Sunday, May 19, 2019

Love Me or Leave Me

Doris Day


Num interessante ensaio*|, Ruy Castro defende a tese que Doris Day é uma das, se não a mais subestimada cantora norte-americana de todos os tempos. E isso ocorreu por conta de um tabu, que a teria estereotipado como uma espécie de eterna "namoradinha da America".

No entanto, ele observa, a carreira de Doris, que morreu na semana passada, é uma trajetória de exploração de sua imagem e todo o sofrimento de ser uma artista mulher num mundo masculino. Ele cita Will Friedwald que,  no livro Jazz Singing: America's Great Voices from Bessie Smith to Bebop and Beyond, a coloca entre os cinco maiores intérpretes americanos do século XX,  junto com Bing Crosby,  Frank Sinatra, Louis Armstrong e Billie Holiday.

Castro diz que esse tabu em torno de Doris fez com que ela sumisse da memória das pessoas. Havia, e ainda há,  um silêncio sobre ela. Doris,  com sua maldosamente chamada 'castidade promocional' nas telas,  parecia ser a antítese da Nova Holywood. Em pouco mais de dez anos,  sua carreira estava encerrada.

Ao mesmo tempo, a imagem que ficou dela é a de suas comédias água-com-açúcar que,  até coisa de umas duas décadas, ainda apareciam nas madrugadas da Globo.

Se sua vida parecia colorida nos filmes com Rock Hudson e Tony Randall, a realidade foi bem diferente: Doris cresceu com a ausência do pai,  que deixou a família com uma amante que ele levava para namorar em casa. Teve um irmão que, em consequência de um traumatismo craniano, precisou de cuidados especiais pelo resto da vida.

Com 13 anos ela ficou até 17 no gesso por conta de um acidente de carro. Em recuperação, ele desenvolve o talento de cantora. Foi levada pelo irmão de Bing Crosby,  Bob, para ser crooner na banda de Les Brown, em Chicago. Lá ela conheceu e envolveu-se com um trombonista,  Al Jorden. Ciumento, maluco varrido e paranóico, assassino e com tendências suicídas, ele batia em Doris constantemente.

Ela pedia ajuda da família de Jorden mas,  segundo ela,  eles achavam que ela tinha lá os seus motivos para apanhar do marido. Ele continuou abusando dela,  mesmo estando grávida de Terry (Melcher, mais tarde produtor dos Byrds e dos Beach Boys),  é um milagre que o menino tenha nascido.

Doris pediu o divórcio. Levou,  mas Al não se conformava: perseguia-a e ameaçava sequestrar Terry. Depois de meses,  ele morreu ou suicidou-se, jogando o carro barranco abaixo. Nesse meio tempo, ela viveu um dilema: ou casar-se e virar uma dona de casa ou retomar a estrada com Les Brown e seguir o sucesso que conquistou com sua versão para "Sentimental Journey".

Diferente do que possa parecer, a vida de crooner era difícil para um cantor, imagine para uma cantora. Na era do swing, as big bands viviam em turnês, viviam na estrada quase pelo ano inteiro, muitas vezes cruzando os Estados Unidos num inverno glacial, em ônibus sem calefação e sem dinheiro ou tempo para ficar em hotéis. Ao mesmo tempo, precisava dar conta da lavanderia das próprias roupas e ensaiar com a orquestra, tudo peripateticamente, ou seja, na estrada.

Além de Doris, todas as crooners tiveram que submeter-se a isso: Jo Stafford, Helen Forrest, Peggy Lee Anita O' Day, Marion Hutton. Enfim, todas eram obrigadas a lavar a roupa na pia. Claro que todos passavam por isso na estrada, mas elas estavam muito mais expostas, muitas sequer tinham vinte anos, viviam meses longe de casa e tinham que estar frescas no palco. Sorte de Doris, diz Ruy, que Brown era compreensivo com ela e, além disso, não admitia bêbados ou drogados em sua banda, uma atitude rara em matéria de show biz.

O sonho delas, e de Doris, era amealhar sucesso o bastante para seguir uma carreira solo. Era pois, viver essa etapa ou desistir. Ela foi salva pelo cinema, em 48, quando Sammy Cahn a levou para um teste com Michael Curtiz para o musical Romance em Alto-Mar. Nos próximos sete anos, ela estrearia dezoito filmes para a Warner.

Em 55, livre do contrato com a Warner, que era menor no reino dos céus hollywoodianos, ela vira freelancer, e atua pela MGM, quando faz Love Me or Leave Me, uma cinebiografia de Ruth Etting. O filme, aliás, mostra pontos de contato entre as duas: muita coisa que Etting passa na história não estava longe da própria trajetória anterior de Doris.

Love me Or Leave Me talvez tenha sido o mais "realista" dos seus filmes onde Doris estava mais para uma persona de fita noir do que da imagem que ela incorporaria a partir de 55, com o lento ocaso dos musicais de Hollywood.

Nessa mesma fase, ela casou com Marty Melcher. Com o tempo, ele provaria ser tão nocivo para ela quanto seu primeiro marido. Junto com Jerry Rosenthal, ele explorou dezenas de atores. No caso dela, Melcher torrou toda a grana dela em negócios furados, de redes de hotéis a ações. Quando ele morreu, no fim dos anos 60, Doris descobriu que estava falida. Teve que vender a casa para processar rosenthal. Depois de anos em tribunais, ela finalmente pode reaver parte da sua fortuna. Mas nesse momento, ela já era uma "has-been" em Hollywood.

Ruy diz que, mais do que isso, havia um silêncio sobre ela. Após Sinatra, diz ele, ela fora a única artista americana que amealhou uma carreira triunfal no show-biz. Tornar-se has-been passava por toda uma mudança nos costumes nos anos 60, que jogou sua imagem para o paleolítico da história do cinema e da música que, naquele momento, preferiria Joan Baez, Grace Slick ou Janis Joplin.

No fim do ensaio, Castro perora: "de algum tempo para cá, os arqueólogos do século 20 voltaram timidamente a ouvir Doris Day. E ao fazer isso, começaram a desconfiar que ela é a mais subestimada das cantoras americanas, um aparente contra-senso, quando as listas de revistas como Cashbox e Metronome mostram a quantidade de vezes que ela esteve entre os top ten nos anos 50.

Esse sucesso, diz Ruy, não quer dizer que ela fosse apenas uma cantora popular. "Seu território musical compreendia a Broadway, Hollywood e o Tim Pan Alley".

Outros críticos, mais alertas, entende, têm se dado conta que a despeito da enorme popularidade de Doris, ela era uma verdadeira cantora de jazz. Ela tinha swing, e não precisava de scats e vibratos. Seus discos hoje podem ser encontrados na internet, ao contrário de quando Ruy escreveu o ensaio, em 98.

Esqueça "Que Sera". Hoje podemos ouvi-la em discos de sua fase crooner, com Harry James ou Page Cavanaugh, Frank De Vol ou Percy Faith. Infelizmente, foi preciso que Doris partisse para que percebêssemos isso. O tempo certamente irá fazer justiça à ela.



*| CASTRO, Ruy. Saudades do Século XX. Companhia das Letras, 1998. 

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