Thursday, September 26, 2019

De volta a Abbey Road

Foto alternativa para a capa do disco

Primeira lembrança que eu tenho do Abbey Road é a versão que eu tinha em cassete, daquelas escrita ESTÉREO assim mesmo. As fitas vinham com qualidade de som melhor que os discos em vinil, na maioria das vezes.

Lembro de ouvir, ouvir, e o som não me entrava na cabeça. Não conseguia memorizar o lado B direito, mas era divertido de ouvir. Parecia algo meio improvisado de ouvir. Mas, naquele tempo, eu não era capaz de inferir nada a respeito do disco, mesmo. Mas sentia que ele tinha algo que me prendia. Gostei de cara de "Something". Essa eu tinha certeza que eu tinha ouvido antes, em algum lugar, de alguma forma. Quando eu comecei a ouvir os Beatles, eu ouvia pela música. Não tinha uma noção orgânica ou de conjunto do conjunto da obra ou do contexto geral e da forma como a evolução da banda se relacionava com outras bandas, outras cenas musicais.

Toda bibliografia era muito escassa e o que existia estava esgotada e fora de alcance. Sem falar que, na minha ótica de fã, eu teria que me descolar dessa fissura, palmilhar outros caminhos musicais, aprender inglês, ter noções de música e, depois, retornar aos discos dos Beatles. Me interessei por eles porque eu gostava de rock dos anos 50 e, por coincidência, eles também. Na verdade, os Beatles me conduziram para o resto do espectro da música. Não teria ouvido jazz, música clássica ou experimental ou progressiva se não fosse por eles. Mas então eu empreendi uma longa jornada que me trouxe de volta a eles. Porém, tentando entender outras coisas em sua música, em outras perspectivas. Não mais o fã chato que sabe quantas tomadas eles levaram para gravar determinada música ou em que dia saiu o disco tal (confesso que ainda sei alguma coisa de fã chato). Por exemplo, hoje eu fico pensando como um cara como John Lennon, com apenas vinte e poucos anos, fosse capaz de escrever uma letra como "In my Life". Isso sempre me pareceu uma epifania de uma vida inteira, não de um jovem que, há apenas alguns anos antes, estava destruindo cabines telefônicas em Hamburgo.

Na verdade, eu era fã sem ser fã, porque gostava mais das trucagens de estúdio e bastidores de gravações. E dos bootlegs que mostravam esses detalhes. Essa engenharia genética de como eles criavam uma canção, da influência de determinada canção, da forma como eles gravaram, de como eles descobriram uma nova tecnologia para gravar e montar uma música e de como essa nova tecnologia criou todo um novo ambiente para a criação musical deles. É claro que, nesse momento, eu volto a ser o fa chato, embora acredite que é por uma boa causa.

Eu fissurava muito na fase iê iê iê deles. Mesmo incipientes, eles eram criativos e prolíficos. Achava incrível a capacidade dos Beatles em fazer um álbum de 14 faixas em tempo recorde, tirando música da cartola como se fossem coelhos, e ainda por cima ter que produzir mais duas faixas pra um single para chegar ao topo das paradas, e cada vez mais sofrendo uma concorrência feroz. Se no começo os Fab disputavam com Kenny Linch, Gene Pitney ou Helen Shapiro, anos depois eles tinham os Byrds, Jefferson Airplane, Hendrix, Who, Cream na cola e tudo o mais.

Como banda, Mark Lewisohn (1) destaca, ao descrever a evolução dos Beatles disco a disco que eles jamais pensavam no segundo disco baseado no anterior. Ou decidiam por um disco sem covers, todo autoral, ou passavm a usar outros instrumentos, ou descobriam uma forma de phasing eletrônico, ou quem sabe tocar uma guitarra ao contrário, ou improvisar um pedal caseiro, no melhor estilo professor Pardal. Ou captar um solo com o microfone quase colado nas cordas e com o boost estouradaço. Creio os Beatles são a banda fetiche nesse aspecto de voyeurizar todas essas manias do quarteto em estúdio. Isso é Les Paul. Eles conheciam ele, sabiam que ele era o Pardal mor. Les Paul era o pai do overdub quando todo mundo gravava no acústico, como os músicos de jazz. Ele influenciou Buddy Holly, ele influenciou os Beatles. E Buddy influenciou os quatro também, no sentido de libertar-se do rockabilly e criar uma forma de rock-canção, mais redonda, mais pop, mas sem perder o foco na guitarra. Boa parte do começo dos Beatles está aqui.

