Thursday, December 19, 2019

Pequena história da música de Natal


Capa do A Christmas Giftfor You (1963), disco coletivo produzido por Phil Spector, clássico do gênero natalino



Para fins desse blog, aproveitando o ensejo das festas de fim de ano, das quais infelizmente não faço parte, pensei em alinhavar uma brevíssima pesquisa sobre as origens e a história das músicas de Natal. Então, à guisa de periodização, pensei em separar essa apresentação em partes: 1) Idade Média; 2)  Dos primórdios da imprensa (1450) até o século 19; 3) do século XX, com a indústria da música e do disco, até hoje.

Eu então começaria dizendo que parece óbvio dizer que o começo está na difusão do cristianismo na Europa. O Cristianismo, na Idade Média, de certa forma, iria mostrar às pessoas em geral uma espécie de mundo interior que ele ainda não havia conhecido. Esse movimento para dentro de si fez com que eles olhassem as coisas de forma diversa de como olhavam antes. A arte musical iria, dessa forma, permitir esse movimento e, ao mesmo tempo, fazer com que eles exteriorizassem sentimentos de integração social através da religião. Pode-se dizer que em momentos especiais do ano litúrgico, como no caso do período adventício, essas práticas se exacerbavam.  

Então eu chegaria até o Século IV: tradicionalmente atribui-se a Ambrósio de Milão a promoção do canto antifonal, um estilo no qual um lado do coro responde de forma alternada ao canto do outro, e também a composição do Veni redemptor gentium, uma antífona que poderíamos chamar de um dos, se não o primeiro hino natalino.

É importante ressaltar que, nesse momento, essa produção estava nas mãos da Igreja. E a Igreja possuía uma divisão do tempo chamada “horas canônicas”. 

Desta forma, havia um ofício específico que devia ser observado pelos clérigos durante o dia, onde em cada respectiva parte fixa do dia são realizadas tarefas específicas, como orações, leituras, etc. Assim como existiam as horas canônicas,eles mudavam em parte em determinados períodos do ano. Naquele tempo (séculos 4 a 7 depois de Cristo) e depois, a parte ‘natalícia’ compreendia o tempo adventício, do dia 1º de dezembro até a véspera de Natal. Muito do simbolismo do Natal, e que pode-se ver até hoje, é tributário do simbolismo da comemoração do advento: as bolas vermelhas dos arranos, as quatro velas, a coroa de louros (que foi depois plasmada em outros símbolos, como a guirlanda). A música, por sua vez, celebrava as figuras do advento: Isaías, o profeta; José, João Batista e São Estevão, cujo dia é 26 de dezembro. O Sederunt Princeps, por exemplo, cântico a quatro vozes (que é citado por Umberto Eco em O Nome da Rosa), composto por Perotin lá por 1200, em Paris (quando ele era associado à chamada Escola (musical) de Notre Dame (que foi redescoberta recentemente por músicos minimalistas dos anos 1970) que, naquele tempo, estava em construção) pode ser considerado um tipo de música adventícia (na verdade, pós), mas associada ao período natalício, ou seja, uma  “proto” música de Natal.

Contudo, essas antífonas e motetos eram compostos a partir de textos em latim. Atribui-se a Francisco de Assis, já no século 13,  a popularização de cânticos natalino em vernáculo, justamente num período em que a própria poesia (primeiro os occitanos, depois Dante e Petrarca) começava a ser produzida em linguagem vernacular. Este pode ser considerado a virada, quando cantigas de Natal passam a serem difundidas entre o povo, na Europa da segunda metade da Idade Média (a baixa Idade Média).

Nessa pesquisa, eu não poderia esquecer, por exemplo, de um abade inglês, chamado John Awdlay, do século 15. Nessa época, ele compila várias cantigas de Natal num códice (uma coleção de canções sob o mesmo tema)  composto de 25 cânticos de Natal, e que originalmente entoados por vassalos pelas ruas e casas de aldeões,  mais ou menos como nós vemos hoje, ainda aqui, no interior ou no litoral, com os ternos de Reis.  

Seria importante anotar também que, nos séculos seguintes, esses cânticos tornam-se cada vez mais populares. Com o surgimento da impressão (desde a partir dos principais centros, como Veneza, Paris e Nuremberg), esses cânticos se difundem pela Europa continental.

No século 17, a Revolução Puritana bane os festejos de Natal. Porém, após esse interregno, anos depois, na Era Vitoriana assiste-se a um novo interesse a respeito de cânticos de Natal. Nessa época surge uma nova leva de canções temáticas, como "Silent Night", "O Little Town of Bethlehem", ou "O Holy Night". Esses novas canções aqui já passam a tematizar, pela primeira vez, a figura de São Nicolau, ou Papai Noel.

Deve-se também salientar que, nessa época, ocorre a difusão de livros contendo cânticos de Natal. Igrejas da Inglaterra, Europa e de outros países passam a adotar cada vez mais esses cânticos. Ao mesmo tempo, surgem canções que fogem à relação estritamente direta com temas do Natal religioso.

Essas cantigas têm um estilo mais secular, e estão cifradas mais dentro do universo familiar e nacional de cada país, ou seja, ocorre, a partir da segunda metade do século 19 uma progressiva secularização dos cânticos de Natal.

No campo da música clássica, mesmo com a diminuição da influência da Igreja nessa produção musical, muitos compositores dedicam-se á temática natalina. Como exemplo, podemos citar o Oratório de Natal, de Bach (BWV 248), Virga Jesse Floruit, de Bruckner, L'enfance du Christ (1853–54) de Hector Berlioz, o Oratorio de Noël (1858), de Camille Saint-Saëns e o balé Quebra-Nozes (1892) de Pyotr Tchaikovsky.

No terreno popular, cabe acrescentar à uma possível pesquisa que, entre os séculos 19 e 20, surgem centenas de cantigas que tematizam o Natal, como "The First Noel", "Go Tell It onthe Mountain", esta originalmente um negro spiritual, "O Christmas Tree" (O Tannenbaum) e "Jingle Bells". A partir de então, surgem músicas de Natal com autoria definida além de pesquisadores de antigos cânticos medievais, como Ralph Vaughan Williams (1872–1958), que passam a divulgar aquelas canções em livros e com partituras. Essas canções já eram publicadas desde o século XV. Porém, com a popularização da imprensa, a partir da segunda metade do século 19, livros como Christmas Carols, New and Old (Bramley and Stainer, 1871) desempenham um papel capital na difusão das músicas do passado e a consolidação da prática do cântico (caroling). Esses livros, impressos de alcance popular, de forma a estabelecer (e abastecer) o repertório de corais e de igrejas em todo o mundo. Essas publicações continuam sendo impressos e divulgados hoje. 

Com o surgimento de editoras musicais, como ocorre nos Estados Unidos, entre o fim do século 19 e o 20, a partir do Tim Pan Alley, a ascensão de compositores especializados e associados à essas editoras, além da massificação dos espetáculos da Broadway e a popularização da fonografia, a canção de Natal entra numa nova fase. 

Temas como "Santa Claus Is Coming to Town" (Fred Coots e Haven Gillespie, de 1934) ou “White Christmas” (Irving Berlin, 1941, que vendeu mais de 50 milhões de cópias do single na voz de Bing Crosby), com o advento da indústria cultural, tornam-se sucessos massivos, vendendo magotes de discos, tanto nos Estados Unidos quanto em todo o mundo, e rapidamente ganham várias e diversas interpretações, também em gêneros diversos. Os próprios gêneros, de forma cada vez mais segmentada, passam a desenvolver canções natalinas: um exemplo é como o rock se apropriou da temática, com sucessos como"Let It Snow! Let It Snow! Let It Snow!”, "Winter Wonderland," ou "Sleigh Ride". Já com o desenvolvimento do long-play, a partir dos anos 1950, artistas dos mais variados estilos passam a gravar essas canções. 

Com o novo formato do disco, o álbum conceitual natalino torna-se uma espécie de tradição: todo grande intérprete ou grupo grava, pelo menos em algum momento de sua carreira, um disco temático de Natal, que viram uma febre: Freddy Quinn, Júlio Iglesias, Frank Sinatra, Elvis Presley, Johnny Cash, Bob Dylan e a inesquecível Simone, entre outros. 

Importante ressaltar numa pesquisa sobre o tema que, porém, a maioria das canções hoje populares — e que tocam em comerciais, em sistemas de som, na televisão e na Internet afora, em geral remontam ao período relativo entre o século 19 e começos dos anos 1920. 

