Wednesday, September 25, 2019

O coelho errado




Sobre a polêmica do Mílton Nascimento a respeito das paradas de sucesso atuais, eu gostaria de contar uma história.  Temo que ela não tem muito a ver com o assunto da semana mas que, de certa forma, pode até ter. É a respeito de uns apontamentos  que o André Midani escreveu na sua autobiografia (1) sobre os bastidores do mercado da música que ele, como produtor atuando no Brasil, no México e na França, conheceu mais do que ninguém.

Nos anos 80, a expansão da indústria fonográfica fez com que conglomerados da comunicação comprassem todos os selos independentes, e passaram a ditar as regras. Isso mudou a política das gravadoras, que, segundo ele, trabalhavam exclusivamente em função da formação de um cast.

Antes, o artista era como se fosse criado numa incubadora, levando em consideração inclusive perdas e danos, até que esse determinado artista se consolidasse perante ao público e formasse uma comunidade de fãs. A partir dali, tudo muda.

"Ficou longe a época em que as gravadoras eram dirigidas por quem gostava de música, sendo, ao mesmo tempo, bom administrador", diz Midani. "Ficou longe a era da competição amigável e ética entre as companhias. De súbito, os conglomerados disseram “Fora com os líderes criativos e dentro com os tecnocratas”. Para eles, os contratos artísticos estavam se tornando custosos para deixar a direção dos negócios nas mãos de gente com "paixão pela música".

André Midani dizia que os tecnocratas viviam em sua esfera específica. Quanto mais competentes e quanto mais tudo andasse no azul, maior sua distância com relação aos artistas. "Pouco a pouco, aos olhos da maioria dos tecnocratas", os artistas viraram inimigos, considerados pouco confiáveis, pouco sérios e sem o menor senso de responsabilidade".

Ele lembra a velha política das rádios antes do jabá. Comparando, como as progressive radios americanas dos anos 70, quando o DJ tinha certa autonomia na hora da fazer a programação. Sobre os conglomerados, seu objetivo era a recuperação dos investimentos de imediato; assim,  os lucros se tornaram o único elemento de importância.

A partir desse ponto, ocorre o contrário: se num passado recente, a gravadora vivia em função do artista, agora ocorre o inverso. E o foco passa a ser a canção, e não necessariamente o artista.

Esse vinha por último e, se colar, colou. Midani culpa a adoção desse modelo à prática de programas televisivos de caça-talentos que, como se sabe, existem até hoje (claro que esse agenciamento de novos talentos é anterior aos anos 80). Uma fórmula prática, embora, segundo Midani, guardava seus efeitos colaterais. "o que parecia ser uma solução passou a ser o início da decadência", explica. "A canção de sucesso é imprevisível por natureza — pois a vida de um hit é efêmera, mas a vida do artista, não".

De acordo com ele, trabalhar a música em vez do artista mudou o comportamento da indústria fonográfica e a obrigou a introduzir novas técnicas de marketing. "Quando a música se tornou o fator preponderante, e não mais o artista, o público passou a adotar uma nova postura", anota. "A canção, e não mais o disco inteiro, tinha que ter começo, meio e fim, e se transformar num “jingle da vida” durante os três minutos de sua existência... Todas as estações de rádio foram obrigadas a tocar a mesma música".

Se essa prática virou padrão naquele tempo, imagine hoje, na era do streaming, quando volta a prática do single? Sem contar com a facilidade de lidar com tendências de mercado no mundo da música, qual é a moda do momento para que uma gravadora adote, num perspectiva industrial, a produção fonográfica, que vai desde a adoção de compositores profissionais, lançamento de promos no Youtube e agendamento de shows. Hoje, tudo ficou mais cínico e pragmático. O mercado hoje, cada vez mais, em tempo de oligopólios, concentra cada vez mais. E, quanto mais concentra, mais exclui. E o corolário são as paradas de sucesso. Não é nem uma questão de ser música boa ou má, mas, sim, de existir cada vez mais formulismos e menos diversidade. E quanto a isso, caro leitor, não há o que fazer. 