O problema é que, esse expediente, os Beatles trocaram naturalmente o público pela mesa de controle. Com o tempo, eles viraram produtores. Já não pediam ao George Martin o que eles queriam fazer. No White Album os Beatles demitiram o produtor. Claro que sem o elemento parental, a coisa desandou para a briga. O Álbum Branco captou o quarteto de forma singular, tão singular que eles não se importavam com muitas pequenas derrapagens na produção deles que, de certa forma, eram propositais. Ou em certas escolhas importantes, como a de emular Stockhausen em "Revolution 9", faixa que os fãs detestam, mas que eu acho que é importante para mostrar elementos de música eletroacústica e concreta para um grande público. Por mais que os fãs detestem, eu acho uma das faixas mais importantes do disco.

O paroxismo dessas 'férias' do George Martin foram as sessões Get Back que, quando elas terminaram, decidiram engavetar tudo. É possível que tenham sentido nostalgia de um produtor controlando o ímpeto deles. E, como quatro filhos pródigos, pediram ajuda ao seu produtor. Martin com efeito talvez soubesse que isso iria acontecer. Por mais rebeldes e independentes que eles fossem, os Beatles sabiam que precisavam de um produtor. O resto eles já sabiam. Quando os cinco se reuniram, depois de tantas idas e vindas, de tantas loucuras e brigas, agora eles eram uma banda adulta, e que, de forma adulta, iam fazer o seu último rock.

Acho que isso é o que tão admirável em Abbey Road, disco que faz 50 anos hoje. É o álbum onde eles plasmam todo o conhecimento adquirido em todos esse anos e é o seu derradeiro trabalho juntos. Esses dias, eu estava ouvindo o lado B e pensando que, por mais genial que seja, ele sempre vai me bater como uma grande despedida. E é. Porém, quando eu ouço algo como o With the Beatles, é sempre aquela sensação de que são os quatro prontos para conquistar o mundo. É o começo da jornada dos heróis. Seus primeiros trabalhos, embora mais simples, têm essa aura da banda no seu começo, com toda a sua vibração, todo seu ouriço, toda a sua energia, toda o seu ímpeto. No Abbey Road, eles são senhores de sua música, eles são pais daqueles garotos que gravaram "Love Me Do", mas eles estão longe do público, eles não irão gravar um disco para sair em turnê. Eles se reuniram para entregar, consciente ou inconscientemente, seu último trabalho para a EMI.

Se o lado A parece ter esse espírito dos velhos tempos, para mim, e acredito que para muita gente, depois de "Because", começa a bater aquela melancolia. Quanto mais surpreendente e genial o lado fica, faixa a faixa, maior é a sensação de que o tempo está passando, e o fim - literalmente - está próximo.

Diferente dos relançamentos anteriores (Pepper's e White Album) a edição especial do Abbey Road não traz tantos outtakes como os anteriores. Isso se explica pelo fato de que, ao contrário dos citados, os Beatles dessa vez adotaram o regime de discos como Rubber Soul e Help: menos tomadas, menos tempo de estúdio. Enfim, um trabalho mais conciso em estúdio. Além do mais, o Álbum Branco era prolífico em demos, desde o material de Esher até as centenas de variações em mono. No caso do Abbey Road, ele foi o primeiro a ser lançado em estéreo apenas. E além disso, o single é extraído do próprio disco o que simplificou o número de faixas trabalhadas.