A maior parte delas, de certa forma, também têm esse desempenho pelo fato de estarem livres de direitos autorais. Em geral, a maioria delas, somadas aos mais conhecidos cânticos, perfazem o que poderíamos chamar de o cânone das canções de Natal, e que, a despeito de serem de origem europeia ou norte-americana, possuem versões para diversas línguas. 

Pois a partir dos anos 1950, a característica das “novas” canções de Natal mudam, ganhando contornos românticos, usando apenas o motivo do Natal como ponto de partida. Ao mesmo tempo, dentro dessa retematização, surgem músicas que exploram características diversas ao estilo de cântico, apelando ou para o humor, o extremo romantismo ou o absurdo (novelity songs): canções que falam do cotidiano dos feriados de Natal e de seus signos, a neve, voltar para casa, troca de presente, esquiar no gelo, o inverno, Papai Noel chegando pela chaminé, bonecos de neve, a “rena do nariz vermelho”, a meia pendurada na lareira, etc. Como exemplo, é possível citar "The Little Drummer Boy" (1941), "Let It Snow! Let It Snow! Let It Snow!" (1945), “Jingle Bell Rock” (1963),  “Blue Christmas” (1957), “Boas Festas” (Assis Valente, 1933). No caso brasileiro, o disco de “Boas Festas”, interpretado por Francisco Alves, também se tornaria um fenômeno de vendas, e isso numa época em que a indústria do disco sequer começava a ciciar.

Da segunda metade do século passado em diante, embora cifradas como canções natalinas, a produção do gênero se caracteriza por estar bem distante do que se convencionou como modelo ou cânone. A temática é, desta forma, apenas uma licença poética. Exemplos não faltam. "Christmas (Baby Please Come Home)” com Darlene Love, do famoso A Christmas Gift for You from Phil Spector, disco que passou batido na época de seu lançamento, mas hoje, junto com o Christmas Album, do Elvis, são dois casos de álbuns natalinos que viraram clássicos.

Aliás, um parêntese: quando Elvis lançou esse disco, o autor de "White Christmas", Irving Berlin, como homem da indústria do disco, fez de tudo para que o disco e o cover fossem banidos das rádios. A estratégia, além denão ter logrado êxito, não deixava de ser curiosa: a versão do cantor para a canção de Berlin era muito parecida com a dos Drifters, lançada em 1955. Ou seja, isso mostra que o compositor se moveu mais pelo preconceito do que pelo arranjo, já que a versão dos drifters fez grande sucesso entre as rádios "negras" dos Estados Unidos, quando então não ocorreu nenhuma sanção contra a gravação daquele grupo. 

Outros exemplos de canções "modernas": "Pretty Paper", com Willie Nelson, "My Favorite Things", do musical A Noviça Rebelde, sucesso com as Supremes (depois recriada por John Coltrane, mas em outra proposta totalmente diversa), a tocante "River" do disco Blue, de Joni Mitchell e "Happy Xmas (War Is Over), com John Lennon e a Plastic Ono Band, apenas para citar alguns.

Por fim, a pesquisa poderia dar conta de adaptações e ou recriações de  canções natalinas. É o caso, por exemplo, de “Go Tell it to the Mountain”, transformada em música de protesto com os Waillers (cantada por Peter Tosh), além da versão de Simon e Garfunkel, do disco Wednsday Morning 3. A.M, e a versão do duo para “Silent Night” (“Silent Night”/7 ‘o Clock News”), esta também como canção de protesto, numa montagem sonora em que a música é cruzada com o áudio de uma resenha jornalística de tevê que fala da Guerra do Vietnã e da morte do comediante Lenny Bruce.

Enfim, para fazer uma pesquisa sobre músicas de Natal, é possível tanto contar uma breve história, pegando esses elementos e outros mais, sendo possível desenvolver mais alguns tópicos quanto, de outra forma, especializar-se em um ou outro tópico, falar dos carols clássicos, ou das canções mais recentes, ou falar das músicas religiosas, ou apenas das profanas, ou do Natal em música clássica. Várias possibilidades de abordagem podem ser feitas a partir daqui.


Tuesday, December 17, 2019

Woodstock em Porto Alegre

Cartaz do primeiro concerto de Vivendo a Vida de Lee, em agosto de 1975


Os anos 70 em porto Alegre foram resumidos numa frase que nasceu de algumas pichações que apareciam no bairro Bonfim: “deu prá ti, anos 70”. A frase foi o motivo condutor do filme homônimo de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti. Como diz o próprio Giba na dissertação Transgressão no Bonfim, do historiador Lúcio Fernandes Pedroso: "os anos 70 foram os anos da repressão, da ditadura, de quando não aconteceu nada. Então, esse sentimento de “chega de 70”, segundo ele, era uma coisa que povoava as cabeças dos jovens naquela virada de década. Já Carlos Gerbase, na mesma dissertação, tem uma outra visão: “alguém precisa resgatar os anos 70, alguém precisa dizer que eles não foram tão ruins assim. Afinal de contas, foi toda a nossa adolescência”.

Como realmente aconteceu, os anos 80 cuidaram de esquecer a década anterior. E os 90.  Porém, depois de tanto tempo, parece que a tese de Gerbase foi ganhando cada vez mais adeptos. Hoje pode-se dizer que existe uma considerável bibliografia a respeito daqueles anos. É possível citar desde as pesquisas de Juremir Machado da Silva (A Miséria do Cotidiano, Antes do Túnel), as memórias de Pedro Sirotsky e Claudinho Pereira (Lembra do Transasom e na Ponta da Agulha, respectivamente), a grande reportagem de Paulo César Teixeira sobre a boemia no entorno do campus Centro da UFRGS (Esquina Maldita),  até as dissertações de Marilene Nascimento de Souza sobre o Musipuc (2006, que merecia virar livro), a tese de Sérgio Endler sobre a rádio Continental AM (de 2004), além do próprio livro sobre a antiga 1120, escrita por Lúcio Haeser.

Para ver como o filão ainda rende frutos, este ano apareceram mais dois livros: Woodstock em Porto Alegre: Mister Lee, a MPB, o Pop e o Rock Gaúchos dos anos 70 nas ondas da rádio Continental AM, de Rogério Rainer (Já editores) e a supracitada dissertação de Lúcio Pedroso, que finalmente sai em livro (Fumproarte) de forma ampliada: História de um Bom Fim: boemia e transgressão, com lançamento previsto para amanhã, no Ocidente.

Mesmo com foco nos anos 80, o livro de Lúcio parte da boemia dos anos 70 que parte da Esquina Maldita para o outro lado do túnel da Conceição, na virada da década. Como nas falas de Gerbase e de Giba Assis Brasil, desde aquele tempo e até hoje, parece que há um discurso ambíguo de esconder e mostrar aquele passado que, para muito foi como se fosse recente. Mas a verdade é que os áureos anos da boemia da esquina da Sarmento Leite com a Oswaldo já vão para mais de quarenta anos.

É possível dizer que esses dois lançamentos se complementam, já que a Continental acabou sendo a mediadora tanto daquela geração que frequentava a boemia estudantil do Bonfim quanto aos jovens que adolesceram pelas ondas da 1120 ao som das picapes do Cascalho como Júlio Fürst, e tinham a emissora como referência.

No caso do ‘Woodstock em Porto Alegre’, existe uma história que faltava ser acrescentada a este mosaico. Assim como ocorreu em Rio e São Paulo, um caudal da era dos festivais seguiu em Porto Alegre ao longo dos “malditos” anos 70, como um, promovido pelo cursinho IPV e outro, que maior repercussão, que é o Musipuc.

Promovido pelo Diretório Acadêmico Santo Tomás de Aquino (CASTA) da PUC, em 1971, ele surge no momento em que os festivais em nível nacional entram em declínio. Com o tempo, o certame revelaria nomes de músicos que iriam moldar o que mais tarde seria chamado de Música Popular Gaúcha (MPG): Almôndegas, Nelson Coelho de Castro e Fernando Ribeiro, entre outros.