Midani porém lembra que a catituitagem é uma antiga prática, e remonta a música lírica. Pessoas eram pagas para aplaudir ou vaiar cantores. E quem lograva sucesso em cidades como Marselha, passando por essa prova de fogo, podia então tentar a sorte em Milão ou Paris. Ou se fracassar, ficar por lá mesmo.

Ele diz que, nos anos 1960, (lembremos: mesmo depois da famosa CPI da Payola que acabou com a carreira de Alan Freed e que enquadrou Dick Clark) era comum contratar promotores de rádios independentes (as grandes emissoras das grandes cidades sofriam o controle da legislação do jabá) para promover seus 'projetos'. A forma de pagamento ia desde viagens para shows até prostitutas, drogas e dinheiro. Como se sabe, isso se transformou numa cultura, até ser institucionalizada.

No caso americano, Midani anota que quando a máfia descobriu que as gravadoras chegavam a pagar cerca de 300 mil Dólares para promover um single, ela se infiltrou no meio desses promotores e enquadrou o esquema a seu favor, com a Network. A partir daí, a Máfia iria doutrinar as rádios estadunidenses. Essas, por sua vez,  passariam a tocar exclusivamente as músicas que esse sindicato indicava.

Para se ter ideia da força desse esquema, diz Midani, a Máfia também se infiltrou nos departamentos de promoção de rádio das próprias gravadoras, chegando a peitar os chairman das majors que os desafiassem.

Em 1979, Dick Asher, então presidente da CBS, resolveu enfrentar a Network tendo como cavalo de batalha o The Wall, do Pink Floyd. A banda lotava estádios e o disco estava na casa dos 2 milhões de cópias vendidas, rumo ao 1º lugar.

Quando a Network soube que Asher instruiu seu staff a não pagar para a execução do single da banda, eles o chamaram. E ele recusou-se a atendê-los. "Diante de sua recusa em recebê-los", diz Midani, "a máfia deixou o seguinte recado: a música passaria, na semana seguinte, para a 10ª colocação, na outra cairia para a 50ª, na outra semana, para a 94ª, até desaparecer para sempre, apesar da demanda do público".

Diante da expectativa provocada pela Network, Asher percebeu, pálido de espanto que o percurso do single seguiu exatamente o trajeto descrito por eles. Foi quando as gravadoras perceberam que não somente a Network podia criar o sucesso, mas também o contrário. "O Dick acabou pagando, e a música subiu imediatamente para o 1º lugar", conclui Midani.

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Peguei esse exemplo a fim de tentar explicar que, quando criticamos um tipo de moda hegemônica no campo musical, em qualquer parte do mundo, sempre sobra para o artista, que tem que passar pelo injusto corredor polonês do gosto popular. Eu muitas vezes observo as pessoas pichando os artistas que fazem sucesso por aí. No caso do Mílton, ele acabou virando uma espécie de 'apelo à autoridade' para que o senso comum se insurgisse contra as paradas, cumprindo o seu papel. Porém, na verdade, quando estamos descendo o malho nos artistas de sucesso da semana, podemos estar tentando acertar o coelho errado. Algo botou eles lá. Nos anos 1970, o governo criou aquele bordão de "música é cultura" a fim de estimular o mercado da música, e que vinha impresso nas contracapas dos discos. Pois bem, de certa forma, não podemos nos iludir porque, no âmbito da indústria cultural, (e posso aqui estar proclamando o óbvio)  música também é dinheiro. Então, quando você vocifera contra o artista que faz sucesso e você não gosta, você é apenas mais um cão que ladra enquanto a caravana passa. 



(1) ANDRÉ MIDANI, Música, ídolos e poder: do vinil ao download. Nova Fronteira, 2006.



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