Não menos atrativo do que o material alternativo que a nova caixa promete é a nova mixagem de Abbey Road. Pelo aperitivo que apareceu no Youtube, é para você jogar fora o CD original (ainda mais se for aquele que você comprou lá em 1989 no Carrefour). Parece um outro disco. Mas mais do que isso, a nova mixagem, empreendida por Giles Martin, talvez mostre ao ouvinte o Abbey Road como ele deveria ter sido conhecido, com uma tecnologia de reprodução que nos permita escutá-lo fazendo jus à forma como ele foi concebido: com uma mesa TG 123545, que fora instalada em novembro de 69, e que os Beatles não chegaram a aproveitá-la. Aliás, uma das constantes brigas da banda com a EMI era que, desde 68, havia uma mesa de oito canais empacotada e jogada num canto dos estúdios e que eles não podiam usar. A frustração deles era, às vezes, descontada no próprio staff. Agora, eles tinham um produtor de volta e toda a tecnologia possível para gravar o maior trabalho deles.

De certa forma, com um espectro de som de muito maior alcance, essa mesa  jogou o som dos Beatles em outro patamar. Isso podia ser sentido no vinil mas, com a nova mixagem, é possível sentir o som mais claro, mais branco, mais puro, muito além de que se podia sentir, mesmo com aquele CD do Carrefour. Muitos críticos malharam a produção. Como sempre, achavam que era um disco totalmente tributário de truques de estúdio. E também não gostaram, à época, do uso de moog.  O que não impediu que Abbey Road chegasse a 31 milhões de cópias vendidas em junho de 1970.

Mas quem é da antiga, deve se lembrar daquele famoso bootleg do Abbey Road que foi disseminado pelo fã-clube Revolution, nos anos 80. O disco consistia em outtakes de faixas do álbum, em péssima qualidade de registro, como era comum com os piratas da época. Faixas como "Something" continham uma misteriosa parte; "You never give me your money" com o final original, ainda sem o corte do medley, culminando num rock. Outras faixas eram demos dos tempos das sessões Get Back, como "Sun King" O "Her Majesty" aparecia com o acorde final, que foi solapado no disco original que, curiosamente, tem os dois extremos decepados. Esse pirata ainda contava com uma gravação fora de contexto, com George e Paul Simon tocando "Here comes the sun", já nos anos 70. E, por fim, uma gravação fake de "I want you" que, a despeito de ser falsa, é de repente a melhor faixa desse bootleg. Essa gravação é possível encontrá-la no Youtube.

Mark Lewisohn diz sobre o disco que trata-se do melhor disco da banda. De largada, porque a música colocou toda a animosidade entre eles fora da porta dos estúdios e, assim, eles puderam submergir na própria música. John com sua verve e vocação roqueira; Paul com sua perspectiva sinfônica no medley do lado B e suas baladas; George no auge de sua capacidade criativa como músico e compositor; e Ringo tocando maravilhosamente, explorando, a cada canção, todas as possibilidades da bateria, como nunca. Sobre a produção, ele diz que os Beatles chegavam em estúdio concisamente com a base das faixas na cabeça, sendo que os acréscimos posteriores nas mixagens tratavam-se apenas de detalhes que não os levassem à digressões maiores, com maior perda de tempo, fator que, segundo Mark, foi um problema recorrente no White Album.

George Martin acreditava ser Abbey Road uma retomada da "linha evolutiva" do Sgt. Pepper's. Para ele, o disco pôde ser inovador "de forma controlada", ao contrário do Álbum Branco e o Let It Be, diz ele (naturalmente ressentindo-se de ter sido alijado desses projetos). Também salientou seu papel na elaboração do lado B, no sentido de orientar a perspectiva sinfônica da peça como um todo, inclusive, se pensarmos no retorno do tema de "You never give me your money" no final, dando um caráter ligeiramente rapsódico para o medley, certamente foi sugestão de George Martin.

Phil Mc Donald, um dos engenheiros de som dos estúdios na época, relembra que John era contra o medley, e foi quem sugeriu que suas canções todas deviam ficar no lado A e as de Paul no B. Foi atendido, pelo menos em parte. Essa divisão, de certa forma, faz parte da mitologia sobre Abbey Road.



(1) MARK LEWISOHN. The Complete Beatles' Recording Sessions. Hamlyn, Londres, 1989.







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