Friday, October 30, 2020

Uma criança solitária

John Lennon 


Outubro marcou a passagem dos 80 anos de nascimento do John Lennon (dia 09). Não havia pensado em falar nada a respeito mas, na verdade, havia pensado sim. Porém, não havia chegado a nenhuma forma de escrever alguma coisa. Até que li esta tarde uma matéria da Thames & Hudson sobre os 50 anos de lançamento do álbum Plastic Ono Band.  

Antes, uma pequena história. Lembro de minha mãe ter, não lembro como, o disco Imagine. Um dia, ela, que não era grande colecionadora de discos (nesse sentido, ela era, como todo mundo, meio relapsa: não colecionava, não sabia nomes de canções, emprestava e perdia bolachões, etc). Lembro quando ela pôs o disco para rodar. E me narrou o que o John falava nas letras. Não em todas, mas em “Crippled Inside”, “Imagine” e “Jealous Guy”. Mas recordo de ouvir o álbum várias vezes com e sem ela.

Mas, para mim, até então – eu deveria ter uns oito ou nove anos, ele era apenas aquele cara estranho ali, na foto do encarte segurando um porco, e que falava coisas que minha mçãe traduzia das faixas, que ele queria um mundo melhor, que se arrependia de ser ciumento, que de nada adiantava parecer legal se você está arruinado por dentro.  Hoje eu fico pensando nos toques que eu recebi e não sei como eu digeri essas informações. Sei que era para mim uma época de aprender. Lembro que ela descrevia uma canção da Elis, “As Aparências Enganam”. As aperências enganam, diz Tunai na letra, porque amor e ódio se irmanam na fogueira das paixões. Os corações se gelam e depois não existe nada no mundo que possa fazê-los descongelar. E as aparências enganam aos que gelam e inflamam porque fogo e gelo se irmanam no outono das paixões. Quando ela tocava isso - era da trilha sonora da novela Eu Prometo, eu não era capaz de entender nem o que ela queria dizer ao tocar essa canção no toca-disco, nem sacar todo o barroquismo dos paradoxos da letra. Hoje eu entendo. O menino de hoje olha para o menino que despertou para ouvir de novo essa música agora. 

Ela explicava a letra, como ela fazia com as do John. Mas essa ela parecia estar falando de algo que ela estava sentindo pela música. Fico mais recordando do que ela dizia mas na cabeça de quem eu sou hoje, porque não consigo pensar no que eu achava na época, porque eu não achava nada. Não sei dizer o que eu sentia. Só que, pensando hoje, devia ser a primeira vez que eu pensava que existiam mensagens nas canções e essas mensagens eram bastante reflexivas ou qualquer coisa nesse sentido. Coisas que eu era incapaz de entender, como o menino do conto da Missa do Galo, do Machado. Coisas que só o narrador adulto seria capaz de analisar e de entender, e a cabeça de menino não seria capaz de fazê-lo. Como era o caso do comentário social em “Imagine”, a súplica de “Jealous Guy” ou o moralismo maroto de “Crippled Inside”. Ela me disse que o título queria dizer que a pessoa estava "aleijada por dentro". Eu fiquei meio perplexo porque uma canção falava isso dessa forma. 

Naquele tempo, eu acho que só entendia coisas como as músicas do Kleiton e Kledir e da Blitz, que eu ouvia bastante. Mas claro que não entendia além, em canções como “Paixão”, ou mesmo em “Você não soube me amar”, aquele mundo adolescente estava muito distante de um menino de oito ou nove anos. Era como se eu ouvisse meus irmãos mais velhos falando da sorte deles com as garotas ou algo do tipo. Isso justamente neum momento em que o mundo se abre diante de nós e temos tanta curiosidade em saber das coisas.  Hoje, passado tanto tempo, descubro, pálido de espanto, que continuo um neófito mas agora tenho certeza que levarei minha incúria para o umbral.

A nota engraçada nisso era que aquele disco do John Lennon, Imagine, de 1971, tinha uma maçã no selo, e aquela maçã aparecia cortada do outro lado. Lembro que eu achei uma idéia interessante embora idiota. Lembro de olhar aquele selo da maçã rodando e achar aquilo muito idiota. Qual não foi a minha surpresa quando, anos depois, eu ganhei de aniversário um disco duplo branco, que fui saber que era uma banda chamada The Beatles. Eu agradeci embora, na época, não tivesse toca-discos e aquele presente não teria para mim qualquer utilidade. E não teve por muito tempo – até quando eu finalmente descobri quem eram os Beatles e fui enfim conhecer a música deles. Mas a única ligação que estabeleci no momento que abria o disco era notar que as bolachas também tinham aquele selo idiota da maçã. Lembro depois, quando finalmente pude escutá-lo, e achei um disco estranho, para não dizer ruim. E a capa toda branca com aquelas fotos de quatro cabeludos esquisitos só me fez ter terror daquele disco duplo.

Enfim, essa reflexão é só para a gente pensar, e a gente pensa em todo o tempo que andamos sobre a terra, de como a gente vive tanto para aprender tanta coisa e mudar tanto a nossa visão de mundo, a nossa opinião, e de como tudo mundo tanto no tempo e no espaço que parece que nós somos sítios arqueológicos ambulantes que carregam em si cidades esquecidas e enterradas. Existem várias múmias minhas de outras eras da vida que estão enterradas esperando que um Heinrich Schliemann desvende as nossas tróias interiores.

