Monday, April 30, 2018

Hung Up on a Dream




— Bom esse disco, hein?

Esse era Al Kooper, o líder do Blood, Sweat And Tears, depois de escutar um acetato do último disco dos Zombies, o Odessey And Oracle.

O que ele não sabia é que quem estava naquela base do sangue, suor e lágrimas mesmo era a turma do Colin Blunstone. Eles estouraram em 1964 num concurso promovido pela London Evening News, que lhes permitiu assinar contrato com a Decca naquele mesmo ano.

No entanto, a concorrência massiva com de bandas britânicas que, com efeito, faziam praticamente o mesmo som, a pressão comercial em bater uma concorrência desleal — num momento em que o grau de sobrevivência de um conjunto de rock residia na sua capacida de em elaborar single de sucesso e a necessidade de fazer sucesso na América faz com que os Zombies fossem paulatinamente subestimados.

Isso a despeito da banda ter sido capaz de lançar compactos de qualidade, como She’s Not There e Tell Her No, a tentativa da gravadora em vendê-los como os Beatles da vez — com Begin Here, na verdade uma coletânea de compactos, dentro da cultura fonográfica da época — acabou resultando em frustração. Os Zombies não foram bem nas paradas já num momento em que a Invasão Britânica parecia dar mostras de que estava sendo superada até por si mesmo.

Dois anos depois, quando a estética musical do rock havia mudado de cena — mais precisamente para a Costa Oeste americana, a British Invasion começava a ficar datada. A falta de perspectiva comercial somada ao retorno inexpressivo em matérias de venda de discos faz com que a Decca se desinteressasse por Rod Argent e companhia.

Em 1967, com seus dias contados, os Zombies assinaram contrato com a CBS. O objetivo era, pela primeira vez, criar um álbum que consistisse apenas de canções inéditas. Por sua vez, o desafio era colocá-los a toda prova como uma banda capaz de realizar um trabalho impecável. O problema? O quinteto iria, de maneira paradoxal, dar o melhor de si numa situação extrema, explorando todo o seu talento num um trabalho independente.

Para tanto, alugou os estúdios da EMI em Abbey Road (seriam os primeiros a realizarem sessões no local sem serem músicos da Parlophone até então) e se dedicaram a compor o que seria o seu “Canto do Cisne” — com a devoção triste de um quinteto de cordas tocando enquanto o transatlântico afunda...

O incrível foi que os Zombies chegaram em Abbey Road e conseguram — mesmo que batendo pé — que os engenheiros de som esperassem antes de recolher o vasto equipamento utilizado pelos Beatles nos estúdios. Vale lembrar que, além do Pepper’s, o local fervilhava com a gravação do Pipes, do Pink Floyd e o SF Sorrow, dos Pretty Things.

Em parte inspirados pelo momento sublime, em parte dispostos a darem o seu melhor, o quinteto colheu a mais bela rescolta de canções que poderiam colher. A despeito da situação falimentar dos Zombies, eles puderam dar um tempo para seus problemas e gravar um álbum como se estivessem no seu auge. Esse carrossel de paradoxos é que transformou o Odessey And Oracle num momento inefável na carreira da banda.

Do ponto de vista musical, o disco entra de cabeça no tipo de pop barroco que floresceu no rock britânico a partir de meados dos anos 60, explorando elementos eruditos, de jazz, vaudeville e de trabalhos corais — principalmente por intermédio de Argent, um pianista de influência erudita. Isso se torna evidante em passagens de harpiscórdio em Care Of Cell 44 (que também não deixa de pagar tributo à psicodelia dos Beatles em Penny Lane ao ao rococó pop de Brian Wilson do Pet Sounds) ou em órgão, como em Beechwood Park.

Contudo, ao contrário de muitas bandas da época, que tendiam a realizar experimentos com Leslie speakers, tape loops, gravações ao contrário, sobreprosições de faixas em overdubs gravados em timbres distintos, música concreta (coisa que os Beatles, os Stones ou o Pink Floyd fariam — quase como precursores do space rock) o trabalho dos Zombies é essencialmente calcado nos arranjos de extremo bom gosto Bem ao estilo Collin-Blunstone, as canções tem a concisão pop no entanto elaboradas com extremo bom gosto, em arranjos complexos e, ao mesmo tempo, acessíveis.

