Monday, November 03, 2014

Sábado em Copacabana



Avenida Atlântica em 1950


Na peça "Boca de Ouro", do Nelson Rodrigues, tem uma cena curiosa: um rapaz, Lelelco, repreende a namorada, Celeste que, segundo ele, foi vista andando pelos arredores de Copacabana.

Na verdade, à guisa de comédia de costumes, o autor de "Vestido de Noiva" usa esse expediente para mostrar como, naquele tempo (anos 50) a então pouco habitada Zona Sul do Rio de Janeiro tinha uma certa fama de recanto da prevaricação a dois.

No Chega de Saudade, Ruy Castro comenta a gravação de "Teresa da Praia" citando o mote do Leblon na letra do samba-canção de Tom Jobim. "A dita praia, aliás, entrou na canção não apenas para rimar com "amar é tão bom" como também porque, nos anos 50, ainda havia uma inevitável conotação de sacanagem quando se falava do Leblon". Segundo ele, o bairro não tinha sido completamente colonizado e sua praia, à noite, era o paraíso carioca do "sexo à milanesa".

Um fenômeno interessante: como é costume dizer, boa parte da boemia do tempo da Praça Onze, nessa época, migrou para a Zona Sul. Ao mesmo tempo em que o samba-canção foi sendo "abolerado", como diria José Ramos Tinhorão, aos poucos, ele foi ganhando essa nota particular de crônica da Zona Sul cheia de blues. Era o tempo de cantores como Nora Ney, Dóris Monteiro, Lúcio Alves, Dick Farney, e compositores como Haroldo Barbosa, Dolores Duran, Tito Madi, entre outros.

Falando no Tinhorão e em Ruy Castro, pelo menos em uma coisa os dois tem muito em comum: ambos são detratores do samba-canção. O autor da Pequena História da Música Popular Brasileira escreveu que, entre os 40 e fins de 50, esse gênero, no nível de produção comercial, se transformaria em "sambolero", provocando o estilo a um rebaixamento, de acordo com Tinhorão, a "níveis insuportáveis".

Castro foi mais longe (e aqui ele diverge de seu colega jornalista) e criou a tese particular(no Chega de Saudade) de que a Bossa Nova veio para salvar o Brasil da praga do samba-canção. Nesse sentido, Ruy é bastante parcial em querer demonstrar isso, mesmo sabendo que boa parte da primeira geração da Bossa Nova necessariamente veio do "sambolero".

Pegando o mote da "zona sul cheia de blues" (nome de um capítulo do livro Chega de Saudade), penso que é possível fazer uma delimitação temática do samba-canção desse período em que o gênero, com a Bossa Nova ainda encapsulada dentro dela (cabe ressaltar que, no começo dos 50, Johnny Alf compunha bossanovices como "Rapaz de Bem", mas boa parte do seu repertório era composta de samba-canção, como "Ilusão à Toa", "Escuta", etc.), em forma embrionária, ao contrário do que pensa Tinhorão, floresceu de forma prolífica e, até certo ponto, protobossanovisticamente original.

Naqueles tempos pré-motel, a moda montar um apartamento para consumar romances fugazes, aquela era a região ideal para um idílio típico das crônicas do Antônio Maria (também compositor de sambas-canção, não gratuitamente), Stanislaw Ponte Preta ou dos contos do citado Nelson Rodrigues do "A Vida Como Ela È...". até pensando delirantemente (desculpem) de forma multidiscipinar, pegar a literatura do período, a música que nasceu naquelas boates (Plaza, Tudo Azul, Clube da Chave, o Beco das Garrafas, etc) e a música.

A 'dissonância' de opinião com relação à Bossa, e na palavra de gente como Ronaldo Bôscoli (que era bossanovista mas da antiga), era justamente que, e essa eu acho que é o grande "mérito" do gênero nessa fase dos 50, é essa pátina de trilha sonora dos garçonnières da Zona Sul. Ou seja, o típico samba-canção.

A grande crítica dos bossa novistas com relação à esse subgênero do samba-canção é que aquele tinha, com efeito, um público adulto, isto é, de gente com mais de trinta, casado, separado, desquitado, gente da noite nos seus arrufos à Dolores Duran, e cuja temática não interessava aos jovens. Enfim - um público mais velho. Daí nasceria a ingênua e pontual vertente "céu, sol, sul" da Bossa (que depois pagaria o seu preço e viraria clichê) contra as "Noite do meu Bem" e ao "Ninguém Me Ama", ou "Não Diga Não", e clássicos do cancioneiro "balanço zona sul".

Claro que, pensando como Ruy Castro, a BN não apareceu para salvar o Brasil do samba-canção. Ou, se realmente veio, é preciso colocar alguma luz àquele período, que eu (arbitrariamente) delimito, de forma simbólica, do lançamento do disco "Copacabana", com Dick Farney (1946) até "Foi a Noite" (1958) com a Silvinha Telles.

Refiro-me a colocar uma "luz" no sentido de que esse período de samba-canção no disco comercial no Brasil não foi "negativa" como uma Idade Média da MPB (nem a Idade Média foi tão Idade Média, como sabemos hoje), mas um período com um contexto e uma história que jornalistas-pesquisadores como Ruy Castro e José Ramos Tinhorão não quiseram dar-lhe o devido valor.

O primeiro prenunciaria o samba-canção jazzificado (não abolerado, pensando em termos de dialética luiztatiana de "mistura", ao invés da visão depreciativa tinhorona) que seria o molde para as músicas "cariocas" dessa fase "música de fim de noite" que tinha o seu lado dor de cotovelo, mas sublimado pelo blend das noites cariocas da boemia bem vestida da Zona Sul; o segundo, quando o jovem pianista do Tudo Azul, Tom Jobim, ainda compondo sambas-canção, tateando prenuncia a Bossa Nova (embora tanto músicos quanto produtores e até mesmo intérpretes não estavam, ainda, preparados pela pororoca chamada João Gilberto).

Tentando exemplificar a minha tese - já furada de tantos rodeios e voltas, pego como exemplo da lírica dessa fase um tema lapidar: a ensolarada e adorável "Sábado em Copacabana":




Composta por Carlos Guinle e Dorival Caymmi (numa de suas raras incursões no gênero) e lançada em 1951 por Lúcio Alves, a letra fala gentilmente de um rendez-vous de fim de semana, ou como diriam os ianques, um feérico "one night stand". Sem rodeios, a despeito do romantismo da letra, ela é uma idília prevaricação de nosso herói pelas praias de Copacabana. É óbvio que, em se tratando de uma canção dos anos 40, pegando o mote de Ruy Castro (e de Nelson Rodrigues no Boca de Ouro) sobre a reputação do Leblon de antanho, é certo que o sujeito da letra não vai à zona sul prá andar de surfboard nem prá chupar Chica-bon.

Nem tanto ao céu e nem tanto ao mar, a verdade é que, além desses pontos-de-vista, a produção desse período, o samba-canção "zona sul" ainda é um capítulo da história a ser escrito - sem preconceitos.

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