Wednesday, December 09, 2020

Coralidade e performance na poesia de Safo

 

Sempre que se fala em Safo, o imaginário que existe em torno dela é de uma poetisa lírica e sensual. Já li autores discorrendo sobre literatura grega que separavam a lírica da épica ao explicar que enquanto esta fala de grandes feitos, é “objetiva”, aquela é o poeta falando de seu próprio eu, mais subjetiva. Porém, estudos recentes mais focados na questão ou, como diz Giuliana Ragusa, um “enfoque intensificado na performance da mélica grega arcaica, e o resultado tem sido a avaliação mais precisa da produção de Safo, e a ampliação da distância das leituras biografizantes e romantizadas, que tanto buscam na poeta o que é estranho à sua poesia e, em verdade, à poesia antiga como um todo: a voz pessoal, o subjetivismo, o intimismo, a privacidade, os sentimentos confessos do “eu”.

Ou seja, para ela, estudar tanto a mélica grega quanto Safo, é preciso desviar-se dessas perspectivas de análise. Creio que a grande questão atualmente é pensar os poetas e os modos de produção poética a partir da performance, a partir do que se propõe o autor e qual é o público a quem ele se dirige.

Existe outra questão a partir desta: toda a produção literária, desde a poesia até o teatro naturalmente esta cifrada a um contexto relativo, para uma situação convencional oral, como diz ela, e para uma “audiência específica”. O contexto daquele tempo não era a do texto impresso, do livro de bolso, que nós lemos em casa ou na biblioteca.  Ela era pensada tendo em vista uma representação pública. Aí teríamos variações, poesia para declamação em simpósios, em eventos esportivos, uma dramatização, como as dionisíacas. A expressão “lirismo” teria sido ressemantizada como uma poesia do coração. Mas a lírica, ou mélica, como diz Ragusa, está essencialmente associada à uma apresentação ou performance, e o mesmo vale para Safo. Esses textos não são propriamente especialidades ou gêneros literários, eles se encontram antes do que seria possível chamar de literatura.

Safo (630-580 a.C.) foi uma poetisa nascida na ilha de Lesbos (nordeste do Mar Egeu), e viveu na mesma época de outro poeta, Alceu. Pouco se sabe sobre sua vida, além do fato de que pode ter sido uma eupátrida de Mitilene. De sua obra restam apenas fragmentos. Além da Canção sobre a Velhice, outro poema conhecido que chegou até nós foi uma ode a Afrodite e a Títono, aquela restante a partir de uma citação de outro autor grego. Destes, Ragusa cita a Canção sobre a Velhice, um fragmento de Safo encontrado em 2005. Ela diz que, no texto, é sua a voz nos versos, a cantar como se, sobrevindo-lhe a velhice, restasse-lhe dançar na canção que tematiza a atividade coral, a qual se faz fonte que viabiliza “a imortalidade poética e a juventude eterna”.

.. (das Musas) de violáceo colo belos dons, ó meninas, ... a lira melodiosa, amante do canto;  outrora tenra (a pele), agora da velhice ... e (brancos) se tornaram os cabelos negros. Pesado se me fez o peito, e os joelhos não me carregam – os que um dia foram ágeis no dançar, como os da corça. Isso lamento sem cansar. Mas que fazer? Desprovido da velhice não se pode ser, sendo-se humano. Pois, certa vez, dizem que Eos, róseos braços, com paixão ...(?) carregando Titono aos confins da terra, belo e jovem que era; mas similmente alcançou-o em tempo a grisalha velhice – ele que tinha imortal esposa.

A respeito da atividade coral, sabe-se que Safo era uma espécie de preceptora de meninas para sua entrada para a vida adulta, como no costume de época. Este texto, diz a autora, é o que resta de um “partênio”, “uma espécie mélica que consiste na canção para performance por coro de parthénoi, como são chamadas as moças ainda não casadas, as “virgens”. Como preceptora dessas meninas, ela ensinava a elas o canto coral. Como coreutas, elas interpretavam essas canções como parte de uma performance a um determinado público.Neste caso, seria algo como um festival cívico-cultual. Cívico diria-se que isso tem a ver com o fato de que essas apresentações, tais como as tragédias, mais do que mera representação teatral, elas faziam parte das atividades e da vida da polis. Todos eram “convocados” a assistir estes festivais.

