Tuesday, December 01, 2020

Questão de Ordem

Fascículo da Abril de 1971

Esses dias tava juntando material para falar de contracultura no Brasil e descobri que eu ainda tinha aqueles fascículos do Gilberto Gil e do Caetano Veloso da História da Música Popular Brasileira, da Abril Cultural. Hoje, esses fascículos são raridade mas, olhando em retrospectiva, acho que eles tiveram uma importância muito grande quando a coleção foi publicada, primeiro no começo dos anos 70, depois, no final e, numa última edição, nos anos 80. A importância reside no fato de que esses fascículos conformam a primeira tentativa “séria” de se estabelecer um cânone a partir de levantamento histórico e de debate sobre a MPB num momento em que a sigla começava a servir de palavra-valise para referir-se à produção musical brasileira “moderna”, ou seja, a partir do que o Augusto de Campos cunhou nos anos 60, de “linha evolutiva” da música brasileira, da Bossa Nova ao Tropicalismo, e depois para uma perspectiva mais aberta, a partir dos anos 70 até hoje, onde o tropicalismo ainda é uma referência para a produção musical.

Essa coleção me fascinou porque eu a descobri numa época em que tinha ouvido o primeiro disco do João Gilberto, e isso me fez descobrir a MPB. Até então eu era completamente alienado, e não me interessava por nada do gênero. O movimento que eu fiz a partir da descoberta do disco Chega de Saudade foi no sentido de me sentir estimulado a pesquisar sobre MPB numa época em que a internet não existia e que a bibliografia sobre o assunto era bem escassa. Sobre Tropicalismo, reler esses fascículos hoje é como voltar ao começo, mais como nostalgia dos tempos daquelas primeiras descobertas do que propriamente um grande interesse sobre o assunto, já que eu na verdade já meio que enchi o saco de ler sobre o assunto, muito embora nessa, caso, hoje tenha sido obrigado a retomar alguns temas, mas faço isso com satisfação, da mesma maneira que isso me fez voltar àquelas primeiras descobertas. Hoje existe tanto livro sobre história da MPB, tantas biografias e autobiografias. São tantos livros e teses e dissertações, muitas vezes cifradas em temas recorrentes e por que não dizer tropeçar nas mesmas ematizações, datas e canções, sempre Bossa Nova, Tropicalismo, é tanta coisa que atualmente não é muito difícil empreender pesquisas sobre esses assuntos, com tantas abordagens teórico-metodológicas, ou apenas depoimentos, como o Verdade Tropical, do Caetano.  

O movimento editorial nesses últimos vinte anos foi bastante fértil no sentido de cobrir uma vasta gama de variações sobre o tema da MPB. Por conta disso, e de tantas pesquisas e debates, a gente hoje até acha um pouco de graça dessa história de “linha evolutiva” da música popular brasileira, já que essa idéia de evolução já está, graças à antropologia, meio que pelas caronas. Aliás, sobre essa questão de linha eolutiva, anos mais tarde, Luzi Tatit iria entender esse processo de forma diversa: para ele, o movimento não é propriamente evolutivo, mas se dispõe de maneira dialética, onde o sambafora um momento de "mistura", a Bossa Nova, de "triagem" ou de decupagem, e o Tropicalismo como outro movimento de "mistura". Mas foi o sustentáculo do debate sobre a MPB naquela virada dos anos 60 para os 70, exatamente na época em que surgia uma imprensa musical especializada e que alguns autores, como Augusto de Campos ou Tárik de Souza foram pioneiros em discutir esses assuntos, o Tropicalismo estava em parte no exílio e a Bossa Nova iria entrar num longo inverno de esquecimento até ser reabilitada pelo livro Chega de Saudade, do Ruy Castro, já no limiar dos anos 90. Acho que esse livro também foi responsável por um retorno ao tema.  Lembro disso porque foi exatamente quando descobri aquele opúsculo da Bina Maltz e do Jerônimo Teixeira sobre Antropofagia e Tropicalismo. Foi interessante porque essa relação, que é sugerida, nos primeiros teóricos, Décio Pignatari e o Augusto de Campos, que foram os que meio que introduziram essa idéia antropofágica na teoria tropicalista, justamente ao fazer o grupo baiano se interessar sobre a proposta de reciclar o legado modernista de 22 (também supervalorizadpissimo pelos estudos de literatura) e seus desdobramentos.  Esse foi o começo de como o Tropicalismo começou a ser adubado teoricamente com vista a se tornar num tema solidamente estudado como hoje. 

