formato de lançamento e divulgação de música popular passou pela era do Mp3 e ainda resiste, em plena era do streaming.

Uma coisa que a matéria da Rolling Stone não falou ou desdobrou propriamente é como o surgimento do 45 mudou tanto a forma de produção quanto a de consumo de música popular.

Com o advento dessa tecnologia, o eixo de produção de discos saiu progressivamente da cena musical de Nova Iorque e da Broadway e deslocou-se para outros centros do país, como o meio-oeste e o sul. A partir do 45, surgiram dezenas - e depois centenas - de pequenas gravadoras, ao mesmo tempo que facilitou o trabalho dos disk-jockeys quanto à armazenagem e operação das bolachinhas.

Ao mesmo tempo, a partir da aparição desses pequenos selos, acontceria  uma drástica horizontalização da produção musical no país. Longe do Tim Pàn Alley, essas gravadoras iriam propagar largamente, com o auxílio de rádios locais, outros gêneros, como o country e  o rhythm'n blues no final dos anos 40 e o rock, na década posterior.

Para o surgimento do rock, com a descoberta de um mercado ainda pouco explorado pelas majors (Decca Columbia e Victor) que era o público jovem por parte desses selos, tudo seria uma questão de tempo.

Um exemplo é a Sun Records. Ela nasceu um ano depois do advento do 45, com auxílio de Jim Bullet da Bullet Records, de Nashville. Jim era o dono e Sam Phillips era caça-talentos de artistas para o selo. Na época do surgimento da Sun, a Bullet havia conseguido um inesperado sucesso nacional com "Near You" de Francis Craig.

Porém sendo obrigado a continuar o êxito obtido com o disco, a Bullet não conseguiu ombrear as operações das grandes gravadoras e quebrou, mais ou menos como time pequeno quando é campeão e é obrigado a pensar grande. Pensando localmente, o cauteloso Philips preferiu concentrar-se estritamente no mercado regional e já contando com a tecnologia do 45.

Seu horizonte era o sul com suas emissoras e o seu respectivo público. "Near You" um fox-canção para crooners com voz de travesseiro do estilo Bing Crosby ou Dick Haymes - era o tipo de música que fazia o gosto do mainstream e seu público radiofônico moldado na era do swing, que em 49 vivia um lento declínio com relação à preferência dos ouvintes.

Sam não queria swing. Ele queria o rhythm'n blues. Ao contrário da Bullet, a Sun deu certo porque apontou para o mercado local, que consumia a música local ao invés de querer disputar o mercado titânico e estabelecido do Tim Pan Alley. A Bullet, por sua vez, quis bispar um mercado além da sua húbris e quebrou.

Ao contrario do Brasil, o esquema rádio-gravadora praticamente moldou a história do rádio americano. Victor e Columbia jogavam nas duas divisões. Logo não havia nada de errado que esse modelo se insurgisse e se propagasse embora em pequena escala.

O problema é que essa mesma cadeia produtiva em pequena escala podia incomodar os grandes. E os DJs, tendo cada vez mais autonomia para caçar talentos, gravar e lançar essa produção musical no éter, poderiam agora sim ameaçar a sólida hegemonia dos mandantes do campo da música ianque. Ele teriam dessa vez, cada vez mais, o público do seu lado.

Quando estourou o escândalo da payola, em 1960,  'patrocinada' pelas grandes gravadoras e editoras musicais estadunidenses, o foco eram justamente esses DJs que, naquele momento, haviam tornado-se verdadeiros corsários da música, dessa vez, ao contrário dos tempos da Bullet versus Tim Pan Alley, realmente afrontando as majors.

Ou seja não era apenas pelo fato de payola tratar-se de contravenção. As gravadoras queriam destruir os DJs menos pelo que eles faziam por debaixo dos panos do que pelo que eles representavam: acabar com a idade do ouro do Tim Pan Alley. Essa é outra história e com seus desdobramentos.

Mas para fazer isso eles teriam que depois abraçar o rock e toda a cultura que floresceu pelos aos 50,  como corolário da popularidade do compacto de 45 rotações,  que esse ano completa seus 70 anos de surgimento.

Saturday, March 09, 2019

60 anos de Chega de Saudade

O disco


Ninguém lembrou mas eu lembrei: dia 8 marcou a passagem dos 60 anos do lançamento do álbum Chega de Saudade, do João Gilberto.

Lembro que a primeira vez que ouvi "Desafinado" num programa de rádio sobre a história do disco produzido pela BASF. Era só um trecho mas eu fiquei com aquele trecho de música.

Quando eu era guri, eu detestava MPB. Porém, não sei por que simpatizava com essa música, que achava bem tocada embora parecesse uma besteira, uma novelity song qualquer. E, de certa forma, era. Tanto que, no começo, ninguém queria saber dela. Newton Mendonça e Tom Jobim tentaram convencer Cauby Peixoto e Ivon Curi a gravá-la mas em vão.

O João a gravou em fins de 58 e ela se tranformou no pináculo de um movimento de renovação na música brasileira que se insinuava desde o começo dos anos 50 mas que não tinha uma cara. "Desafinado", com "Chega de Saudade", seria essa cara.

Um dia eu descia a Cristóvão Colombo quando passei num brechó. Na pilha de discos [que não era a especialidade do brechó] que ficava num canto sempre debaixo do gato da dona do lugar. Procurando alguma coisa de rock deparei-me com uma cópia do elepê Chega de Saudade.

Lembrei que gostava de Desafinado  queria ter a faixa inteira. O problema é que eu detestava MPB. O que fazer, como diria o camarada Lênin? Resolvi comprar. Se não gostasse do resto do álbum, ia enfiá-lo na coleção de discos dos meus pais que, naquela altura, nem ouviam mais discos.