A primeira parte foi registrada em Abbey Road. Depois de uma interrupção, onde estenderam a produção no Olympic, os Zombies voltaram à EMI para terminar o disco. Naquele ponto, os Zombies já estavam desiludidos com a repercussão indiferente do público depois do lançamento do single Care of Cell 44/Friends Of Mine; com a sensação de que seria mais uma quimera, o Odessey foi concluído numa progressão fulminante.

Já no apagar das luzes, Argent apareceu com algo totalmente diferente do que vinha sendo gravado desde então: Time of the Season. Ao contrário das canções do álbum, Time... parecia mais experimental, mais agressiva, com um teclado que a transformava num liquidificador lisérgico. Porém, naquela altura do campeonato, nem a nova música os empolgou. Blunstone não queria fazer os vocais. Depois de muita insistência, ele topou.

Odessey And Oracle foi lançado em abril de 1968. Toda a beleza do disco, que ia dos arranjos originalíssimos às letras inspiradíssimas, que versavam desde a passagem inexorável do tempo (A Rose for Emily), ao verão, a amizade (Beechwood Park), ao onírico (a apaixonada fantasia de Hung Up On a Dream, uma belíssima canção que roda junto com os versos, numa repetição circular das suas estrofes), ao lirismo ingênuo do primeiro amor (I Want Her She wants Me, This Will Be Our Year), o bucolismo de Brief Candles e a dramaticidade cênico-fantasmagórica de Butche’s Tale — que desaguam na pororoca psicodélica de Time Of The Season, que cria um contraste e uma profundidade sonora perfeita às composições mais suaves do disco.

Em Odessey, os Zombies se tornaram o perfeito exemplo de que talento não é suficiente. Como eles, muitas outras bandas experimentaram o fracesso no ápice de suas qualidades musicais. Esse (outro) paradoxo, quase um estereótipo no mundo do rock — eles não foram os primeiros e não seriam os últimos a serem incomreendidos — faltava um empurrãozinho...

— Vocês não querem lançar o Odessey nos Estados Unidos? — perguntou Kooper.


A proposta era irrecusável. Havia apenas dois problemas quase incontornáveis. O primeiro é que eles teriam que custear o trabalho de mixagem em estéreo, já que o álbum havia sido lançado na Inglaterra apenas em mono. O segundo: as sessões do disco haviam exaurido todo o estímulo do quinteto em continuar. Argent já havia criado uma nova banda. Mesmo assim, eles resolveram levar a cabo sugestão de Al.
Torraram dinheiro que eles não tinham para fazer, também de forma independente, já que o contrato deles com a CBS britânica já havia acabado. Kooper levou os masters para a América.

Como se costuma dizer, se o final foi triste, é porque não era o final ainda. O verdadeiro final sempre deverá ser feliz. E esse foi o do Odessey And Oracle. Kooper leva todos os méritos: ele insistiu para que o todo poderoso da Columbia ianque, Clive Davis, o lançasse.

Mesmo que o disco saísse por uma obscura subsidiária da CBS, a Date Records. O primeiro single foi Butcher’s Tale (a gravadora apostou na temática pacifista na letra). Mas o faro de Al estava certo; Time of The Season era a pièce de resistance do vinil. Quando saiu em compacto nos Estados Unidos — um ano depois do lançamento britânico, ela foi catapultada ao topo das paradas.

Contudo, a verdadeira pátria de Odessey And Oracle seria a posteridade. O tempo cuidou de apontá-lo como um dos pináculos do pop rock dos anos 60: um trabalho à altura dos melhores momentos dos Beatles e dos Beach Boys. Passados mais de quarenta anos, a obra-prima dos Zombies soa cada vez melhor.



Tuesday, April 10, 2018

O Último Morador do Sobrado


Sobrado dos Verissimo, em Cruz Alta

Esses dias eu reli as duas últimas partes do Arquipélago, do Erico Verissimo. e fiquei imaginando: o que teria acontecido aos personagens do romance a partir dali?


Então pensei numa história - que acabei abortando, de inventar uma história de um repórter quem, movido por pura curiosidade, depois de encontrar uma nota dando conta de que o sobrado de santa Fé havia sido tombado finalmente, no final dos anos 90, com a morte de Sílvia Cambará, a última moradora do casarão.

enviado à Santa Fé, ele descreve a cidade como se encontra hoje. Não muito diferente das cidades do interior do Rio Grande. Na verdade, acho que o Erico quis dar à Santa Fé, assim como em Antares, fumos de pequena metrópole, algo que é difícil de conceber, ainda mais naquela região serrana do estado. Para tanto, basta ver a cidade que tem duplicidade com a dos personagens de O Tempo e o Vento: Cruz Alta. Apesar dos pesares, ainda é uma cidade pequena, cuja inanição permitiu que muito do casario permanecesse, principalmente naquela região próxima à antiga estação de trem, com suas ruas fatigadas e sobrados de telhados avoengos.