Porém, como uma andorinha não fazia verão, os frutos do Musipuc só ganharam projeção quando a Continental, através de Fürst, que foi jurado na quarta edição. Quando ele foi comissionado para divulgar o lançamento dos jeans Lee no Brasil, em 1975, ele decidiu colocar os artistas do festival em desfile nas ondas da 1120. Tal movimento mostrou que havia potencialidade suficiente ali para promover uma cena musical. Através do programa Vivendo a Vida de Lee, Júlio gravou muitas daquelas bandas na Continental — e a repercussão foi grande o suficiente para que rendesse um show, ocorrido ainda em agosto daquele mesmo ano. O show, que foi apresentado no antigo teatro Presidente, teve lotação esgotada, e com o dobro de público do lado de fora, fechando o trânsito na avenida Benjamin Constant.

O enorme sucesso da primeira edição do Vivendo a Vida de Lee, além de projetar nomes direto do Musipuc para os palcos, como Inconsciente Coletivo, Gilberto Travi e Cálculo IV, renderia, três meses depois, um segundo e apoteótico concerto, no auditório Araújo Vianna; este, sim, chamado pela imprensa como o “Woodstock de Porto Alegre” segundo Fürst, eram 4 mil pessoas dentro do auditório e dez vezes mais gente do lado de fora.      

Com o fim do patrocínio da Lee, em 1976, o projeto ainda seguiu, com apresentações no interior do estado e no Paraná, com um terceiro concerto no Círculo Militar de Curitiba, com a presença de quase setenta bandas e artistas, que também eram ouvidos lá através de uma parceria com a rádio Iguaçu, que retransmitia os programas daqui.

O fato ‘negativo’ de todo esse movimento, hoje lembrado por todos esses livros e teses, reside no fato de que, embora a cena independente em Porto Alegre fosse grande, ela não conseguiu encetar a carreira de muita gente: muito poucos chegaram a gravar: Almôndegas, Inconsciente (um single) e Fernando Ribeiro. Contudo, graças á parceria da Continental, com Fürst e Francisco Anele, engenheiro de som da rádio, muita coisa daquele tempo foi gravado e registrado. Uma amostra dessa produção independente pode ser encontrada na Internet e no CD encartado no livro de Haeser sobre a Continental. Todo esse material sobreviveu ao tempo, como testemunho de uma época em Porto Alegre que, se o tempo esqueceu, as cucas geniais de ontem e hoje relembram agora. O revival está apenas começando.


Monday, December 16, 2019

La Balsa

Los Gatos, o primeiro levante do rock argentino



Certa feita que eu tive que produzir um programa de rádio sobre a história do rock argentino. A primeira coisa que me veio à mente era um álbum que eu tinha, do Los Shakers. Na verdade, tratava-se de uma banda de origem uruguaia mas que acabou fazendo sucesso na Argentina, bem no auge dos Beatles. Mais do que isso, eles emulavam o som dos cabeludos de Liverpool. Ao mesmo tempo, me dei conta que não existia nenhuma publicação sobre o assunto publicado aqui no Brasil. Os Shakers, no entanto, fizeram grande sucesso por aqui, e inclusive chegaram aos primeiros lugares lá por 1967 com um compacto com “Never, Never” no lado A. Mas, ao pesquisar, percebi o meu erro geográfico em associá-los ao rock argentino.  E me dei conta que, assim como eu, a maioria dos brasileiros têm uma ideia vaga/não tem a mínima ideia do que é produzido nesse gênero musical do lado de lá da fronteira.

Quem é da geração dos anos 80 aqui em Porto Alegre deve se lembrar que a rádio Ipanema tocava bastante coisa de rock argentino. Isso não se dava só por uma questão de proximidade, mas de afinidade musical. Ao mesmo tempo, depois de um interregno com um histórico de repressão e esvaziamento cultural, tudo era novo naquela nova década. Então era possível: Los Abuelos de Nada, Manal, Seru Girán, Almendra, Vox Dei, muita coisa chegava até aqui gravada em fita.
Muitas dessas bandas não tinham discos lançados por aqui. Muita coisa do outro lado, do Prata, chegava em fitas, em discos trazidos por gente que mochilava por Montevidéu e Buenos Aires e trazia aqueles discos como se fossem novidade.  Foi através dessa rede de contatos que Charly Garcia veio tocar aqui, ainda naquela época, quando tocou "Los Dinosaurios" em pleno saudoso Teatro Leopoldina. Sua gira por aqui foi fruto dessa difusão cultural meio incipiente, mas bastante sincera, por parte dos pares daqui, que desde sempre apreciaram o rock platino.

Daí o papel de uma emissora alternativa como a Ipanema, em dar a oportunidade de descobrir aquele som, que era tão singular que nos fazia vislumbrar um outro mundo. O rock argentino, pelo menos para mim, sempre se notabilizou por ser um mundo diverso. Mesmo não obstante lançando mão de elementos tributários do rock original, eles souberam fazer uma fotossíntese musical com uma linguagem própria, e desde o começo. Isso fez com que, pelo menos por aqui, esse gelo que existe entre culturas tão diversas, como a nossa e a deles, pudessem encontrar pontos de contato.

A nossa MPG, que floresceu de forma tão mal documentada e com lacunas em sua visibilidade, a partir dos anos 1970, parecia fazer uma infusão originalíssima de elementos ‘telúricos’ em sua dinâmica. Isto é, essa música urbana daqui parecia ter algo de similar com os argentinos, de dialogar com elementos tão caros à latinidade. E o rock argentino, mesmo que para nós (ou para mim) pareça às vezes como o som de uma aldeia gaulesa no extremo sul do continente, ele estava voltado para os demais países da latinoamérica. Tanto que basta ver como bandas como Soda Stereo pavimentaram seu sucesso por toda a américa espanhola, enquanto por aqui muita gente ainda acha que “De Música Ligeira”  é do Capital Inicial (?).

Essa defasagem cultural, e esse estranhamento de culturas tão próximas quanto diversas fala muito como nós somos com relação à 1) cultura latina em geral; 2) quanto à cultura argentina especificamente. No primeiro caso, lembro de Luís Felipe de Alencastro, comentando sobre seu livro, “O Trato dos Viventes”, quando ele dizia que, de fato, não existe uma integração entre a latinoamérica e o Brasil. Ou seja, essa é uma barreira intransponível. Por outro lado, existe a velha rixa entre brasileiros e platinos, mais especificamente argentinos. Uma rivalidade que fala mais de preconceitos e etnocentrismos que talvez nunca ou apenas parcialmente sejam resolvidos. Mas esse é um assunto deveras complexo, e  transcende a proposta desse post.

Ao esquadrinhar a trajetória do rock argentino, acho interessante procurar pontos de contato com o rock brasileiro. No começo, tanto lá como aqui, os primeiros artistas de rock eram músicos mais experimentados (mais velhos) e oriundos de outros gêneros musicais, como Eddie Pequenino (lá) emulando Bill Haley e Nora Ney (aqui). No começo dos anos 1960, houve na Argentina um movimento, o Nova Ola: pré-beatlemania, que era uma espécie de proto Jovem Guarda deles. El Club del Clan era o programa de TV que lançou a moda da Nova Ola. Conjuntos de baile já faziam sucesso na tevê, como os Modern Rockers e Los Red Caps. O programa sofreu patrulha como aconteceu com o Jovem Guarda aqui, bem mais tarde, com a turma da linha dura da MPB engajada.

Eu havia comentado a respeito dos Shakers, e realmente eles foram um fenômeno interessante, tanto para o bem quanto para o mal. Para o bem porque, ao que me parece, como instrumentistas e intérpretes, eles eram impecáveis, e talvez não tivessem páreo ou similar no Brasil. Acho que a maioria dos conjuntos (com exceção dos Clevers) brasileiros estavam aquém do sarrafo lançado por eles. Para o mal porque, a despeito da excelência deles, os Shakers era quase uma banda cover dos Beatles, como os Mockers eram um símile dos Stones com os Kinks. E, além do mais, eles cantavam em inglês, o que confundia mais as coisas. A Audio Fidelity, de Sidney Frey chegou a tentar lança-los nos Estados Unidos, mas eles apareceram para eles mais como curiosidade: não havia como competir no mercado ianque com bandas inglesas e americanas fazendo rock nas paradas de sucesso.

