Tuesday, November 24, 2020

Sobre o tempo


Um ano atrás meu note queimou. Eu, que não tenho celular nem relógio e não tinha rádio, fiquei perdido. Me orientava pela luz do sol. Isso durou umas duas semanas. Fui me acostumando com o silêncio. Na madrugada, aprendi a me guiar com o canto dos pássaros, sabia mais ou menos a hora pelo canto deles, tanto de manhã quanto de tarde, além do galo do vizinho que, a despeito e ser meio desregulado, sempre cantava lá pelas onze.

Lembrei da experiência lendo um texto do Peter Burke sobre o tempo. Ele fala que antes do tempo mecânico, ordenado pelo relógio, havia o ecológico. A experiência do dia está relacionada ao ambiente local, ao curso do sol, ou seja, também pode mudar com as estações. Agora, por exemplo, quando entramos no verão, o dia começa muito cedo. Os bichos naturalmente acordam com a claridade, acordam mais cedo do que nós, que fingimos que não amanheceu e fechamos as janelas como se fosse possível protelar a marcha inexorável do dia.

No texto, ele fala do povo nuer, no Sudão. Lá, eles organizaam o tempo a partir do trabalho com os animais. O tempo era ordenado pelas tarefas do dia. Fiquei pensando que ele está falando de uma cultura muito antiga, que remetesse aos tempos homéricos. Quem lê a Ilíada sabe que lá a vida acontece de dia. Nada acontece de noite. A noite é a negação do dia, como o mar aberto é a negação da terra firme. Com exceção do famoso canto décimo do poema, que muitos entendem ser uma interpolação do texto original de Homero, já que nada na Iliada acontece de noite. Enfim, mudei de assunto. Voltando: o povo nuer tinha o seu relógio, era o ‘relógio do gado’. O ciclo de tarefas inteiro girava em torno do trato com os animais. Pois Burke fala, ou melhor, lembra para nós que esse tempo já foi o tempo universal. Com o tempo, o relógio permite o fracionamento do tempo em horas, minutos, segundos. A luz artificial permite que as pessoas possam expandir suas atividades noite adentro. E as restrições naturais, diz ele, foram sendo paulatinamente substituídas pelas culturais.

Burke também pensa em termos de geografia do tempo. Hoje todos seguem relógios, o fuso horário, o diabo. Mas, e antigamente? Por exemplo, há 7 mil anos atrás, apenas os sumérios fracionavam o tempo. Em outras partes, o tempo era o dos bichos, o do sol. A semana de sete dias como conhecemos hoje surge na Babilônia. Foi em 1930 que o antropólogo E. Evans Ptritchard conheceu os nueres (e que rendeu três livros clássicos sobre o tema), e viu que, em pleno século 20, eles ainda se guiavam pelo sol, pelo trabalho. Naturalmente que ele não foi o único a ter esse choque cultural. Na época dos descobrimentos isso seria comum – descobrir dezenas de culturas do tempo diferentes. No Japão do século 14, por exemplo, a semana tinha dez dias e os anos, como todos sabem, eram descritos em termos de animais. 

Ainda nessa época, diz Burke, as culturas diversas que habitavam a Europa que entrava na Renascença tinham a sua cultura do tempo particular, muçulmanos, cristãos, cristãos ortodoxos e judeus. Le Goff fala que, por essa época, começa uma outra querela religiosa na Europa, mas não era sobre as investiduras, era sobre o tempo. Havia o tempo da Igreja mas também havia o dos mercadores. A Igreja queria impor o tempo sagrado (ocês já ouviram falar das horas canônicas? Essa era a norma da Igreja). Enquanto o tempo dos padres era sagrado e litúrgico, o dos mercadores, como diz o velho adágio, é dinheiro. Claro que a Igreja finalmente deve ter concordado com o adágio: em 1582, o Papa Gregório XII instituiu o calendário Gregoriano. O que não significaria dizer que ele foi automaticamente adotado por todo o mundo a partir dali. Pense no tempo que isso deve ter levado para acontecer. A Turquia só iria adotá-lo em 1926.  

Se o tempo pode ser calculado, ele pode ser ganho ou ser perdido. A modernidade é que cuidou de prover um tempo universal e um calendário idem. Até por uma questão de ordem. A hora de Greenwich, diz Peter Burke,  surge na Inglaterra em 1848, chegando no Brasil apenas em 1914, nas vésperas da guerra mundial. 

Essa comparação com os diversos tempos é bastante fértil, se pensarmos que, a despeito da tecnologia e da inclusão digital, ainda existem culturas, por exemplo, no interior, onde existem culturas do tempo. Por exemplo, a famosa hora da sesta:  em algumas cidades, o comércio fecha no começo da tarde. Existe o tempo dos sinos das igrejas e, naturalmente, existem aqueles que se guiam pelo cantar do galo, que levantam com a claridade e não conseguem ficar de pé quando a noite chega, o famoso “dormir com as galinhas”. Pois então, eis aí um tempo “cultural, o das galinhas. Seria o tempo “camponês”, o tempo do peão, o tempo da Ana Terra lá no começo do O Tempo e o Vento, de pessoas que, mesmo hoje, são tributárias dos movimentos da natureza. Que é um tempo rural. Existe o tempo industrial, o tempo das fábricas que, segundo Burke, surge com a Revolução Industrial na Inglaterra e, dali, como Greenwich, ai conquistando todas as plagas do globo terrestre. Ao mesmo tempo, surge o tempo das carruagens, o tempo das viagens. 

Hoje, diz o historiador, somos todos arrastados pelo tempo padronizado, o tempo mecânico, que nós introjetamos e cujo impacto no ser humano, conclui Burke, pode ser profundo e, na pior das hipóteses, irreversível. Ou não, no meu singelísismo caso. Falando nisso, de uns tempos para cá, o galo do vizinho parou de cantar. Não sei se ele morreu ou foi exonerado por negligência. Afinal de contas, cantar fora do horário pode dar justa-causa...


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