Ouvi o Chega de Saudade centenas de vezes. Posso dizer que tive uma epifnia fatal. Eu descobri o Brasil com esse disco do João Gilberto. Ouvia direto: era um disco breve; logo descobri os outros, e queria mais.

Queria saber tudo sobre MPB desde a Velha Guarda até os discos ao vivo da Maria Bethânia do meu pai. No mesmo brechó, descobri aqueles fascículos da Abril Cultural sobre a História da MPB e resolvi ir fundo nessa experiência. No meu aniversário do ano seguinte, ganhei o livro do Ruy Castro sobre a Bossa Nova.

Tudo foi consequência daquele disco. Porém, naquele tempo cavocar aqueles discos que o Ruy cita era uma tarefa impossível. Naquele tempo, havia um esquecimento a respeito da Bossa Nova.

O próprio Ruy fala que um dos problemas durante a pesquisa do livro foi a indiferença por parte das suas próprias fontes. Alguns sequer queriam ser associados ao movimento, tamanho era o apagão cultural que a memória a respeito do assunto gozava.

Hoje existe uma bibliografia considerável sobre MPB, como a coleção da Editora 34; monografias, teses e dissertações sobre o assunto, canção brasileira analisada à luz da Semiótica, o escambau. Mas esse é um movimento recente. Há coisa de três décadas atrás, o descaso a respeito da pesquisa e de interesse sobre o assunto era grande.

Acho, inclusive, que o livro Chega de Saudade, que depois virou best-seller e ainda é uma referência capital em história da MPB [acho que o Era dos Festivais, do Zuza Homem de Mello, não existiria sem o Chega de Saudade. O mesmo Zuza desencavou os tapes perdidos do Fino da Bossa e lançou em CD anos depois, pela Velas] e é pai de tudo o que saiu depois dele.

Aliás, ao contrário de quando ele saiu, hoje, com a Internet, é uma experiência muito mais intensa ler o Chega de Saudade podendo ouvir, a um clique, praticamente todas as músicas que o Ruy cita no livro, desde os 78 rotações do Stan Kenton e dos Modernaires e a Sinfonia do Rio de Janeiro, as gravações do João feitas pelo Chico Pereira até os mitológicos álbuns da Elenco, hoje tem tudo na Internet.

E tudo por causa daquele disco do João Gilberto. O engraçado é que, ao contrário do que possa parecer, foi um parto difícil. No final dos anos 50, a moda ainda eram os vozeirões e o diretor artístico da Odeon, o único selo que quis gravá-lo, era ninguém menos que Aloysio de Oliveira.
Mesmo sendo "moderno", pois vivera nos Estados Unidos com Carmen Miranda, ele era um homem do seu tempo: era da Velha Guarda. Quando a Odeon lançou o dez polegadas com as modernosas canções da peça Orfeu da Conceição, Aloysio colocou Vicente Paiva para cantar "Se todos fossem iguais a você".

A gravação soa bizarrísima aos ouvidos de hoje, mas essa era a estética da época: samba canção com vozeirões e pandeiros. Foi por conta de alguns maestros de gravadoras mais modernos, e entre eles estava Tom Jobim, que, dentro de um modelo dado, passou a recriar o samba-canção com um approach mais camerístico.

Foi ele que entendeu João Gilberto quando ele queria apenas um guia telefônico com vassourinhas de percussão.

Claro que havia a briga com Aloysio a ser resolvida. Ele bateu pé, já que quem vendia naquele tempo, além do citado Cauby, era o Anísio Silva, e era um cantor que vendia tanto, a ponto de encher as burras da Odeon de dinheiro e  que, de certa forma, foi isso que, de certa forma, "patrocinou" a loucura de gravar um maluco como João Gilberto.

Mas Aloysio bateu pé e quem o convenceu a gravar JG foi seu amigo  dos tempos do Bando da Lua, Dorival Caymmi. O autor de "Marina" naquele tempo pertencia ao cast da gravadora, também pertencia ao time dos que vendia bem.

Ou seja, aquele PS: que aparece na contracapa do disco, onde Tom diz que Caymmi concorda com o talento do conterrâneo, era mais do que um green card. Ele com efeito viabilizou os compactos "Chega de Saudade" e "Desafinado" que permitiram a aventura de um long-play, algo que, em 58, era um formato reservado somente a grandes artistas, enquanto João era um "baiano bossa nova de vinte e sete anos" que era ligeiramente conhecido pelo baixo cafe society do Rio dos anos 50, que depois de uma lacuna de meses, reapareceu tocando aquele violão certinho atraindo todo mundo da Zona Sul como o flautista de Hamelin.

A Bossa Nova chegou ao disco também porque virou moda e saiu do Beco das Garrafas e arredores e foi parar em São Paulo, onde a música comercialmente falando acontecia no Brasil. Chega de Saudade fez carreira nas emissoras de rádio e nas lojas de disco de lá e foi a partir de São Paulo que João Gilberto viraria um nome nacional. Porém, quando essa moda começou a fazer água no Brasil, ela já já havia empestado o mundo para sempre.

O curioso é, pouco tempo depois, com a Bossa Nova já estourada, Aloysio deixaria o emprego na Odeon e iria fundar um selo especializado no gênero, a supracitada Elenco, inspirada em pequenas gravadoras de jazz, como a Blue Note. Um selo que marcaria época mas que soçobraria ante à falta de tino comercial para negócios de seu idealizador. Mas essa é uma história para um outro post.