O repórter chega à Santa Fé. Descobre que o Clube Comercial, o Schintzler e a Casa Sol ainda existem, porém sob nova direção. O cinema é agora uma igreja evangélica. O busto de Lauro caré, da praça, foi levado com todo o bronze. Já a herma de d. Revocata ainda está lá, contudo sem o óculos, que foi arrancado, por pura diabrura de algum moleque.

Ao deparar-se diante do sobrado, ele percebe que o prédio está bem preservado, porém fechado há tempos, desde a morte de d. Sílvia. Como acontecera com as outras moradoras do casarão, D. Bibiana e D. Maria Valéria, Sílvia viveu muito tempo. Conversando com vizinhos, descobriu que o atual responsável pelo prédio é um filho dela, um certo Licurgo, que mora na antiga fazendo de seu Babalo. Marcam um encontro no dia seguinte, ali mesmo.

O repórter fica admirado ao entrar no casarão: tudo está preservado. Tombado, o prédio iria destinar-se a ser museu — explica o único filho de Sílvia. No entanto, não há verba estatal. Enquanto a situação fica em compasso de espera, o sobrado dorme seu sono secular de móveis cobertos por lençóis — inclusive o hierático retrato do dr. Rodrigo Cambará, que parece um fantasma de tempos passados.

Que fim levou os Terra Cambará, pergunta o repórter. "Papai morreu campereando, caiu do cavalo", revela Licurgo. segundo ele, isso foi quando ele ainda era criança. "Mal conheci papai", diz. Licurgo conta que Irmão Toríbio foi para Santa Maria, onde virou professor marista, viveu lá por muitos anos, onde morreu. Tio Bicho adoeceu e foi para Porto Alegre. Dali em diante, não se sabe o que aconteceu. dizem que foi parar no São Pedro.

E Floriano? "Foi para o Rio com D. Flora. Depois que ela morreu, ele assumiu a direção do Departamento de Assuntos Culturais da Organização dos Estados Americanos, em Washington, onde passou o resto da vida". O filho de Jango conta que, porém, ele esteve em santa Fé no final dos anos 50, especialmente para escrever a continuação daquele livro sobre a história da família. "Foi a última vez que mamãe e tio Floriano se encontraram", revela.

Depois da morte de Jango, Sílvia ficou sozinha. Acabou tornando-se a última senhora do sobrado. O neto do dr. Rodrigo explica que, com o tempo, era difícil para uma pessoa só dar conta do sobrado inteiro. "Depois da morte do vô Rodrigo, a família foi se desintegrando", revela. "Parece que o Sobrado, que foi um esteio da família, tinha a vocação de um útero vazio. D. Bibiana tanto sonhou com uma família que enchesse o sobrado, mas esse prédio parece ter a vocação do abandono", entende.

Ele conta que, na verdade, ele passou a viver e cuidar do Angico, até que se viram obrigados a vender as terras. "Lembra da quele menino que era bom em matemática, que mamãe menciona no diário do livro do Tio Floriano, de quando ela dava aulas aos moleques do Angico?". Respondi que não. "Pois ele cresceu, virou doutor e fixou rico, acabou comprando o Angico" diz. Licurgo explica que sacrificar a estância foi a forma de preservar o resto. Ele herdou as terras do seu Aderbal, mas Sílvia não quis arredar pé do Sobrado.

D. Sílvia viveu os últimos anos como Hiroo Onoda, aquele soldado japonês que, finda a guerra, continuou lutando. Porém, o seu combate era a preservação do Sobrado. Ela sabia que, como D. Bibiana, a sobrevivência do prédio dependia dela. "Certamente que, se não fosse por ela, o sobrado já havia sido demolido e transformado num estacionamento ou coisa parecida", diz o último morador do Sobrado. "Ela me dizia que D. Maria Valéria lhe contara da história daquele terreno, e do esforço sobre-humano que D. Bibiana empreendeu para que o casarão ficasse com os cambarás".

"Falando nisso, e D. Maria Valéria?", quis saber. "Ela viveu mais um ano depois da morte do vê Rodrigo", disse Licurgo. "Curiosamente, ela e o seu José Lírio, o Liroca, morreram no mesmo dia, curioso, não?". De fato, por essa nem o Erico Verissimo imaginaria...