Porém, uma coisa interessante a respeito do rock argentino com o brasileiro é que, enquanto aqui ele parecia cada vez mais calcado em covers e baseado no programa Jovem Guarda da Record, e parecia degladiar-se (de forma compulsória, provocada por Paulo Machado de Carvalho, o dono da emissora), na Argentina, ainda em 1966/7, um movimento de raiz universitária e underground já buscava saídas no sentido de conquistar autonomia e linguagem próprias. Grupos de jovens músicos passaram a se encontrar em espaços como o La Cueva” , o Instituto di Tella ou bares como a pizzaria “La Perla”. Esses músicos, que iriam virar figuras de proa nesse movimento, seriam Litto Nebbia e Ciro Fogliata, Pappo Napolitano, Miguel Abuelo e Tanguito, entre outros. A partir de reuniões no La Perla del Once que iriam surgir aquela que seria a trilogia inicial do “novo” rock argentino: Los Gatos, Almendra e Manal. 

Essas bandas, muito pouco conhecidas por aqui, foram as que resolveram esse impasse provocado pelo rock argentino até então tão influenciado pela tevê e pelo som internacional. A partir deles, com estilos próprios – embora naturalmente não negando essas influências pontuais do rock internacional, mas na demanda de uma síntese local. Ou seja, muito antes do Brasil, quando o gênero iria boiar no underground pelos anos 1970 afora com bastante dificuldade de atingir visibilidade na mídia, lá o rock conquistou afirmação desde cedo. E, desde aquele tempo, ele adotou uma postura alternativa, evitando qualquer relação com o mainstream e as grandes gravadoras, em favor de selos underground, como o Mandioca, que, guardadas as devidas proporções, poderia ser comparada à Rozemblit com relação ao udigrudi da psicodelia nordestina dos anos 1970.

Ao mesmo tempo, como se pode ver, muitas dessas bandas foram passando por projetos efêmeros ao longo da década seguinte, e,  minha impressão é a de que existia uma integração muito grande entre os músicos de lá, e que se relacionou com as novas gerações do rock. Aqui, no Brasil, parece que são momentos muito deslocados no tempo e que existe uma distância geracional entre roqueiros dos anos 1960, dos anos 1970 e 1980. 

Lá, muitas daquelas bandas se separariam e se reuniriam em projetos tanto efêmeros quanto paralelos. E, ao contrário do Brasil, onde a fusão entre a música folclórica e o rock parecia algo inexistente (com exceção de alguns exemplos, como no rock rural de Zé Rodrix ou o manguebeat da nação Zumbi), o rock argentino, ao longo dos anos 1970 e estimulado por luminares da Guarda Vieja, começou a experimentar a mistura entre o folk platino e o rock, emprestando a ele uma incrível originalidade e densidade musical - algo que eu julgo difícil de ver algo similar no rock de qualquer outro país

Enfim, parece que o rock lá amadureceu muito e de forma rápida e massiva lá ao contrário do Brasil, que era fatalmente tributário da Jovem Guarda e bandas alternativas aqui naquele períoso não chegaram a criar um movimento massivo independente aqui, como lá. Por exemplo, conjuntos de blues como Manal, que lembra vagamente o Capitain Beefheart no começo da carreira, seria algo impensável no Brasil do final dos anos 1960.  

Por conta da tevê e dos produtores de gravadoras como a CBS, o Brasil estilizou o rock para se tornar algo radiofônico e televisivo. Talvez por isso que ele levou tempo para tornar-se original. Los Gatos, que é responsável pelo big-bang do novo rock platino, poderia ser comparado nesse sentido aos Mutantes no sentido de fazer uma produção musical mais ligada com o rock de fora do que o enlatado da JG. Tem pouca penetração no mercado brasileiro,  embora tenha grande aceitação nos demais países da latinoamérica.

Los Gatos, com “La Balsa”, foi responsável por essa nova vertente:  era um som menos alegre e mais reflexivo e cerebral. Já os anos 1980 lá já têm outra perspectiva, mais “moderna” e pop, aí acho que mais ou menos como aconteceu no Brasil. Mesmo assim, o rock argentino não penetrava aqui. Um   exemplo é o Los Pericos com “El rictual de la Banana” que estourou em toda a américa e não obteve o mesmo êxito aqui. A despeito de ser ska ela tem a cara daquele pop descompromissado daqueles tempos. Los Pericos (guardadas as devidas...etc) poderia ser comparado com os Paralamas. Aliás, seriam os Paralamas os responsáveis por estabelecer uma ponte entre a cultura rock do cone sul e o rock brasileiro. Se pensarmos a partir deles, o trio é um grande ponto de partida para descobrir o rock latino-americano. Porém, nos anos 1980, tudo aqui era novo e havia muita coisa para se assimilar. Ao mesmo tempo, como foi dito anteriormente, nós aqui éramos pautados pelo que passava no rádio e na tevê, e essa agenda, naturalmente paga, não tinha espaço para o que vinha de lá. 

Além do mais,  o rock aqui já como gênero pleno de segmento jovem parece abarcar uma faixa bastante homogênea. Lá a gurizada é rock, digamos que, 100%;. no Brasil a coisa era bastante homogênea nos anos 80 e se diluiu se fragmentou. O rock não morreu na Argentina como gênero e isso é um fenômeno cultural deles. E o rock brasileiro sem exceções parece que embarangou de vez. E lá, não é preciso dizer aqui, os caras são fanáticos porque tem a mesma passionalidade dos torcedores de futebol de lá. É outra coisa.

Aliás, é admirável que lá pareça existir essa relação mais colaborativa entre bandas e músicos da relação do Charly Garcia com Fito Paez e deles com o Luís Spinetta o que mostra que a nova e a velha geração mantém entre si uma relação cordial e contínua ao longo do tempo. 

O rock argentino com o tempo foi encontrando suas raízes. Como se não bastasse ser acossado pela repressão, a partir da segunda metade dos anos 1970, quando muita gente teve que sair do país, na outra frente as críticas vinham da parte de folcloristas como Ariel Ramirez ou membros da guarda velha do tango como Osvaldo Pugliesi.

Acusado de ser alienante e americanizado foi objeto de uma curiosa polêmica quando, em 1977, o jornal Opinion reuniu Ramirez Pugliese e outros para entrevistar Charly Garcia, bem na época em que ele fazia sucesso com um projeto de rock progressivo e sinfônico: o La Máquina de Hacer Pájaros. Com o passar dos anos contudo, a nova música foi assimilada e as críticas diminuíram à medida que o próprio caráter das bandas de rock do país passaram e voltar-se para elementos da cultura platense em geral. Pugliese, então um dos grandes críticos do rock naquele período, mais tarde rendeu-se ao trabalho de músicos como Fito Paez, por exemplo.

Falando em Charly, é incrível como ele é um elemento medular na história do rock argentino, na minha opinião, sem similar no Brasil. Ele vem desde os tempos do Sui Generis, a primeira grande banda do Charly, e que tinha um estilo que lembrava o Crosby Stills e Nash, além de uma pitada de Wings do começo da carreira. Era um duo como o nosso Sá e Guarabyra que, já na sua fase final, viraria um quarteto elétrico em Pequeñas anécdotas sobre las Instituciones. Aqui, as letras deixam a nota mais hippie e passam a refletir cada vez mais o conturbadíssimo ambiente político argentino do começo dos anos 1970 que iria desaguar no golpe de 76.

Depois da ‘Maquina’ Garcia formaria a Seru Giran com Pedro Aznar, com Charly, depois de idas e vindas pelo mundo,  já de volta à cena portenha do rock. Depois de revolucionar o gênero, no final dos 70,  a banda se dissolve   curiosamente em 1982, ano do fim do regime militar, e que seria lembrada como o marco do começo da era de ouro do rock argentino, de 1983 até 1996. Curiosamente, o período de maior proeminência rock na Argentina foi um dos períodos de maior recessão econômica do país no século passado.

Nesse momento, Charly troca qualquer tipo de projeto solo em favor de uma carreira solo. No começo ainda colabora com os Abuelos de Nada, banda ainda dos tempos dos Los Gatos, lá em  1968, mas que depois de se dissolver, acabou retomando as atividades naquele ano aproveitando o surgimento do novo movimento do rock e seguiu até 88 com a morte de Miguel Abuelo. E, já nos anos 1990, vê-se a ascensão da cena alternativa e do heavy metal, o que demonstra que o sarrafo do rock de lá sempre esteve lá no alto, e assim continua até hoje.  



Sunday, December 15, 2019

Duas Folhas

Capa da Folha da Tarde nos anos 60


Arca de Blau (*) é o nome do livro de memórias do jornalista Carlos Reverbel (1912-1997). Escritas em parceria com a Cláudia Laitano, o livro, que era para ser de recordações de sua vida, na verdade, apresenta um amplo panorama da história cultural e da imprensa no Rio Grande do Sul no século XX. Isso sem falar da prosa deliciosa do autor de “Barco de Papel”, quase em tom de conversa. Sobre o tema imprensa, importante ressaltar que Carlos praticamente viveu dentro das redações da antiga Caldas Júnior. E dentre tantos episódios que ele conta a respeito de sua longa passagem pela Companhia (por 46 anos, de 1934 até 1980), acho interessante seus comentários a respeito de dois momentos na história da empresa: o surgimento dos dois tablóides, a Folha da Tarde, de 1936, e a Folha da Manhã, de 1969.

A Folha da Tarde eu peguei ela no fim. Meu pai assinava o jornal, e a primeira coisa que eu lia eram as charges do Sampaulo e Santiago. Eu tinha uma simpatia inexplicável pelo jornal e lamentei muito quando ele acabou. E lembro de ter chegado em Porto Alegre em 1984, isto é, bem na época da quebradeira da Caldas Júnior. Nessa época, com o que sobrara de papel, a gráfica imprimiu fac-símiles das primeiras edições do Correio do Povo e da Folha. Eu cheguei a pegar vários exemplares e botei tudo fora com o tempo, e não me conformo por ter feito tamanha bobagem.

De acordo com Reverbel, a idéia da Folha da Tarde era ter um vespertino que cobrisse as lacunas deixadas pelo Correio ao longo do dia. Lembre-se que, naquele tempo, o rádio ainda não tinha a proeminência que iria ter de fato nas décadas seguintes em matéria de difusão de notícias. Porém, ao conceber um vespertino, Breno Caldas queria um jornal popular, com “agilidade e a flexibilidade para mudanças que o velho jornal [o Correio] fazia questão de não adotar”.

No entanto, temeroso de que a imagem popular da Folha “abalasse” a sobriedade hierática do Correião, Breno Caldas inicialmente optou por desvincular o novo tablóide da Caldas Júnior. Por conta disso, ele dispôs a redação da Folha em outro prédio, contíguo ao do Correio. O corpo de repórteres também era diverso – mais jovem, embora alguns deles trabalhassem nos dois jornais, como Rivadávia de Souza. Pelo fato de possuir tropas frescas, a nova Folha buscava ousar, coisa impossível nas hostes do “róseo”.

A começar pelo formato tablóide. Consagrado na imprensa gaúcha hoje, em 1936 era uma novidade. Muitos achavam que não iria vingar. Mas a experiência estava estribada no sucesso desse modelo na Argentina, mais precisamente em Buenos Aires. O platense El Mundo lhe serviu de inspiração – como praticamente tudo que vinha de lá, desde a música até o cinema, o desporto e a música inspiravam os pares daqui, do outro lado da banda oriental.

Carlos Reverbel,que participou da equipe nos primeiros anos, diz que a Folha conquistaria um lugar especial na história do jornalismo gaúcho: ela foi, segundo ele, o primeiro vespertino que deu certo na imprensa local: até então, a crença era de que um tablóide não pegaria. Para ele, o novo formato foi um dos fatores que provocaram a adesão irrestrita à FT: diferente dos standards grandalhões, a Folha era uma publicação breve e leve, fácil de levar no bolso ou de ler nos bondes, por exemplo.

Além disso, havia novidades no âmbito editorial, como a cobertura de esportes em geral, incluindo o futebol amador, a cargo de Túlio de Rose e Amaro Júnior, que fariam fama nas décadas seguintes na Caldas Júnior.  Em pouco tempo, o novo jornal alcança a popularidade que buscava, como diz Reverbel, e naturalmente Breno passou a associar a Folha à companhia Caldas Júnior que, em poucos anos, e principalmente, graças à demanda por notícias durante a 2ª Guerra Mundial, consolidaria seu espaço na década de 1940. Como jornal popular, ele se baseava originalmente em pautas como problemas de transporte, falta d’água, preço da cesta básica. Numa comparação meio esdrúxula, pode-se dizer que enquanto o Correio se preocupava com a cotação do trigo, a Folha a Tarde se interessava no preço do pão nosso de cada dia.

O começo, contudo, foi difícil.A primeira edição, dia 27 de abril de 1936, foi quase um fracasso. Apesar da tentativa de por a FT nas bancas às 17 horas, ela só chegaria nas mãos dos leitores seis horas depois, quase no dia seguinte. Mas, aos poucos, o vespertino foi se firmando, tornando-se a publicação do gênero com maior circulação no Rio Grande do Sul, chegando a atingir, no seu auge, a marca de 80 mil exemplares em venda avulsa. Um jornaleiro, por exemplo, chegava carregado para pregoar no abrigo de bondes da Praça XV de Novembro , por exemplo e, minutos depois, tinha que voltar à gráfica para pegar mais exemplares. Em certos dias, a FT vendia cerca de 2 mil exemplares só na região das praças Parobé/ XV.   

Diferente trajetória teria a Folha da Manhã.  Ela nasceu de uma costela da FT, a Folha Esportiva, que saía sempre às segundas, com os resultados das partidas de futebol do fim-de-semana, ela se tornaria um diário em 1969, no auge da ditadura.Reverbel anota em suas memórias que ela foi uma espécie de “estágio probatório do herdeiro natural da Caldas Júnior, Francisco Antônio”. Como editor, o único filho homem de Breno criou um jornal moderno numa época em que o Correião era um tal de abre aspas e lá vai discurso chapa branca na íntegra, como dizia o jornalista Antônio Carlos Rezende.

A FM inovava por trazer profissionais de fora do estado, como José Antônio Severo e Gilberto Pauletti, que vinham de experiências “novas” em jornalismo, como a Veja e a Realidade. Criou polêmica por dar destaque à reportagens investigativas numa época em que tanto CP quanto a Folha da Tarde se aburguesavam e tornavam-se comensais dos governos militares. Nesse sentido, a Folha da Manhã se transformaria num feudo prafrentex dentro da Caldas Júnior.

Foi nos tempos da FM que surgiram reportagens que marcariam época, como a de Sérgio Caparelli sobre as más condições do Hospital São Pedro e a polêmica em torno da Borregaard, hoje Riocell. Como resultado da ousadia, e de seus editoriais, a redação amiúde recebia visitas da Censura. O editor, José Antônio Vieira da Cunha, não aceitava recados de censores via telefone.

Como fora no começo da FT, a redação da Folha da Manhã era formada por cerca de oitenta jornalistas, todos jovens e recém egressos de faculdades de comunicação. Eis o que os diferenciava da velha geração da Caldas Júnior. Por conta disso, o clima emgeral era de descontração, e que resultava em brincadeiras, como foi o caso da famosa barriga do jogo do Fortes e Livres de Muçum contra a Seleção da Concacaf (quando até jornais do centro do país, como o JB e O Globo, caíram) e a “morte” de Jorge Mautner, barriga esta transferida para a rádio Continental (e assunto de uma postagem daqui ano passado).

A Folha da Manhã também se destacaria por ser um laboratório para o surgimento de uma das mais notáveis gerações de chargistas do Rio Grande do Sul, e isso numa época em que era impossível publicar uma charge do presidente da república. Mas como publicações alternativas, como o Pasquim, já haviam pavimentado o caminho, surgiram aqui nomes como Celso Schroeder, Edgar Vasques, Rekern e Ronaldo. O sucesso foi de tal arte que até a Zero Hora teve que abrir espaço para a charge. Porém, a peça de resistência da FM estava na sua origem: era o caderno de esportes, que era o filé da Folha da Manhã.

Contudo, como não podia deixar de ser, toda essa patusca joie de vivre não tardaria a incomodar muita gente – em especial, por incrível que pareça, os assinantes tradicionais do Correião, acostumados com a sobriedade do secular standard. A despeito de um episódio envolvendo o governo Amaral de Souza ter sido o estopim da demissão em massa de 1978, a FT estava sendo cozida em pouca água há pelo menos quatro anos. Para Carlos Reverbel, não foi exatamente o governo militar que rejeitou o jornal, mas os leitores das outras publicações da Caldas Júnior, que ameaçavam cancelar suas assinaturas se a empresa continuasse publicando um jornal como aquele.

Reverbel revela criou-se então um conflito entre os leitores, que se sentiam traídos pela liberalidade da FT – a mesma distância que, curiosamente Breno queria manter da Folha da Tarde em seu começo. Neste caso, todavia, o choque foi inevitável. Além do mais, vivia-se numa outra época, embora o episódio pareça escancarar o extremo conservadorismo da sociedade gaúcha, mesmo conservadorismo que rejeitou alternativos como o Pato Macho, em 1971. Carlos conta que Breno Caldas a princípio quis distância desse conflito, até que decretou intervenção no jornal. A cimeira da FT foi demitida, entre eles, estava Ruy Carlos Ostermann, Osmar Trindade, Carlos Urbim e Victor Sperb, entre outros. Em apoio a eles, outros quatorze jornalistas entregaram os cargos, como Telmo Zanini, Caco Barcelos e Luís Fernando Verissimo. Muitos deles se juntariam em outro projeto, o Coojornal.

No lugar de Ruy, Breno colocou Walter Galvani como o plenipotenciário da FT até 1980, quando ele entrou na redação e anunciou o fim das atividades da Folha da Manhã. Reverbel diz que sabia que o fim do diário era puramente ideológico. Porém, o episódio, para ele, era um primeiro sinal de desarticulação da companhia, até então tida como um empreendimento sólido e inexpugnável, e justamente envolvendo a figura de Francisco Caldas, aquele que seria o herdeiro da Caldas Júnior. A partir de então, todas as decisões a respeito da CJ ficariam centralizadas nas mãos de Breno. Depois de esgotar toas as tentativas de salvar a companhia, Correio e Folha da Tarde ainda teriam uma sobrevida de quatro anos: no dia 16 de junho de 1984,  num sábado, a Caldas Júnior encerrava suas atividades.



(*) Carlos Reverbel e Cláudia Laitano, Arca de Blau, Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1993.

Saturday, December 14, 2019

Curt Lange e os Inconfidentes do Ritmo


Manuscrito do Magnificat de Lobo de Mesquita

Até meados do século passado, acreditava-se que a música clássica no Brasil teria começado com o Padre José Maurício Nunes Garcia, a partir do começo do século XIX.

Até que um musicólogo alemão naturalizado uruguaio, Francisco Curt Lange, comissionado pelo governo daquele país como pesquisador, estendeu seu trabalho em terras brasileiras. Ao conhecer as cidades mineiras históricas, levantou a hipótese que, assim como ocorrera no campo da arquitetura, aquelas cidades poderiam ter abrigado manifestações musicais do mesmo nível e excelência.

Lange foi desestimulado por estudiosos brasileiros: todos em coro afirmavam que não havia nada anterior ao Padre Maurício. Sem se abalar, Lange arrumou um jipe e foi à campo. Bateu de porta em porta pelo interior de Minas Gerais afora em busca de uma pista.

Um dia, eis que um morador lhe mostrou um manuscrito. Era uma partitura. O frontispício dizia: Antífona de Nossa Senhora, para coral e baixo contínuo. O documento datava de 1787 – dois anos antes da Inconfidência Mineira. A antífona – uma peça curta executada antes ou depois da leitura de um salmo – era de autoria de Lobo de Mesquita, compositor sacro nascido em Serro, em 1746.

Lange quis comprar tudo o que o homem tivesse do mesmo tipo. Ele não tinha noção do valor daqueles papéis: em geral, aquilo era usado como matéria prima para fogos de artifício.

Ao fichar todo o material que ele pôde recolher daquela frutífera viagem, Lange percebeu que havia uma espécie de cena musical sacra no século XVIII em Minas sem precedentes. Mais do que isso, os manuscritos eram a prova viva de que a história da música clássica no Brasil, ao contrário do que se pensava, era muito anterior à Maurício Nunes Garcia.

Segundo Júlio Medaglia (*), muitos pesquisadores que defendiam a tese de que José Maurício era o primeiro compositor passaram a execrar Curt Lange, acusando-o de falsear aquelas manuscritos. Sem se abalar, ele publicou as partituras no Uruguai e levou Lobo de Mesquita ao teatro Colón, em Buenos Aires.

Foi quando começou o segundo round: certos agora de que os manuscritos não eram apócrifos, Lange foi acusado de surrupiar documentos históricos brasileiros. No meio da polêmica, uma caravana da revista O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand, foi entrevistá-lo a respeito da descoberta. O que Curt não sabia é que a matéria, quando publicada, longe de ser um encômio ao insigne pesquisador teuto-uruguaio, era uma denúncia de que Lange havia se apropriado das partituras de forma indevida.

Antecipando-se a qualquer movimento por parte de algum órgão policial ou diplomático, o musicólogo viajou até São Paulo e confiou os arquivos à Medaglia, que manteve o material escondido e à salvo.

Enquanto Curt Lange retornava ao Uruguai, Júlio recorreu a Sérgio Buarque de Holanda e Lourival Gomes Machado, especialista em barroco no Brasil. O objetivo era promover um ciclo de palestras na USP a respeito da música barroca em Minas Gerais no século XVIII. O simpósio ocorreria em junho de 1965, com Lange pontificando sobre o tema para uma platéia gigantesca. “A partir daquele momento”, diz Medaglia, “aquelas partituras originais puderam exibir suas belíssimas sonoridades pelo mundo afora, sem mais correr o risco de ir parar nos fundos de uma delegacia de polícia de um subúrbio do Rio de Janeiro”.

Dezessete anos depois, o corpus desse material, sob a curadoria de Régis Duprat, foi integrado ao Museu da Inconfidência, em Ouro Preto. Ao todo, Curt Lange, além de Lobo de Mesquita, segundo ele, o maior compositor sacro do século XVIII, catalogou cerca de cinqüenta autores, todos mulatos integrados a ordens religiosas, como Ignácio Neves, Castro Lobo, Marcos Coelho Neto e José Maria Xavier (parente de Tiradentes), entre outros.

Lange porém faz uma ressalva, corroborada por Medaglia: a despeito de serem associados, do ponto de vista estético, ao barroco, a produção musical mineira tem uma linguagem diversa do que poderíamos entender como barroco. Ao contrário, a linguagem musical desses compositores está mais próxima do que poderíamos chamar de pré-classicismo, no estilo de Pergolesi, ou Johann Christian Bach, que influenciaria a música de Mozart, por exemplo.

Além disso, em sua pesquisa, Curt Lange não apenas demonstrou que existia uma cena musical em Minas no século XVIII quanto descobriu que o material que ele amealhou é, na verdade, aponta do iceberg de uma produção muito maior. Segundo ele, só em Diamantina, integrados a ordens religiosas, havia mais de 2 mil músicos em atividade. E, nesse meio tempo, pelo descaso pela memória desses artistas e o desconhecimento por parte dos agentes locais, muito se perdeu. Para se ter uma ideia, da vasta produção de Ignácio Neves, restou apenas um Credo.

Resta o consolo que, mesmo que a maior parte dessas obras tenha sido perdida, o que chegou até nós está plenamente preservado,  arquivado e documentado (e gravado).  Como diz Júlio Medaglia, graças a Curt Lange, essas peças musicais hoje fazem parte do patrimônio musical brasileiro, e seu nome ocupa um merecido lugar de destaque em nossa história.  



(*) Júlio Medaglia, Música, maestro: do canto gregoriano ao sintetizador. São Paulo: Globo, 2008.

Medo e delírio em Ipanema

Capa da edição brasileira


Um jovem jornalista hamburguense obcecado por uma canção vai para o Rio de Janeiro em busca do seu ídolo: essa é a história de Ho-ba-la-lá: à procura de João Gilberto.

Confesso que desconhecia o livro, lançado em 2011. O fato do autor, Marc Fischer, ter morrido pouco antes da sua publicação aumentou mais o mistério de sua leitura, ainda mais pelo fato de que João também partiu, em julho deste ano.

O enredo tem uma estrutura tão original quanto batido: a citação de Gay Talese, nos agradecimentos, já mostra a influência do papa do Novo Jornalismo. Ao ler o livro, é impossível não lembrar da antológica reportagem da Esquire, “Frank Sinatra está gripado”, de 1966. Também vê-se ecos do jornalismo gonzo do Hunter Thompson de “Medo e delírio em Las Vegas”, até pela parceria meio maluca do protagonista, um repórter metido a Sherlock com um parceiro, uma amudante à guisa de Watson, e que faz toda a assessoria a Fischer, com sua quase intransponível barreira do alemão.

