Thursday, August 22, 2019

O último e o primeiro homem

Dante


Italo Calvino dizia no seu Por que ler os Clássicos que toda leitura de um clássico é uma releitura, pois o leitor passa por um livro que foi muito lido e comentado, além de estar presente no imaginário ou cultura de até quem nunca o leu. Veja o caso de Don Quixote. E Dante. Já temos o conceito de dantesco, as imagens aterradoras do inferno, as pinturas feitas a partir da obra, etc. De repente, a leitura pode parecer enganadora: o livro não é nada do que eu imaginava, como quando li a Ilíada pela primeira vez, ou era muito mais do que eu esperava, como no caso da citada obra de Cervantes. Sem falar das barreiras e problemas da tradução, o que levava Borges a dizer que a exploração de uma obra, como no caso da Divina Comédia, é uma expedição sem fim. Isso é ruim e bom por vários motivos. Bom porque é um longo caminho de conhecimento pela frente; ruim porque nunca iremos apreender todo o conhecimento possível.

Eduardo Sterzi tem um volume, Por que ler Dante (Globo, 2005) que é basilar como uma introdução ao autor florentino. Ele parte de todo o contexto medieval até abordar as influências e a forma como Dante reinventou a poesia provençal e de como através dele o poeta chegou à sua fórmula peculiar de produção, a terza rima, e o uso do vernáculo em lugar do latim.

Ele ambienta o período medieval para citar Focilon e Vasari: para o primeiro, a gestação da
renascença começa no medievo. Vasari aponta o Trecento como uma prenuncia a Renascença. Por fim,  que entende ão haver uma quebra a Renascença é o corolário de uma evolução constante e contínua desde o século XII. Lembra que foi nesse período que aparecem as primeiras universidades. E fala do impacto da descoberta de toda a obra de Aristóteles crucial para a  definição da modernidade em Dante. O filósofo, que estava num index na Universidade de Paris, ganhou um novo status quando o tomismo é adotado pela Igreja de forma a combater heresias europeias. Não é a toa que Dante o coloca no seu Paraíso.

Com o gótico, surgem as primeiras manifestações poéticas em vernáculo, as ordens franciscana e dominicana. Por fim, nesse ponto, Sterzi coloca a Comédia como o momento decisivo para a fixação de uma cultura vernacular para enfrentar a hegemonia do latim na Europa. No campo religioso, o Concílio de Lyon lança a ideia de purgatório, espaço importante na escritura do poema dantesco. Ao compor sua obra, Dante constrói o futuro com a evocação do passado. Robertis observa: ele é  a última voz do Medievo. O liquidante de um mundo em declínio mas ao mesmo tempo o anunciador de uma "vida nova".

Le Goff aponta a Comédia como um testamento poético do século XIII. O fim de uma era e o começo de outra. Ele é o último homem medieval: "se Dante se deixa levar até essa iluminação na qual se esquecem todas as coisas terrestres se deve que a sociedade e os valores que ele amava já desapareceram aqui embaixo e as luzes do verão cederam o passo às sombras mescladas com chamas do outono à crise da cristandade medieval".

Há na Europa uma grande crise financeira nessa época. Episódios de obscurantismo, refluxo econômico, grandes obras inacabadas, guerras que, enfim, prenunciavam a crise do feudalismo. Esse é o "difícil parto da modernidade" para Le Goff. O que parece crise também tem cores de renovação  o uso da expressão 'ars nova' por exemplo]. "dos desastres da guerra nascerá um mundo verdadeiramente novo [...] a resposta senhorial à crise dos anos 1200  1300 provocará a liquidação da Idade Média".

Diz o autor que a Vida Nova de Dante plasma essa incerteza dos novos tempos: da mesma forma que profetiza uma nova ordem, ela ainda está eivada com resquícios daquele mundo que agonizava. Do trovadorismo, Dante irá inspirar-se para passar a usar o vernáculo no lugar do latim. No seu apogeu com Cercamon, no século X, a poesia occitana espalha-se pela Europa. Nessa época ela mistura-se com a propagação de uma heresia: o catarismo, que é perseguida pela Igreja que, por sua vez, inclusive, propõe uma cruzada européia contra eles. Muitos acusavam os trovadores de professarem tal crença embora não houvesse nenhuma ligação suficientemente comprovada entre os poetas e as heresias.

A cruzada contra os algibenses ou cátaros provocou o fim daquele movimento mas, também, a sua propagação pelo mundo afora, como a Espanha e Itália. Na época logo anterior a Dante, o trovadorismo já havia saído do occitano e se reencontrado em idiomas locais, como aconteceu em Portugal.  Como diz Sterzi, permanece o amálgama de amor e desejo, como fora concebido pelos trovadores.

Em sua alquimia literária, Dante flana do trovadorismo inicial para uma concepção metafísica mais afeita ao espírito toscano de seu tempo e que se tornaria conhecido como doce estilo novo, um processo de retomada e superação que é o cerne daquele pensamento da época. O amor sexual sublimado passa a ser em seu novo contexto porém um amor marcadamente espiritual e simbólico conotativo de relações sobretudo imaginárias (p. 69) . E o Vita Nuova seria antes da Comédia decisiva para os desdobramentos da própria literatura européia e o primeiro a percebermos o que seria a literatura italiana. Mesmo que houvessem outros exemplos contemporâneos registrados em códices este é, com efeito, o primeiro livro e assim concebido como tal na emergente produção não escrita em latim na Europa.