Thursday, February 08, 2018

A tragédia grega e o reconhecimento nas Electras



Irene Papas interpretando Electra, no filme de Mihalis Kakogiannis


O objetivo deste trabalho é cotejar as diferentes versões do mito de Electra nos olhares diversos dos três tregediógrafos que nos legaram as respectivas peças, a saber: Ésquilo (Coéforas), Eurípedes (Electra) e Sófocles (idem).

A respeito da tragédia, como observa Lígia Militz da Costa e Maria Rítzel Remédios (1988) drama teve origem na Grécia e caracteriza-se por apoiar-se na identificação que se estabelece entre o público espectador e o problema apresentado na ação encenada.

Outra característica fundamental da tragédia é a ambiguidade resultante entre o ethos e o daimon, porquanto nesse gênero, o herói trágico quer guiar-se por seu próprio caráter mas está subordinado ao gênio mau (deimon).

Na Poética, Aristóteles sistematizou o gênero dramático. Aqui, o estagirita define a arte dramática como imitação e a tragédia como a mímeses de uma ação de caráter elevado (...) suscitando o terror e a piedade (1966, p. 74).

Desta forma, a tragédia é, a um só tempo, formada por diversas partes 'qualitativas' que identificam-se com os traços distintivos da mímese trágica: os meios (a fala e a melopeia), modos (o espetáculo) e o objeto (o mito, a fala e o pensamento). A tragédia não pode existir sem a ação, sem o mito, portanto. E duas partes que integram o mito — a peripécia e o reconhecimento, são admitidos como meios de fascinação na tragédia (1988, p.10).

Ora, de acordo com Aristóteles, a unicidade da ação e do mito depende com efeito da organização interna das partes diversas que o compõem, que são arranjadas conforme o critério de verossimilhança. A ação imitada deve formar um todo uno e coeso a ponto de, havendo deslocamento ou supressão de qualquer um de seus componentes, [é possível que haja] alteração ou confusão da ordem no todo (1988, p.10).

Na Poética, Aristóteles também dá atenção à caracterização do herói trágico. Segundo ele, este mostra-se vinculado aos parâmetros de felicidade e infelicidade, virtude e vício, bondade e mediocridade. O ideal de herói representado é o que está numa ordem intermediária, goza de reputação e fortuna, mas pode cair no erro quando impulsionado pela desdita (op. cit, p.10).


O Reconhecimento

As três partes do mito, segundo Lígia Militz (1992, p.24), peripécia, reconhecimento e catástrofe, são definidas por Aristóteles. Enquanto a primeira é uma espécie de refluxo da narrativa (porém dentro dos critérios de verossimilhança e da necessidade), a segunda é a passagem do não-conhecimento ao conhecimento, ação que ocorre com o fim de revelar uma aliança ou hostilidade entre personagens do drama, ação que, de acordo com a autora, culmina num estado de felicidade ou infelicidade (p.25).

Para Militz segundo Aristóteles, o reconhecimento que o corre junto com a peripécia é o que determina, a partir do conjunto da forma, os sentimentos de terror ou piedade (p.26). Por fim, diz Militz, a par de outras formas de reconhecimento, temos a catástrofe, como ação que resulta em destruição ou dor, corolário violento, a exemplo das mortes ocorridas em cena (1992, 26). Já Ribeiro (2010) citando Elizabeth Belfiore, explica que o reconhecimento "deve resultar numa ação que muda a direção da peça e contribui para o seu movimento contínuo (RIBEIRO, p. 252).

Em Ésquilo (Coéforas, 458 a.C), é Orestes quem primeiro reconhece Electra e logo é reconhecido. Em Eurípedes (Electra, 415 a.C) ele a reconhece, mas joga com a possibilidade de revelar-se. Já em Sófocles (Electra, 415 a.C), o reconhecimento ocorre quando um velho criado nota uma cicatriz que remete a um antigo episódio familiar de ambos.

Ribeiro cita Aristóteles para classificar os respectivos reconhecimentos em Sófocles e Eurípedes os mais comuns e menos artísticos. Segundo ela, o estagirita prefere o modelo concebido por Ésquilo, segundo o autor, de caráter silogístico e exemplar, ao contrário de outros expedientes considerados mais comuns na elaboração do reconhecimento.

Entende-se por herói trágico o que, consciente ou inconscientemente, transgride uma lei aceita pela comunidade e sancionada pelos deuses (1988, p.20). O herói trágico deve pertencer à aristocracia ou ser filho de um rei, por exemplo. Contudo, o que notabiliza o seu caráter trágico é a sua atuação na desgraça, no caminho entre a falha trágica e a punição.

No mito dos Atridas, tanto Electra quanto Orestes são aristocratas, transgridem as leis e cometem o crime (assassinato de Clitemnestra). A solução final do filho de Agamênon passa por sua irmã que, sozinha, não seria capaz de efetuar a vingança. Porém, o plano passa primeiramente pelo reconhecimento de ambos, que ocorre em cada uma das três peças analisadas — em Ésquilo, Sófocles e Eurípedes.



Ésquilo


Nas Coéforas, Orestes reconhece Electra quando ouve uma das suplicantes diante do túmulo dizer: "como pronunciar palavras propícias?". Como Ésquilo não menciona outra irmã (Crisótemis) e seu nome não é falado, ele a reconhece pelo discurso dela.

Oculto, ele vê que ela reconhece traços de Orestes nas libações no túmulo de Agamênon. A mecha de cabelo remeteria diretamente ao filho do Atrida, cuja relíquia só poderia pertencer ao seu irmão.

A cena, segundo Ribeiro, deve ser observada pelo fato de que ela não ocorre em qualquer lugar, ocorre diante do mausoléu do heroi grego e num momento extremo de súplica por parte de Electra que, naquele momento, vê signos de que suas preces foram atendidas.

A similitude das pegadas dos irmãos, por sua vez, de acordo com Jacques Jouanna (apud RIBEIRO, p.256), pode remeter a um tipo de reconhecimento análogo, que ocorre no Livro IV da Odisseia, quando Helena nota semelhança entre Telêmaco e Ulisses, tanto na forma dos pés quanto nacor dos cabelos. Segundo ele, Ésquilo não estaria lançando mão de uma ideia diversa ao usar esse expediente.

"A forma dos pés era uma forma pelo menos igual aos outros para discernir a semelhança física entre membros da mesma família. Por conta disso, o autor entende que o reconhecimento pelo formato dos membros, comum no período homérico, ainda seria válido no clássico (op. cit, p. 256).

Em seguida, ocorre o que seria a segunda etapa do reconhecimento, que é a peça de roupa. É nesse ponto, como observa Ribeiro, que Aristóteles entende o silogismo na forma como Ésquilo resolve o reconhecimento: alguém chegou que me é semelhante; mas ninguém se assemelha a mim a não ser Orestes; logo, quem veio foi Orestes (Poética, 1455a 5).

Sófocles


Na versão sofocleana, Orestes (junto com seu preceptor) já está em Argos e tem todo o plano de vingança decidido: carrega uma urna, como forma de entrar no palácio dos Atridas.

Ao chegar lá, reconhece Electra como uma suplicante mas precisa ter certeza de que é ela. O preceptor quer que ele apresse-se em depor as oferendas no mausoléu do pai. Ou seja, não poderia evitar de contar de sua morte a ela, que sofre seu pathos por quase toda a peça. Ribeiro salienta que, mesmo que o espectador saiba da trama antes que ela descubra, não furta-se a compadecer-se do sofrimento da heroína (RIBEIRO, p.257).

Aristóteles (XIV, 1453b) observa que o mito deve ser composto de tal maneira que, quem ouvir as coisas que vão acontecendo, mesmo que nada veja, só pelos sucessos trema e se apiede, como experimentará quem ouça contar a história de Édipo. Querer produzir essas emoções só pelo espetáculo é processo alheio à arte e que mais depende da coregia.

Em Electra, o reconhecimento no entanto dá-se através de Crosótemis, que nota as libações no túmulo de Agamêmon. Sua certeza é a de que cacho de cabelos só pode ser de Orestes.

Electra, que já ouvira a narrativa da "morte" do irmão, por piedade, quer acreditar que foram apenas relíquias deixadas pelo preceptor. Dado o divertido engano, ela não se dá conta que repudia a prova fatal da presença do filho de Agamênon ao mesmo tempo em que segura a urna com a prova falsa. Ao mesmo tempo, Orestes tem certeza de que está diante da irmã ("Tua mãe não te amava como eu", etc.) embora possa ser difícil de acreditar, ao vê-la na condição em que se encontra, mais velha e em andrajos.