O diálogo com Talese está cifrado no fato de que, da mesma forma que na matéria sobre Sinatra, o repórter está imbuído de uma singular missão: tentar travar contato com um artista avesso à imprensa e à jornalistas. Aliás, avesso a todos. Seu círculo de contatos pode ser contado nos dedos. Nem pessoas que mantém contato  amiúde com João Gilberto – o porteiro do edifício da Carlos Góis, no Leblon, e o cozinheiro responsável pelo repasto diário do compositor-cantor –  conseguem falar com ele.

Como acontece com Talese, ao perceber que o contato com a fonte principal é improvável, ele procura por pessoas que mantiveram contato com o criador da Bossa Nova nos últimos sessenta anos: Roberto Menescal, Marcos Valle, João Donato, Miúcha, Joyce, Claudia Faissol, Lulu, Ruy Castro, Nelson Motta, Jorge Cravo, Miele, Anselmo, Otávio Terceiro, Garrincha, Toshimitsu Aono (quem lhe introduz a música de Jreconstrói a trajetória de João em flashbacks.
oão), Ricardo Cravo Albin, entre outros. A partir daí, ao longo da história, Fischer

Depois de esquadrinhar o Rio de Janeiro, Marc Fischer resolve ir à Diamantina, onde o autor de “Bim-bom” viveu por um período sabático, na casa da família de sua irmã, e que, na concepção do repórter, aquele foi o momento em que João Gilberto teve uma epifania final: aprendeu a lidar com sua angústia e a usar a música a seu favor, para o seu grande retorno ao Rio, para finalmente vencer como artista.

A sensação curiosa em ler Ho-ba-la-lá: à procura de João Gilberto é a de como se Fischer, depois de ler o clássico “Chega de Saudade – A história e as histórias da Bossa Nova”, de Ruy Castro, ele resolvesse, vinte anos depois, retomar os passos do autor, e tanto repassar aqueles episódios capitais na história de João quanto reatualizar a trajetória do violonista. Porém, se em alguns pontos ele parece retomar bem essa trajetória, em outros, a despeito de ter conhecimento do conteúdo do livro de Ruy, ele acaba incorrendo em pequenos deslizes.

Por exemplo, trocar o nome de Haroldo Barbosa ao citar “Prá que discutir com madame”, aparentar desconhecer fatos notórios ao perguntar à sua assistente, por exemplo, em é Miéle (claro que é possível entender que ele deve fazer isso como licença poética para explicar ao leitor de seu livro informações que este pode desconhecer) ou, pior, repetir o mesmo mito (já desbaratado e esclarecido por Ruy Castro) de que Tom e Vinícius tivessem se conhecido no Vilarino por intermédio de Lúcio Rangel e que Jobim, na ocasião, tivesse perguntado por “um dinheirinho”.

Talese está nas páginas do livro justamente por conta desse expediente de, ao não ter acesso à João, ele constrói o perfil de seu ídolo. E Thompson também assombra Ho-ba-la-lá: à procura de João Gilberto porque, em sua busca, Marc Fischer interpreta ele mesmo, em meio a digressões e bebedeiras, entrevistas inusitadas e experiências em pontos históricos da história da Bossa Nova. Em sua demanda, Fischer parece que vai ao Brasil empreender a missão de sua vida: travar contato com João ou, ao menos, ouvi-lo cantar.

Ao mesmo tempo, ele ouve tantas histórias que fica em dúvida daquilo que pode ser verdade e o que pode ser lenda em torno de João. Por exemplo, descobre que ele é uma pessoa envolvente, e que é capaz de sugar a virtude das pessoas que vivem ao seu redor, como se fosse um...vampiro. Essa imagem vampiresca e esse círculo impenetrável em parte provocado por João, que por décadas viveu recluso, lhe passam uma imagem sombria de João e que transcende qualquer perfil que tenha sido escrita a respeito dele até então. Ou que, ao contrário que Ruy Castro afirma em seu livro, o violonista continuava um usuário de maconha.

Depois de muitas peripécias, e contato com duas ex-mulheres de Gilberto, Cláudia Faissol e Miúcha, Fischer começa a entender que a barreira que o separa de João é intransponível. Cláudia lhe mostra fotos recentes de João: é o máximo que ele pode chegar dele. Num lance desesperado, já no fim da sua viagem ao Brasil, ele manda um regalo ao seu ídolo numa frasqueira e deixa seu número de telefone num papel. É quando, numa madrugada, ele recebe uma ligação; alguém canta “Ho-ba-la-lá”. Fischer não sabe se é trote ou era o próprio João na linha.  Então o livro acaba, abruptamente.

Fischer retorna à Alemanha naquele mesmo fim de 2010. Logo depois concluir a redação do livro, ele comete suicídio. Sua morte aumenta ainda mais o mistério em torno do livro. Ano passado, o cineasta Georges Gachot lançou um filme baseado no livro póstumo de Fischer, “Onde está você, João Gilberto?”.

Friday, December 13, 2019

Joyride

Roxette


Tava lendo as notícias sobre Marie Fredriksson, a vocalista do duo Roxette, que partiu dessa semana, no dia 9. Assisti a um vídeo onde ela fala de sua doença — e que a levou a morte trágica. Ela me pareceu tão distante daquele sonho que foram aqueles anos de sucesso. Também descobri a sua carreira solo, tão parecida e, ao mesmo tempo, tão diferente da banda que conquistou o mundo cantando em inglês, atingindo dezenove singles no TOP 40 britânico.  Acredito que, assim como eu, todos da minha geração devem ter tanto ficado consternados com sua partida quanto devem ter voltado no tempo ao reouvir as músicas do Roxette. Principalmente o pessoal que se lembra daquela época do comecinho dos anos 1990. Para quem passou por ali, parece que foi ontem. Mas para quem nasceu muito tempo depois, pode parecer muito mais tempo. É como eu, com quatorze anos pensando no tempo da juventude dos meus pais, quando eles ouviam Carmelo Pagano, Bobby Solo, Jovem Guarda. Mas para mim, os anos 90 parecem recentes. E, ao mesmo tempo, é difícil acreditar que tanto tempo passou.

Quem nasceu lá por 1998, por exemplo, hoje já tem mais de vinte anos. É mais ou menos a época em que o Roxette surgiu, no final dos anos 80. Quem tem vinte hoje não deve ter a mínima ideia do que era viver num mundo sem internet. A gente tinha então poucas fontes em matéria de música: revistas do gênero, como a Bizz, que apareceu na época do BRock e depois mudou à medida em que as cenas musicais foram mudando, ao longo da década seguinte.

Havia as lojas de disco, onde nós namorávamos os discos que não tínhamos dinheiro para comprar (havia as cabines para a gente degustar os álbuns na loja. Eu era aquele que ouvia dezenas de discos mas não levava nenhum). E havia o rádio. Aliás, diferente de hoje, quando existem tantas fontes de onde é possível fruir música, de tal forma que é possível viver sem sequer ouvir rádio, há três décadas, era um expediente incontornável.

O rádio hoje parece que sofreu uma espécie de congelamento. Existem muitas emissoras em FM que vivem essencialmente de flashback, o que é bastante sintomático. O que é sucesso hoje transite por outros canais, como o streaming. O FM musical jovem de sucesso hoje está segmentado e restante em poucas estações. O resto vive de flashbacks, em vitrolões com locução gravada. Ou seja, quase não há vida. Mas, claro, existem exceções. E às vezes a gente cansa de ouvir música por conta e parece que precisa ouvir um locutor.

Atavismo de ouvinte? Pode ser. Afinal de contas, nós somos do tempo quando o rádio era incontornável.  Se eu for pegar o Roxette, e reouvir aquelas músicas hoje me faz lembrar exatamente naquela virada dos 1980 para os 1990, quando eu acho que foi o auge do FM: a época que nós mais ouvíamos essa faixa e a época que nós mais dependemos dela.

Quando eu falo que o FM era incontornável, é porque é como se estivéssemos numa ilha onde o canal de comunicação com o que estava acontecendo na música era apenas e simplesmente o rádio. É curioso que o rádio FM me acompanhou toda a minha adolescência mas, justamente naquele período crucial quando eu saí da faculdade, ao mesmo tempo que a música estava migrando para o Mp3, o rádio estava passando por uma troca de bastão de gerações. Quando eu voltei a ouvir, por exemplo, há alguns anos, o FM de segmento jovem não tem mais nada a ver comigo. Porém, justamente os programas de flashback mantém uma playlist baseada nos anos 1990. 