 Citando André Lardinois, Giuliana explica que o poeta da mélica coral “não apenas compunha as canções, mas preparava e acompanhava o khorós que a apresentava com dança coral – sentido básico do termo grego – e canto coral”. Sobre a natureza da performance, o conteúdo dos poemas, a partir da Canção sobre a Velhice, Ragusa infere que a imagem do texto  “não apenas realça a dimensão coral de sua mélica, mas que indica que Safo teria desempenhado a função de khorodidáskalos junto às meninas a ela associadas, que abarcaria a orientação do desabrochar da feminilidade das parthénoi, futuras esposas a serem preparadas para tal condição (...):

(...) na moldura institucional da performance na competição realizada no festival cívico-cultual em que se apresentam, são apresentadas à cidade, às famílias de seus futuros maridos, dos noivos em potencial. São atestados os grupos de meninas de origem aristocrática, nos quais elas recebiam a formação feminina específica, que incluía a atividade coral – canto, dança, música –, a reafirmação de valores ético-morais – sempre um elemento de força na mélica coral – e o conhecimento da tradição mítica, a preparação para o casamento designado gámos, termo cujo sentido básico é o “sexo” e, na medida em que este a consuma, a “boda”. Tal preparação consiste no exercício da sensualidade, do erotismo, que, reitero, num cenário em que corriam paralelos os mundos feminino e masculino, dava-se internamente, no caso das parthénoi, ao universo feminino (RAGUSA, 2019, p.92).

Nesse sentido, ela observa que qualquer interpretação relativa à homoafetividade nesses poemas corais não passa de uma visão anacrônica.  Ao citar Maria Fernanda Brasete, ela diz que relação entre pessoas de mesmo sexo naquele tempo era algo tão natural que não haveria porque rotulá-lo. Brasete conclui que falar de erotismo grego não é o mesmo que falar de sexualidade, “porque, em primeiro lugar, não se trata de fenômenos atemporais e, por conseguinte, não podem ser descontextualizados das práticas sociais institucionalizadas numa determinada comunidade histórica”. Nesse sentido, Giuliana  Ragusa entende que seria preciso, hoje, fazer uma revisão da obra de Safo de forma a entender, a partir da performance, uma maior atenção à signos que estejam relacionados ao mundo feminino das partenói e, com efeito, à coralidade em si - segundo ela, um elemento subestimado senão ausente nas leituras modernas dos poemas de Safo. 

Essa leitura “moderna”, diz ela, insiste em “tomar por íntima, pessoal e privada a voz de seus versos, nos quais Safo manipula com perícia a linguagem de modo a criar a impressão de intimidade”. Esse “clima” acaba dando (para os ouvintes modernos) essa impressão de canções compostas para um grupo fechado de moças. Ao analisar o corpus de Safo a partir dessa perspectiva, a autora observa elementos presentes nos fragmentos, que apontam para o universo do universo das parthénos: “Entrelaçam-se no mundo do gámos, essencialmente feminino, a coralidade, o erotismo, a beleza. Entrelaça-se estreitamente à mélica sáfica essa trama que sustenta as relações e mesmo a função essencial do grupo de parthénoi, amiúde relacionado à persona de Safo nas composições, de modo coletivo ou individualizado”. 

O parthénos, ela reitera, é um termo ligado ao status “transicional na vida feminina, entre a tenra infância e a idade adulta, esta nomeada em gynḗ, termo que indica a participação no mundo do sexo a partir do casamento”. Porém Giuliana diz que na vida das coreutas, esse momento de transição é, também um momento de crise: é o momento em que elas deixam para trás infância e os cuidados de suas mães e entram no mundo de sexualidade, de maternidade. Essa transição era como se fosse uma pequena morte. 

A lembrança daqueles momentos de transição, de formação e as relações interpessoais como parthenós porém representaram momentos importantes que elas carregarão para o resto de suas vidas. “Pela linguagem da coralidade e da poética sáfica se neutraliza o trauma da separação”, diz. Por fim, como diz Giuliana Ragusa, seria importante, pois, entender a poesia de Safo sob a perspectiva performática – e a poesia grega em geral, no sentido de que elas tinham essencialmente por propósito uma performance, ou seja, uma representação  pública, e eram destinadas a declamação – seja por Safo ou por um coral.


REFERÊNCIA 

RAGUSA, Giuliana.  A coralidade e o mundo das parthénoi na poesia mélica de Safo. Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 85-111, 2019 eISSN: 2317-2096 DOI: 10.17851/2317-2096.29.4.85-111.


No comments: