Thursday, December 17, 2020

Alma Familiar

Beethoven em 1803, por Christian Hornemann

Lá por 1823, Beethoven era um homem dividido. Ele frequentemente recebia pedidos de peças por parte de editores musicais. Por outro lado, surdo e exaurido após uma extensa batalha judicial para conseguir a guarda do sobrinho Karl, ele se tornara uma figura inescrutável e abissal, distante do convívio com as pessoas. Certa vez, foi preso por desacato numa taverna. Andrajo como estava, rescindindo a cerveja e vinho, com a roupa amarfinhada, certamente de viver dormindo dias a fio com elas, a polícia não o reconheceu como o famoso compositor vienense. Apesar das relações azuis, seu sangue não era da mesma cor. Não conseguindo casar nesses termos, viveu o resto da vida só. Só e incomunicável, desleixado, e frustrado pela surdez que o impediu de reger uma nova apresentação de Fidélio naquele ano. Ele tentou reger sua ópera mas foi demovido a apenas assisti-la (sem ouvi-la). Essa era a sua sina. A Coral, composta um ano depois, ele viu apenas em sua imaginação. Sua produção final morreu junto com seu mundo de silêncio, tão apartado da vida anterior.

Mas Beethoven vivia para música e de sua música. Diferente de seus antecessores, ele viveu o que se poderia chamar de a aurora da indústria musical a partir da Europa. Nessa época, 1823, ele já mantinha contatos com publishers como Anton Diabelli, um dos primeiros grandes nomes do ramo (posteriormente junto com Playel, Breitkopf e Hartel, etc). Diabelli, contemporâneo mais jovem que o mestre de Bonn, seria responsável por uma das obras mais célebres do repertório de Beethoven, as Variações Diabelli, que estariam para o autor da Nona o que a Oferenda Musical está para Bach. No entanto, enquanto Diabelli era um editor imteressado a vender partituras de cunho popular, versões transcritas para piano de árias e cançonetas, Beethoven, como era de seu feitio, não era muito apegado a cunprimento de prazos. A sua "nobraza" lhe permitia tal trato e distinção. Se ele fosse brtânico em matéria de cumprimento da prazos, talvez ele ficasse rico a partir dali - dada a quantidade de oferta que ele recebia para quartetos, óperas e outras peças.     

Aliás, um capítulo sobre Beethoven e sua relação com a ópera valeria um outro post. Ele, que compôs a duras penas Fidélio, certamente moveu mundos e fundos porque o libreto falava de uma causa nobre. Era uma história de resgate, da vitória das Luzes contra o obsurantismo. Era uma causa que o revolucionário Beethoven defendia de fato. Ou seja, é como se os fins dessa criação singular em seu corpus musical estivessem cifrados num princípio político, mais político do que estético. Posteriormente, no fim da vida, ele chegou a receber propostas de escrever óperas. No entanto, naquele segundo momento da ópera alemã, a influência do começo do Romantismo com Weber e o Franco-Atirador já prenunciavam mais um ideal estético que seria plenamente desenvolvido com Wagner, mas que passavam ao largo dos interesses de Beethoven. 

Grillprazer ofereceu-lhe um libreto de Melusina, texto já apontando para essa tendência da ópera alemã dos próximos anos. É compreensível o desinteresse do compositor pela peça. E isso talvez seja indicativo que, se ele vivesse mais alguns anos, talvez achasse a fina flor do reacionarismo alemão os dramas musicais de Wagner, este completamente tributário do legado do criador da Eroica. O veradeiro ideal de Beethoven não estava em representações mitológicas tão ao gosto do Romantismo posterior. O seu ideal libertário e revolucionário está em Fidélio, nas sinfonias, principalmente na Quinta e na Nona, na Missa Solene e na Sinfonia Coral, com sua celebração à alegria e uma crença inabalável nos ideais de liberdade e de humanidade e de união entre os povos - elemento que está ausente em seus discípulos. Beethoven era da geração da Revolução Francesa. Não tinha parte com todo o reacionarismo que a Europa desenvolveria nas décadas seguintes à sua morte. Ademais, comentando sobre um encontro com Rossini, o grande operista italiano, a despeito de admirar a música do mestre de Pesaro, Beethoven entendia a ópera como “mero entretenimento”.

 É curioso notar que a distinção que ele obteve como compositor não fora abalado pela sua vida particular. O litígio com Johanna mostrara um Beethoven irrascível, obcecado, maquiavélico, no paroxismo de seu ódio para derrotá-la nos tribunais, fez de tudo para confiscar Karl de sua mãe. Ele conseguiu, mas foi uma vitória de Pirro. O rapaz não correspondeu às expectativas do tio, ainda mais quando, como num duplo de seu pai, Beethoven quis transformá-lo num menino prodígio, assim como Johann havia feito com o menino Ludwig. 

Naquelas condições, sendo quem ele era na vida real, querendo projetar no futuro do filho de Johanna um futuro promissor como músico que ele não vislumbrava mais em sua vida. Sua surdez foi uma morte em vida, que ele quis abreviá-la em Heiligenstadt, quando escreveu um famoso testamento (um testemunho desesperado de alguém que, por trás da máscara, revela uma pessoa turturada pelo destino e pelo futuro), que a posteridade iria transformar num exemplo romântico do gênio torturado. Aliás, nos anos seguintes à sua morte, em 1827, coberto de problemas que iam desde a cirrose cavalar à icterícia, a literatura sobre o mestre de Bonn foi pródiga em encapsular essa imagem do “gênio torturado”. Imagem que acabou prevalecendo em detrimento desse Beethoven real que era um outsider mas que se orgulhava de usar sua posição de não austríaco e não ter sangue azul para zombar daquele estabilishment, algo que seria impossível para seu mestre, Haydn – um compositor de libré, que convivia com imperadores e arquiduques mas além de submeter-se à eles, na hora da ceia, ele jantava com os criados. 

Essa imagem de gênio torturado, aliada à de um livre-atirador, um irascível, tosco, quase violento, um ser quase abjeto, como diria dele Carl Maria Von Weber, um subversivo, explorador de novas harmonias no campo musical, de impor mudanças nas velhas formas musicais que poucos ou ninguém ousaria até então, forjaram essa imagem de um compositor como Beethoven que, poderia-se dizer, é a imagem padrão de um artista. Para quem começa hoje a ouvir música clássica, acredito que ele é o começo. É como gostar de futebol a partir da uma paixão particular por um clube. 

Sem esse começo, tudo parece a mesma coisa. Com ele ou com qualquer outro, é possível adentrar nesse imenso casarão que é a música erudita e começar a entender, por sua vida e sua obra, o que é esse gênero tão interessante e começar a mobiliar a sua própria casa com esses novos móveis. Beethoven é um exemplo inefável porque, a despeito de toda a ruína da sua vida pessoal e de toda a mistificação que se criou a partir de biografias romanceadas sobre o autor da Sonata ao Luar que, depois de muito ler, ao ouvi-lo, parece que submergimos a outro mundo, de uma música que, longe do estéril turbilhão da rua, como diria o poeta parnasiano, conta a história, a vida, os sentimentos, o ímpeto e as aspirações de uma outra pessoa, e quase de uma alma familiar. Essa pode ser um caminho para entender o ideal estético de um compositor como Ludwig Van Beethoven, cujos 250 anos de nascimento lembramos hoje. 


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