Mas, olhando no retrovisor, é interessante pensar que houve um momento em que esse debate estava restrito, acho que as perspectivas teóricas representavam barreiras para esse tipo de abordagem mais culturalista da história da MPB. Anos atrás, o próprio disco Tropicália foi referência bibliográfica para Literatura Brasileira na UFRGS e para mim foi uma coisa importante, porque era uma coisa que a gente vinha estudando e lendo e se apaixonando pelo tema já de longa data. Claro que eu acho certas análises meio cansativas, porque acho que, em alguns casos, se pegou desse limão e se fez uma limonada que vai do tropicalismo a teoria alegórica de um Benjamin como em Favretto e o famoso ensaio da Heloísa Buarque de Hollanda ao formalismo russo para achar em Baktin referências para explicar tropicalismo enquanto Roberto Schwarcz criticava o legado tropicalista sob um viés político-ideológico, e acho que o que menos se analisou nesses estudos foi a questão da música. 

Digo isso porque acho que o Tropicalismo, longe dessas questões teóricas sobre artes visuais e plásticas, o teatro do Zé Calso ou o cinema do Glauber – veja que tudo acabou sendo colocado nesse mesmo vatapá, mas eu acho que a transa em questão e que ficou meio de lado foi a de abordar a questão musical, mas mais a musical mesmo. Acho, por exemplo, que existe o papel do Rogério Duprat, que aparece numa entrevista ao Augusto. Eu acho que esse legado do Duprat, da formação dele, do porquê do seu interesse em música popular, da forma como ele fez a cabeça do Gil e dos Mutantes e vice-versa, dos porquês de fazer o que foi aquele happening entre “Questão de Ordem” e “É Proibido Proibir”, cujo objetivo era ostensiamente, como disse Caetano, o de fundir a cuca do júri. Porque assim como o Duprat fala ao Augusto que havia se desinteressado em trabalhar com música popular até descobrir o grupo baiano mostra que ele encontrou neles uma forma de reciclar seus conceitos sobre música contemporânea, música eletrônica, e eu penso que essa virtude do Duprat é meio deixada de lado até pelo próprio desinteresse dos pesquisadores em entender a importância dessa relação dele com Stockhausen ou Varese e todas essas coisas, que também estavam interessando aos músicos de rock inglês na época, à moda dos Beatles, no sentido de fazer um novo tipo de música, mais autoral, menos afeito a clichês e às paradas de sucesso e às regras da arte e até mais “difícil”. 

Duprat e Júlio Medaglia vinham dessa vertente, que era, por exemplo, a mesma do Frank Zappa, que entrou de gaiato de navio do rock mas bebera da mesma  água de Duprat e Medaglia. Era uma outra concepção de música como expressão de arte e aquilo ia totalmente na contramão  do que era a música jovem dos anos 60 na época, que era uma coisa totalmente clichezada, totalmente calcada no clichê mais docilizado dos Beatles do começo da carreira, um som que, nas mãos dos produtores de disco aqui, nos anos 60, se transformou no iê iê iê, que era, com efeito, o produto mais embalsamado vendido para um público docilizado, que era o da Jovem Guarda. Ao mesmo tempo, vivia-se uma polarização absurda entre música brasileira de raiz contra a própria Jovem Guarda, enquanto um movimento outsider como a Pliantragem conseguia vender disco num nível Roberto Carlos, para o desespero dos papas da Tradicional Família Musical (como diz o Augusto de Campos). 

O tropicalismo musical, muito além de teorizações plásticas, cênicas, epistemológicas, era uma resposta e uma síntese a esse impasse, mas num nível sincrônico, isto é lidando com a música de seu tempo, muito longe, ao meu ver, desse papo sobre Oswald de Andrade, que está dado nos postulados tropicalistas, mas o debate aqui, com Duprat, Mutantes e Gil era no sentido de acertas os relógios da estética musical jovem com os do rock internacional, e tendo que passar a caravana diante dos cães furibundos que defendiam os valores do samba, da música nacional, enfim, o tinhorãozismo da crítica da época. O Duprat, no papo com o Augusto, fala tanta coisa interessante no âmbito musical de como essa música experimental iria encontrar o seu caminho na sua relação com Gil e os tropicalistas no sentido de transcender tanto o debate violão versus guitarra quanto o produto datado da Jovem Guarda que, guardadas as proporções e os afetos de quem viveu o movimento como fã, era uma versão barata embora dentro de um contexto específico, que era o do Brasil dos anos 60, ainda atrasado com relação às novidades do pop, enfim, barreiras de época, tanto que o que podemos chamar de contracultura no Brasil foi um fenômeno que aconteceu no Brasil no começo dos anos 70. Isto é, o Brasil caminhava atrás de resto do mundo ainda em tempos de pré-mundialização. 

Claro que esse acerto de horários culturais não se deu de forma pacífica. Foi preciso que imprensa, gravadoras e crítica se interessasse pelo rock, e isso foi um longo caminho. Outra questão, pegando MPB e rock é que, como observam alguns pesquisadores, por causa do Tropicalismo, MPB e rock nacional caminhavam de mãos dadas no começo dos anos 70. E não se sabe porque (se sabe, como veremos adiante) um dia resolveram separá-los. É só ouvir os discos da Gal, a embaixadora da Tropicália no Brasil quando este estava no exílio com Caetano e Gil: ela é MPB e rock. Nos anos 80, como diz Fernando Muratori Costa, quando a imprensa brasileira quis agendar o noo rock dos anos 80, o fez, como ele demonstra em sua pesquisa, na contraposição entre MPB e rock, acusando aquela de ser “bloated”, ultrapassada e que o novo rock da Blitz, da “nova” Rita Lee fase Som Livre foram vendidos como a novidade do rock oitentista, intelectual,alegre, cara limpa (para melhorar a imagem de bandido que  Tradicional Família Musical Brasileira tinha dele), contra a MPB borocochô de produções mastodônticas, ultrapassada. Essa pesquisa é interessante para que se veja o papel da imprensa no agendamento do BRock, algo que, por exemplo, no rock dos anos 80, sem o mecenato simbólico das revistas e jornais, sem as FMs e mal difundido e divulgado nos anos 70, não iria conquistar a mesma visibilidade. 

A verdade é que, e isso se descobre à medida em que a bibliografia avançou nos últimos anos, existe toda uma genética a ser desvelada nessa longa duração do rock brasileiro e da MPB. Ao retroagirmos, chegamos a esse ponto anterior à inflexão, onde MPB e rock andavam relativamente juntos sob o guarda-chuva tropicalista. É nessa perspectiva que me parece que é importante retomar a questão do tropicalismo, mostrando suas relações “dialógicas” com o contexto de fora do Brasil no sentido de superação estética do rock que representava a Jovem Guarda, que era, ao mesmo tempo, a nêmesis e referência, já que era a partir dela que os tropicalistas podiam quebrar lanças contra a Tradicional Família Brasileira. Da mesma forma, lendo a entrevista do Duprat, é possível perceber como o happening de “É Proibido Proibir” e da hendrixiana “Questão de Ordem”, mais do que mera água no chope do ambiente de festival, foram momentos importantes na história dos certames, nesse sentido, mais importantes, como diz Duprat, que “Domingo no Parque” e “Alegria, Alegria”. “Questão de Ordem” é Duprat sendo Duprat. Quem ouve, mesmo hoje, essa gravação do Gil, fica perplexo com o fato de que ele inscreveu a canção no festival. Duprat revela que, quando Gil mandou a fica com a música, ele mandou o registro da gravação “normal”, como voz e violão. No palco, ele fez o que fez, e depois registrou oficialmente em disco. “Questão de Ordem” ficou como um momento desviante no Festival da Canção, onde todos os olhos estavam postos para Vandré contra o “Sabiá”. Mas, por exemplo, se não fosse “Questão de Ordem”, não haveria Macalé e “Gotham City”. Naquele momento, o que interessava a essas cucas era marcar posição no sentido de uma nova conformação da música pop no Brasil, sem amarras, sem preconceitos, entrando e saindo de todas as estruturas, para mim, esse é um debate a ser feito nas futuras abordagens sobre Tropicalismo em música, pegando esses aspectos em sua longa duração.  

 

 

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