Com o tempo, diz Sterzi, os trovadores empobreceram e levaram sua arte para o ambiente burguês. Ao mesmo tempo, línguas regionais passaram a ocupar o lugar da linguagem comum occitânica. Permanece contudo aquela relação entre poesia e amor, linguagem e desejo inventado por eles (p. 65)
Giacomo da Lemtini adota o vernáculo local e elabora as bases do soneto.  Dante herda esse espírito em sua lírica da juventude, ao passo que parte para a abordagem metafísica própria dos toscanos e que, mais tarde, ele cunharia como o “dolce stil nuovo”.

Esse processo de retomada e superação já se dava nos poetas anteriores, e não seria diferente com Dante. A abordagem do amor, no entanto, deixará, no novo ambiente italiano e nesse processo do amor sexual para o espiritual. A relação efetivamente cortesã, ao mesmo tempo, deixa o universo cortês para uma relação sobretudo imaginária (p. 69). É o amor platônico, sublimado.

No caso da Vita Nuova, a obra que plasma esse novo estilo, é considerado por Sterzi como o “primeiro livro concebido e executado como livro em toda a então emergente produção literária nos vernáculos europeus” (p.72). Ao mesmo tempo, se mostra não exatamente como um livro de poemas, mas sim um compósito que alterna prosa, poesia, filosofia, manifesto de uma nova poética, diário e ensaio de autobiografia, como diz Maria Corti (p.74).

Dante pode ser considerado o primeiro a ter uma certa noção “histórica” ou “contextual”, de diálogo com o passado, da poesia como algo dado no tempo e no espaço e como algo que ele possa pensar, tanto na própria sincronia da poesia quanto na trajetória da poesia vernacular desde os occitanos até ele. Ou , como quer De Robertis, segundo Sterzi “a certidão de nascimento da consciência literária” da Itália. Para ele, a prosa é o fato novo em Dante nesse momento.

No entanto, a instância que, por sua vez, legitima essa prosa e dá sentido ao testemunho da prosa é, justamente, a poesia (p.77). Ou, como diz Giulio Bertoni (idem), ele foi capaz de criar uma prosa que ainda não existia. Nessa perspectiva teórica, ele pensa a arte literária em todas as suas formas e relações, sendo, ao mesmo tempo, o trovador “submisso” às leis de cortesia como poeta e o prosador imbuído de autoridade para pensar sobre o ato de escrever, tudo amalgamado a partir de uma perspectiva subjetiva que também se processa em Vita Nuova (p.78).

Na nova concepção poética, anota Sterzi, Dante lida com quatro tropos ideais, que são a memória, o segredo, o amor e a morte. Nesse sentido, o amor transcende a própria morte do ser amado. Se para a lírica provençal isso poderia significar o fim, para Dante é o começo. O fim redimensiona o sentimento e a grandeza do sentimento da coisa amada; é na interioridade do poeta que a dama ganha existência (p.80). A morte afiançaria por sua vez a inextinguibilidade da distância: a necessidade da morte é a “necessidade da distância levada ao extremo e é a necessidade da própria poesia enquanto fundação do sujeito na linguagem ( p.81).

Dada a influência manifesta de Dante na lírica em Petrarca como “tomada de consciência e guinada numa realidade em formação (idem;) poderíamos entender, de acordo com Sterzi, que a Vita Nuova é uma “teoria da lírica”.

Seguindo à Vita Nuova, Dante passa por um processo de reelaboração de sua musa: a Beatriz da obra anterior passa por uma espécie de formulação do material figurativo (Convivio, De vulgari eloquentia) como uma estação rumo à Divina Comédia que, para Sterzi, também é outro recomeço (p.92).

A partir de 1293, Dante trabalha nesses dois modelos, a antiga lírica e este, rumo à sua obra capital, embora sua atividade política tenho tornado seu ofício literário cada vez mais esparso e lacunar. Contudo, como observa Cesare Vasoli, segundo Sterzi (p. 93) vê-se a resuluta pasagem existencial  e poética da Vita Nuova rumo à uma complexa elaboração filosófica de tratados como a Monarquia.
De acordo com o Starzi, muito do que fora teorizado, tanto neste tratado quanto no De vulgari eloquentia (curiosamente escrito não em língua vulgar, mas em latim), como projeção ideal, muito do que encontraríamos na filosofia da Comédia.

A ligação entre as duas etapas, do Convívio ao seu grande poema teológico residem inclusive no fato de que Alighieri abandona o tratado em favor de seu grande poema (aliás, ambos os tratados são abandonados nesse momento), a partir de 1307. Também muitos elementos que Dante elabora na sua genealogia da poesia, desde os occitânicos até ele, no De vulgari eloquentia seriam retomados, de forma tematizada, no seu reencontro com Beatriz, no Paraíso. Ao fazer essa genealogia da poesia de antes com a sua época, ele ressalta tanto a importância desse movimento quanto a necessidade de uma ruptura.

A respeito desse tráfego de influências e misturas, ao fazer seu estudos sobre a linguagem, Dante postula que haveria uma unidade entre o francês, o occitano e o italiano, no plano poético, como uma "poesia das três línguas". Seu tratado busca uma periodização da história da poesia européia desde o occitano até ele, num compósito de historiografia e autobiografia. E ao mesmo tempo, e considerado texto fundador da lírica amorosa já vernacular.

Sterzi salienta pois a importância de textos como Rimas, Convivio, De vulgari... mas que, em certo momento, ele focou seu objetivo totalmente na Divina Comédia, que eu comentarei, se possível, em outra ocasião.

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