Ou seja, essa década hoje é a nova década do vitrolão. Não conheço nenhuma pesquisa quantitativa sobre isso, mas minha hipótese é a de que os anos 1990 sejam o núcleo da programação dessas emissoras. Lembro que, nos anos 80, nós éramos tão pautados pelo presente, pelo que era sucesso, pelas 10 mais, pelas 20 mais, que só o que importava era o presente. E nós ouvíamos por tabela desde o que gostávamos até o que não gostávamos. Sendo tributários do rádio musical como distração, nós absorvíamos tudo. Mesmo o artista/banda que eu mais detestasse, eu sabia todas as canções do rádio deles de cor e salteado.

O Roxette era uma das bandas que eu não curtia muito na época, entre outras. Na verdade, eu confesso que 80% do que tocava no FM não era a minha praia. Quando eu comecei a colecionar discos, eu gostava de Dire Straits, depois enjoei (hoje estou ouvindo de novo, lógico). Depois que eu vi o filme Deixa Comigo, comprei a trilha sonora e comecei a curtir doo wop e rock dos anos 1950. Era algo quase subversivo gostar de música antiga em plenos anos 1980. Era como...não fazia sentido. Como o mundo estava cifrado no presente, não havia espaço para lembrar o passado naqueles tempos. Hoje, você passa numa papelaria e vê um caderno da Tilibra temático com os Beatles na capa. Isso, nos anos 1980, era impossível de se conceber.

Lá por 1990, eu fui numa cinemateca assistir ao Magical Mystery Tour. Éramos uns vinte ou trinta gatos pingados. Parecia uma conferência secreta. Não havia nada mais passado que assistir a um filme dos Beatles. Hoje, depois da Internet, aconteceu um refluxo, como se fosse um estouro da manada: todo o passado represado e esquecido nos escaninhos do tempo voltou. Isso explica esse retorno à artistas dos anos 1950, 60. Hpje eu vejo garotos e garotas com camisetas dos Beatles.

Eu, há duas ou três décadas atrás já parecia um aborto da natureza ouvindo essas coisas. Hoje eu vejo essa gurizada, que podiam ser meus filhos, ouvindo canções do tempo que eu ouvia e, quando ouvia, já era fora do tempo. E aqueles artistas, quando lançaram essas canções, nunca imaginaram que elas fosse durar um, dois ou três anos. O tempo passou e lá estamos nós de novo de volta ao passado, imaginário ou não.

Imaginário ou não porque, ao mesmo tempo que eu penso num passado que eu não vivi, como o tempo dos Beatles, eu lembro do passado que eu vivi, que é o dos anos 1980/90. Esse passado é o que eu reencontro reouvindo Roxette.  Lembro de 1990. Eu estudava nas Dores, em Porto Alegre. Quase toda minha família tinha estudado lá e parecia que era tradição estudar nas Dores. A verdade é que eu rodei a sexta série, depois a oitava, ambas em matemática. Então eu mandei a tradição às favas e fiz supletivo para liquidar de vez o maldito e interminável 1º grau, embora tenha decidido fazer o 2º grau normalmente, mas num colégio chamado Mauá. 

Ele ficava na descida da Dr. Flores, quase na praça Otávio Rocha, ao lado da Hudersfield. Do outro lado, tinha uma lanchonete daquelas que o chapista passava o paninho na chapa e depois na testa. E defronte tinha uma Audiolar, a locadora. Hoje não existe mais nada daquilo naquela esquina. 

O divertido do Mauá é que era a minha cara: um colégio de repetentes, rebeldes e bagunceiros. Eu obviamente continuei tirando zeros a rodo.  A diferença é que no Mauá era possível arrastar cadeiras, como na faculdade. Ou seja, era custom made para repetentes. Eu sempre arrastava uma cadeira de um semestre para outro, quase sempre matemática. Até quando, nos estertores do curso, quando eu já estava no cursinho e me preparando para os vestibulares, fui passado.

Ou o professor nos dava as questões (“ó, pessoal, dessas 30, 10 vão cair, resolvam todas e boa sorte”) ou então chegavam a conclusão que, como eu não ia fazer engenharia (o professor dizia que se eu fosse construir uma ponte ela iria irremediavelmente cair), eu podia passar. Mas na verdade, tenho saudade daquele tempo: se eu pudesse voltar no tempo, eu queria voltar naqueles tempos do Mauá. Era uma época daquelas quando a gente era feliz e não sabia. Eu morava na Duque, ficava o dia todo ouvindo música, ia para a aula. Enfim, não fazia nada. Meu trabalho era atravessar o centro, Andradas acima, para chegar na escola.

E a trilha sonora era o que tocava no rádio. E foi bem essa época do Roxette. Isso tocava em todas as emissoras. Naquela época, era o auge da Cidade, ainda pertencente ao grupo JB, a Universal, a Atlântida também no auge, com aqueles programas tipo Transatlântida, e que tocava bastante música. A Ipanema lá nos 94.9, embora bastante refratária ao que tocava nas demais de segmento jovem, e a Felusp começando, ainda com cara de rádio luterana e com um ar de college radio. E todas tocavam a trilha sonora da nossa geração. Rádios que eram de flashback era poucas. Tirando a Guaíba FM, que sempre foi aquela coisa de vitrolão de consultório, livraria Papirus (lembram?), e a Capital FM, que tocava coisas do arco, como Nico Fidenco,  músicas que hoje não tocam em estação nenhuma.

Essa época do Roxette, de 1989 até 1992, acho que foi o auge do FM, e foi a época mais divertida de curtir música no rádio. Depois eu não sei se rapidamente aquela cena saiu de moda, mas tudo mudou. A MTV Brasil começava a deslanchar e quando eu ouço (como agora neste momento) How do You Do (do Roxette) eu lembro do clipe. Acho que foi o canto do cisne deles. A MTV deve ter ajudado a acabar com aquela época. O Nirvana também, no sentido de abrir a porteira para bandas alternativas, e reconduzir ao primeiro plano as bandas de guitarras, algo que, naquela virada dos 80/90 estava meio que restrita as bandas remanescentes de hairy rock, não entanto, estas bastante segmentadas em termos de público.

O Nirvana (assunto de um post anterior) meio que botou a alternatividade no primeiro plano. O efeito colateral dessas mudanças foi um certo ressurgimento de bandas de rock no Brasil, ao mesmo tempo que houve outro ressurgimento, o do reggae, gênero tão pouco reconhecido nos anos 1980 (o Luiz Antônio Mello fala, no seu livro sobre a Fluminense que seus ouvintes detestavam reggae), acabou reaparecendo a partir de 1993, 1994. Ou seja, de repente, aquela cena onde bandas, duos como o Roxette pontificavam, acabaram saindo de cena. Mas o tempo passa e, enquanto pensávamos num fluxo evolutivo da música, décadas depois, descobrimos que cada vez parecemos voltar para o passado. 

E, de repente, tudo o que nós ouvíamos naquele tempo de adolescente, parece que é necessário esse movimento de retorno. Eu, por exemplo, não vejo nada no futuro. Naquela época, tudo parecia cheio de eternidade. Acho que reouvir aquelas canções do (nosso) passado, até as que não curtíamos e hoje, pálidos de espanto, descobrimos que não apenas gostamos, mas amamos. Existe um pouco da nossa história em cada canção daquelas. Lembro que as meninas da minha sala do Mauá todas amavam Roxette. E Guns. Eu até gostava de Roxette, mas Guns não dava. Desculpem. 

Bom, porém, sempre ficava com essa imagem de que Roxette era uma banda para meninas. Aí vem esse preconceito bobo. Mas eu sentia que eles eram especiais. Achava bacana que o Per Gessle aparecia nos clipes e naturalmente ao vivo usando guitarras clássicas, como aquela Rick branca em Joyride ou aquela Gretsh 6120 no clipe de How Do You Do!

Velhos tempos quando eu ficava zapeando o dial do FM. E quando caía num Spending My Time eu parava e ouvia. Não tinha como não ouvir. Hoje, então, sou coberto de uma profunda e triste/alegre nostalgia ao ouvir aquelas canções daquele tempo, e de revisitar toda uma história de uma curva de vida na frente deste computador, plugado num canal de streaming numa tarde de sexta.        .