Monday, February 14, 2011

Obrigado, Ronaldo

Eu acordava lá pelas cinco e meia da manhã, fazia o chimarrão; enquanto ficava soturno no escuro esquentando a chaleira, da sala olhava a janela, como um fantasma.

Do fim da quadra, lá vinha aquele homem, um cinquentão baixo e curvado. Desengonçado e janota, seus braços pareciam não corresponder com o ritmo dos passos e do corpo; coroava-lhe a cabeça grande um tufo de cabelos brancos ralos.

O carão cor de cuia revelava alguma raiz fronteiriça. Carregava um fardo descomunal de papel às costas, enfeixados por uma lona amarela e caminhava curtas passadas bamboleantes, como se subisse uma ladeira imaginária.

Então eu descia as esdadas de chinelo e ia até a caixa de correios do prédio: era a hora do jornaleiro chegar.

Achava engraçado quando ele metia o jornal quentinho nas caixas de correspondência, alguém chacoalhava as janelas, como se suspeitando de algum salteador noturno. Ato reflexo, sem parar seus movimentos, dizia: "não é ninguém, é o jornaleiro!".

Fazia isso sempre. Um dia, eu lhe interroguei:

— Como assim, você não é ninguém?

Ele riu e explicou o caso. Sempre que uma voz de dentro de alguma casa perguntava, ele dizia: "não é ninguém, é o jornaleiro". Eu repliquei: "mas qual é o seu nome?". Ele: "eu me chamo Ronaldo".

E foi embora.

Outro dia que falei com ele não quis detê-lo (ele é uma pessoa muito ocupada, como todos), contudo lhe fiz uma revelação: eu também já havia sido jornaleiro. Disse-lhe no entanto que de jornal de bairro. Trabalhei enquanto a pequena publicação durou; distribuía exemplares pelo Moinhos de Vento e em Petrópolis. Era cansativo, mas era heróico. Eu era estudante de jornalismo e era jovem!

Bons tempos em que a gente enchia um carro de jornais recém saídos do Expresso Caxiense, na Rodoviária e levava a carga para algum ponto do bairro.

(um parêntese: além de jornaleiros, nosso grupo de entregadores eram os próprios redatores e editores, entre aspas. Coisa de juvenília, de tempos de quando éramos estudantes idealistas, mas isso já passou.)

Nos separávamos cada um com um fardo e, sem nenhum método, íamos colocando os exemplares embaixo de portas, em caixas de correio ou na escrivaninha de porteiros perplexos (muitos ou não aceitavam ou queriam que a gente colocasse os jornalecos em caixas de correspondência, porém em edifícios com mais de quarenta apartamentos, imaginem!).

Era exaustivo e insalubre — principalmente sob o frio do Inverno gaúcho. Porém, no fim do "expediente", terminavávamos o serviço bebendo cerveja uruguaia no posto de conveniência da rótula da Protásio (antes da Prefeitura construir aquele viaduto medonho).

E mais: eu me julgava importante. Achava que estava fazendo a minha parte para a humanidade em realizar aquele trabalho de Sísifo. Os jornais estariam cedo na casa dos leitores, e eles iam ler as minhas matérias...

Eu me julgava importante. E aquele pobre homem, que nem se dignava a dizer o nome, não dava a mínima: apenas queria terminar o serviço e voltar para casa. E quando lhe perguntavam quem era, ele dizia:

— Não é ninguém, dona, é o jornaleiro.

Mas ele era um homem, tinha dignidade e um nome: Ronaldo. Ele me entregou o jornal, plastificado. Fez menção de seguir seu caminho na madrugada. Então se despediu:

— Obrigado, moço.

E eu lhe respondi:

— Obrigado, Ronaldo.

E lá foi ele assobiando algo sem melodia.

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