Mas enfim, não era nada disso que eu ia tratar aqui. Ia falar da matéria do álbum Plastic Ono Band. A matéria tem uma citação daquele doutor Janov, que faz a terapia do grito com o John Lennon. Então resolvi escutar de novo esse disco, que eu cheguei a tê-lo em vinil. Nunca tive muita paciência com a carreira solo dos Beatles mas esse disco sempre me chamou a atenção pela crueza dele, produto certamente e isso é documentado, da terapia que o ex-beatle empreendeu no final de 1970. Acho que essa terapia explica muito da forma como ele John tratou de assuntos do passado recente na imprensa naquele tempo, praticamente jogando os Beatles e aquela vida que ele comparou àquela cena do Trimalquião do Satiricon do Fellini literalmente na lata do lixo. Com razão, de fato, a imagem terna dele com Yoko recebendo a luz do sol debaixo de uma frondosa árvore – capa do disco, é bastante simbólica. É como se ele tivesse encontrado uma paz, um caminho com ela, algo que ficou em suspenso naqueles loucos anos mas os descaminhos da vida nos fazem reencontrar com essas lacunas esquecidas. 

Soma-se a isso uma leitura recente minha, a do livro do Hunter Davies sobre os Beatles. O livro é pródigo porque fala bastante da infância do John. Então existe muita coisa encoberta ali, a separação do pai, em seguida da mãe, que se transformaria numa pessoa próxima mas à guisa de irmã, sendo Mimi, sua tia mãe postiça para salvar a “desgraça” de Lennon ser fruto de um casamento desfeito, de uma união que não ‘ocorreu’ como uma família. Tudo na biografia aponta como se John tivesse aceitado a separação dos pais e se adaptado à vida com Mimi que, por seu turno, fez de tudo para que ele fosse uma criança feliz, o que ele não foi. Ele não viveu a vida de família, o papai, a mamãe eo seu pequeno rebento, e virou um adolescente problemático (Clapton teve uma infância escamoteada quase da mesma forma, criada por outros mas talvez de forma mais dolorosa, por ter sido, como ele diz em sua autobiografia, rejeitado pela mãe) depois que finalmente perdeu Julia pela segunda vez, desta vez para sempre. A partir dali, anota Davies, John virou uma pessoa cruel com todos, e com sua futura esposa, Cynthia. Mas o sonho dos Beatles e o sucesso estrondoso, tudo ocorreu numa progressão fulminante , e aquelas traumas ficaram num segundo plano para uma outra história dentro da história enquanto aquelas traumas ficaram esperando por ele. 

Parece que o encontro e a posterior união com Yoko fizeram com que ele tivesse uma epifania, que misturou-se ao torvelinho de outra separação, que foi a de John com Paul, e o fim da relação dele com seus companheiros dos Beatles, é como se essa duplicidade de separação e dor reaflorasse mas ele encontrasse esteio no tratamento e a partir do momento em que John foi capaz de evitar subterfúgios e enfrentar esses traumas de fato – independente se a terapia seja válida ou não, pelo que aponta a matéria, acho que esse momento da vida dele, com esse renascimento do seu eu, da forma como ele se despiu de certos preconceitos e teve coragem de jogar tanta coisa fora naquele momento, e da forma como ele plasmou toda essa dor e teve coragem de expô-la, como em “My Mummy Is Dead”, é como se ele retornasse, ou eu retornasse àquelas páginas do Hunter Davies para tentar descobrir tudo o que ficou escondido, o que não ficou dito, todo o caudal de macaquinhos no sótão que fizeram com que John fizesse uma espécie de ajuste de contas. Por isso eu penso que esse disco, o de 1970, seja tão representativo de um artista, mais precisamente o líder dos Beatles, possa ser lembrado, na passagem dos 80 anos, por todos esses elementos de sua formação. Acho particularmente que esse John Lennon no divã, no Plastic Ono Band, parece me falar mais do que o bragadócio das entrevistas para a Rolling Stone e a Playboy, ou o John pacifista ou político, que creio que são desdobramentos desse novo John Lennon, mas mais do que isso, essa epifania do ex-ídolo do rock no espelho, como o John do álbum de 1970, acho que vale a pena conhecê-lo melhor. 

Segundo a matéria, as recordações do começo de sua vida reapareceram nas sessões com o dr. Janov: objetivada para revisitar e reexperienciar dores de infância reprimidas para eleminar essa dor na idade adulta, o terapeuta acabou dando bastante material para que John Lennon trabalhasse. "A terapia fez com que eu sentisse minha própria dor" (...) "você é obrigado a repassar toda a sua dor, de tal forma que isso te faz sentir medo com seu coração a bater, e tudo é realmente resultado de você mesmo e não de alguém lá em cima, é resultado de seus pais e da sua relação com eles". Por fim, Arthur Janov revelou que o grau de sofrimento que ele sentiu fora enorme: "parecia alguém que era adorado por todo o mundo, mas isso não havia afetado em nada. No âmago de toda aquela fama e riqueza e adulação havia apenas uma pequena criança solitária".

PS: reocmendo a continuação do disco de John, o da Yoko (para mim, são um só).   


Referências: 

Thames & Hudson: John Lennon on life, love, peace and the Plasic Ono Band https://thamesandhudson.com/news/john-lennon-on-life-love-peace-and-the-plastic-ono-band/

Hunter Davies. A Vida dos Beatles. Editora Expressão e Cultura, 1968.   

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