Saturday, December 19, 2020

O expedicionário

 

Paul McCartney em 2020


Eu poderia fazer uma resenha do novo disco do Paul McCartney mas na verdade eu não sou jornalista musical e nem gostaria de cair naqueles clichês típicos. Então, se você acha que eu vou resenhar o McCartney III, pode parar de ler por aqui mesmo, e até. Mas confesso que já escutei o seu novo trabalho umas quantas vezes e posso dizer que nem seria uma questão de gostar, até por duas questões: 1) no alto de sua considerável distinção como compositor, Paul está além de qualquer crítica; 2) ele não tem nada a perder em lançar mais um álbum em sua carreira, muito pelo contrário. Lembro quando do Egypt Station. Ouvi fãs dele falarem naquela época (2018) a respeito do disco que ele era “desnecessário”. De fato, ninguém esperaria encontrar ali “Silly Love Songs” ou “With a Little Luck”. Na verdade, como falei antes, a “necessidade” do novo disco reside no fato de que ele continua compondo e, para um cara como ele, compor é uma segunda natureza. Até acho que, de fato, gente da geração dele, como Dylan e os Stones surpreendem por mostrarem-se prolíficos ainda hoje, mesmo que estejam já distantes de um momento no tempo e no espaço em que eles revolucionaram o campo da música como entendemos hoje. O próprio projeto do McCartney III como o fim de uma trilogia que imagino que, lá em 1970, não fora cogitada (já que, como ele disse, antes da pandemia, sequer o terceiro disco estava estabelecido). O que eu acho interessante é entender a natureza desses três discos como inflexões mais exploratórias em sua discografia, remetendo a uma subclassificação na obra de Paul e diferenciá-lo de Egypt Station para entender quais são as características  particulares da ótica de McCartney em conceber o terceiro disco, agora sim, como uma conclusão dessa variante de sua produção discográfica que, em 2020, fecha um ciclo de meio século. O primeiro McCartney foi duramente criticado quando saiu em 1970 e talvez o seja menos hoje. Afinal, era um disco experimental, feito à revelia dos outros Beatles e lançado como quase como o pivô do fim da banda. Tanto George quando John haviam lançado discos experimentais antes – Harrison lançou o seu dois anos antes, pelo selo Zapple, um trabalho que nenhum fã gostou ou gosta até hoje e que jamais poderia ser reabilitado, já que a transa é em outra praia, que é a música eletrônica. Todos sabem o que o fã dos Beatles pensa de “Revolution 9”. Ou seja, essa é uma questão interessante: um artista pop e consagrado navegando por águas perigosas, porque vão além daquilo que seus ouvintes esperam dele. Os Beatles tinham cacife para colocar uma faixa como aquela no Álbum Branco. Na minha opinião, foi uma atitude corajosa e considero que ela é uma peça importante no corpus do grupo, mesmo que os fãs e os críticos detestem aquilo que tem mais a ver com musica concreta e eletroacústica do que pop. Mas apenas o fato de abordar esse tipo de música e contrabandeá-la num disco comercial é um grande feito – como também foi o de trazer a música indiana para o rock. Se um compositor de música eletroacústica como Stockhausen gravar rock não iria chocar tanto como os Beatles fazendo o caminho inverso. A postura dos Beatles na época coadunava com a atitude da banda, que sempre procurou dar um passo à frente. McCartney, na medida em que se transformou em produtor, também quis, como era de sua natureza, ser um expedicionário do estúdio, e pôr suas idéias na fita, como Les Paul também era. Paul diz que todo esse experimentalismo (ele disse isso numa coletiva sobre o McCartney II) sempre foi algo constante em sua vida. Recordava que, ainda menino, usava o banheiro de seu antigo sobrado em Forthlin Road como câmera de eco. Esse é o começo do Paul da trilogia, do Chaos and Creation ou o Fireman, o Paul que, antes da pandemia, já sabia dar cabo de seu ócio criativo. Existe o Paul entre amigos, o Paul do Wings, dos Beatles, das bandas que ele tocou nas turnês. E existe esse outro Paul, o Professor Pardal, o que vai colocar synth com uma bateria de vaso de banheiro e usar um guia telefônico como tarol de bateria ou um kazoo com a própria voz e mixar tudo com bastante reverb e seja o que Deus quiser. Esses são as duas vertentes de seu trabalho, e que podem ser divididas – isso é visível na sua discografia, independente que o resultado seja, em parte, de qualidade “duvidosa”. É o médico e o monstro - o Paul dos palcos e o Paul do eco no banheiro. 
A frustração do fã que ouve “Maybe I’m Amazed” e “Man We Was Lonely” é a de que se ele jogou o sarrafo longe com a primeira, parece que faltou força para segurar o disco inteiro. Mesmo caso com o II: Paul lança a bela “Waterfalls” e “Coming Up” e ao mesmo tempo “Temporary Secretary”. A reação dos fãs é a mesma. O fã quer as “catchy songs”, as canções cativantes associadas à Paul, não querem nem o John experimental, nem o George experimental, muito menos o Paul experimental. Claro que o trauma deve ser tanto que até hoje outra peça experimental (talvez mais avant garde que “Revolution 9”) que é “Carnival of Light”, acabou solenemente proscrita dos futuros lançamentos dos Beatles porque com certeza os fãs iriam detestar. Talvez. Talvez hoje fosse o momento para que ela fosse lançada, mas só sobreou ela. Mas enfim, as críticas são importantes, as mais negativas também, até mesmo quando elas envelhecem com o tempo e viram motivo de risada, e Paul foi literalmente pichado pelo primeiro McCartney, acusado de falta de criatividade e outros bichos. Claro. Faltam os outros Beatles e Paul pôs o seu na reta em lançar um álbum solo naquele momento, sem proteção, pronto para encarar de frente um torelinho de enragés prontos para acabar com um disco que poderia ser parte do...próximo disco dos Beatles, e ele acabou com tudo aquilo e deixou aquele disco como legado? Um disco que talvez fala mais por aquilo que ele deixa de apresentar, que é a contribuição dos outros três Beatles.  O II pelas digressões tributárias do rock alemão dos anos 70 e do minimalismo, coisas para as quais os fãs de música pop não têm nenhuma paciência. Mas o artista não tem nada a ver com isso. Se uma pessoa como ele tivesse que se repetir a cada álbum, ele teria vendido muito mais discos mas sido muito menos fiel a si mesmo e às suas ambições. Esqueça o Paul de “Silly Love Songs” ou o de “With a Little Luck”. Mas pense no Paul como Stockhausen, Cage, Reich, Les Paul, compositores que  descobriram novas esferas musicais e, querendo ou não, colocaram o bode na sala e nos forçaram a repensar o fazer e principalmente o de ouvir além do conhecido. Acho que somos muito acomodados em matéria de gostos e gente como eles estão milhas na nossa frente mas esperando que sigamos seus passos. E, meu amigo, se você não gosta de “Revolution 9” e de "Temporary Secretary"  meu amigo, você não chega lá. Você não é do ramo.  


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