Tuesday, December 15, 2020

A Era Glacial

Frankie Lymon
Frankie Lymon 


Lembro que eu comprei aquela biografia do Littrle Richard e fiquei, eu, um joem de uns dezesseis, deveras chocado com toda a putaria que existia em torno do show-biz - já naquele tempo. Como eu era inocente. Não sabia nem que Berlioz usava ópio para compor a Fantástica ou Verlaine enchia a cabeça de absinto para poetar (mas divaguei e me desculpem) Aquele livro ainda me impressiona. Eram cenas de orgias com pó e outros derivados, e ainda mais o Richard entendendo já convertido como pastor que tanto o uso de drogas como o sexo em geral era um caminho sem volta, promiscuidade, etc. Era a visão sincera de um convertido. Mas aquele não era bem um livro para garotos. Era um livro bem pesado mesmo. E eu descobri essa barra pesada do mundo da música talvez cedo demais ou no momento certo. 

Mas depois eu li uma entrevista com o Frankie Lymon. Ele disse que, ainda garoto, no tempo daqueles programas  de juventude, como o American Bandstand, as drogas corriam soltas, às vezes aparecia uma telefonista drug dealer e Lymon, ainda com aquela voz de garoto, havia se tornado viciado em heroína, no meio daqueles programas.  Isso é engraçado para ver como a gente tem aquela visão do pop dos anos 50 como um ambiente de inocência, até quanto eu lembro de ouvir discos das Chordettes, Fleetwoods. Tudo aquilo me evocava um tempo de inocência. Digo isso porque minha fase intermediária até chegar no rock, já com um walkman, nos anos 80, passou por descobrir, a partir do cinema, essas canções que, nos anos 70 e 80 retornaram como numa onda de nostalgia, desde o Loucuras de Verão, de 73 até o Conta Comigo, de 1988. Eu descobri o rock nos anos 80 mas não a partir daquilo que tocava no rádio, mas descobri sabendo por outros, porque não havia internet, que existia um tipo de música legal e cativante que não tocava no rádio. 

Eu já devo ter dito isto várias vezes aqui mas acho que os anos 80, com toda a sua presentificação e urgência de novidades, fez de tudo, consciente ou inconscientemente, de tudo para apagar o passado. Essa  coisa de memória através do tempo e do espaço, como diria Nelson Rodrigues, tem um quê de fluvial em seu lerdo escoamento. Nos anos 80, um artista como Lymon ou Richard, as Chordettes ou Fleetwoods, Neil Sedaka ou Jerry Lee Lewis, era algo tão firmado no passado que sempre chamava a atenção quanto, por causa de uma propaganda ou de um filme, esse passado ressurgisse numa canção que iria , contra todas as expectativas, parar no rádio. Isso aconteceu com Be My Baby, canção das ronettes que tocava sem parar no rádio por causa do filme Dirty Dancing. 

Era algo além das expectativas das rádios, que trabalhavam sempre em função do suplemento musical  das gravadoras, e jamais perderiam tempo vasculhando a própria discoteca em busca de um sucesso do passado, não havia reciclagem. Nos anos 80, um beatlemaníaco era coisa do passado. Hoje você vê garotos com camisetas com o logo da banda, ou tocando instrumentos iguais aos deles. O que era passado há três décadas hoje está na pauta; esse é um exemplo dos fluxos e refluxos da memória. O que me espantava nos anos 80 era descobrir essas canções pop dos anos 50 e não entender porque ninguém mais ouia aquilo se parecia algo tão agradável. Aquelas músicas eram legais, e havia aqui no subsolo da Discoteca, no centro, uma enorme coleção de CDs importados só com pop dos anos 50. Nossa, a minha vontade era de ter todos aqueles discos, e não entendia por que aqui eles não podiam ser encontrados. Também não sabia nada a respeito de todo esse miaginário que existia sobre os anos 50 na música. Eu não tinha cabeça para entender essas coisas. Não havia suporte para isso. Ou então, jamais saber qe gente como Little Anthony ou Frankie Lymon seriam o começo de boy groups dos anos 70, como Osmonds ou o Jackson Five. Não sabia nada disso. Aquilo era a era glacial do pop.  E a minha era glacial como ouvinte e discófilo. Nesa época eu ainda comprava discos em lojas de departamentos, não era beatlemaníaco nem rato de sebo ainda.  

No entanto, discos sobre a década eram raros, e cada coisa que aparecia, uma coletânea, uma trilha de filme, era uma forma de recuperar aquela cultura submersa do passado.  Hoje sabemos que tudo está a um clique de distância, mas naquele tempo, era um trabalho de perseverança e de paciência. Tinha na época uma nostalgia nos filmes e esse revival a partir das trilhas dos filmes foram uma espécie de furo que fez com que essas canções voltassem. Acho que um marco foi o filme dos Doors, que fez com que se descobrisse a história daquelas músicas tão atuais naquela irada dos anos 90, e isso viabilizou livros como o Mate-me por Favor, que fez com que bandas como Mc5, Velvet Underground, Stooges reaparecessem como a era glacial do punk. A história estava toda no limbo e descobriu-se que havia um público cada vez mais interessados nessas velharias que não eram tão velharias já que elas dialogavam com desejos e aspirações das pessoas do futuro.  

Esse foi um fenômeno incrível porque se os anos 80 representaram um apagamento em termos de memória, essas sístoles e diástoles, vai e vens do tempo e da memória parecem mudar com essas disposições, com esses marcos. E de como existe tanto a ser conhecido com coisas do passado. Eu de certa forma vislumbrava isso quando, nos anos 80, quando ouvia Bill Haley. Não havia referências, não havia enciclopédias, não havia livros, não havia letras, fotos, nada. A gente formava conhecimento aos poucos, era uma guerrilha paciente; e mesmo depois, com a Internet, eu percebi que o buraco era maior. Havia muito mais a saber e a pesquisar, tanto que esse ainda é um trabalho a ser feito. Aqui, houve a série de tevê Anos Dourados, Bambolê, que fez esse revival pela televisão. Na esteira do programa, apareceram discos que eram coletâneas de canções do passado. Surgiram os discos da Brasidisc, Little Richard, Carl Perkins, Fats Domino, etc. 

Depois, descobrindo os Beatles, eu descobri que esses artistas que eu ouvia faziam a cabeça deles quando eles tinham a minha idade. Então eu percebi que devia estar no caminho certo.  Mas essa é história para outro post.      


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