Electra acredita aparentemente quando Orestes se apresenta. Contudo, Sófocles usa um outro sinal — um anel que, segundo ribeiro, serve mais como reforço do que prova cabal de identidade (p.258). Se compararmos com Ésquilo, os signos no mausoléu (como o cacho) e o reconhecimento de Crisótemis são episódios 'menores' ou secundários, com relação às Coéforas.


Eurípedes



Na versão de Eurípedes, encontramos Electra em “núpcias hórridas” com um campônio, solução salomônica para que Egisto enfraquecesse a prole de Clitemnestra e tirasse de Electra o status de cidadã, e assim refreasse seus temores contra a possibilidade de que ela venha dar a luz a um nobre que possa enfim fatalmente vingá-lo. Ao encontrá-la, Orestes fica chocado em ver a irmã morando numa choupana e carregando água num vaso. Como percebe Ribeiro, Electra sofre um duro teste e o reconhecimento é protelado ao máximo: se ela fica sabendo que o irmão está vivo, tem a desvantagem de ter o reconhecimento postergado (p. 262).

Ou seja, se em Sófocles temos Electra sofrendo com a certeza da perda do irmão, em Eurípedes, como diz a autora, posterga o reconhecimento por parte dela, fazendo com que surjam diversas oportunidades propícias para tal. E quando ele atinge o ponto crucial, “deixa a nossa perspectiva frustrada” (idem, ibidem). E de forma diversa da versão sofocleana, Eurípedes faz com que o “velho” amigo da família seja o algoz da informação de que houve libações no mausoléu de Agamênon — e não Crisótemis, que não aparece nesta versão.

Contudo, ao lhe ser revelada a efeméride, ela descarta as pistas uma a uma: um nobre como Orestes não iria chegar às escondidas, e os signos encontrados no túmulo não possuem qualquer prova cabal de que são dele, fazendo aqui o intertexto com Ésquilo. No fim, é o velho que o ‘reconhece’ para ela, mostrando o corte no rosto de Orestes (“repara nele: tem o que mais queres”). Porém, ela só esmorece após o reconhecimento definitivo.

Pietro Pucci, segundo Ribeiro. Pare ele, Eurípedes está lidando com um tema mais caro a ela do que a Ésquilo — a relação entre verdade e evidência: “ela já está certa por algum padrão de análise racional de evidência, e já está errada. Eurípedes aqui reflete seu tema familiar, a impotência da razão humana” (idem). Por fim, Gilberte Ronnett (apud RIBEIRO) entende que os acréscimos esquilanos só podem ser entendidos como forma de o poeta equiparar a sua peça à clássica Electra e atender aos convencionalismos das cenas de reconhecimento (p. 263). porém, ao contrário de Sófocles e Ésquilo, aqui isso ocorre à revelia de Orestes.


Conclusões


Márcia Cristina observa, no entanto, que a etapa do reconhecimento nas Coéforas é peça fundamental para o desenrolar da peça, quando tal expediente significa a mudança “peripecial” da má para a boa sorte. Em Sófocles, o plano de vingança já fora concebido e, em Eurípedes, como uma Lady Macbeth, ela desempanha a função vital do cumprimento do matricídio, papel que em Ésquilo coube ao coro.

Em matéria de estílo e técnica, Lígia Militz e Maria Ritzel salientam a relação entre a versão de Sófocles em Ésquilo. Também entendem que Electra têm ascendência sob os atos do irmão. Ela não participa do crime mas é seu agente racional. Desta forma, Sófocles encontraria-se na figura trágica de Electra e na sua agonia por ver que a vingança custa a ocorrer. A diferença entre ambos nessas peças centra-se na personagem principal, eixo da tragédia. Em Ésquilo é Orestes e em Sófocles Electra.

Ante a destruição progressiva da família, Sófocles procura uma solução conciliadora omitindo os deuses trabalhando a caracterização da irmã de Orestes; figura humana em desgraça, Electra vive uma situação repugnante pela fixação na figura paterna, tornando-se, desse modo, reflexo da desordem e do caos (1988, p.19).

Do ponto de vista religioso, as autoras salientam que Eurípedes diferencia-se de seus pares pela sua visão antropológica de mundo: “[seus heróis] são mais humanos que os de Ésquilo e Sófocles, pois eles odeiam, vingam-se, duvidam; arrependem-se de sua ação, apresentando, portanto, sentimentos próximos ao homem comum” (idem, ibidem).

A crítica corrente, salientam as autoras, também observa como este autor valoriza personagens marginalizados socialmente, como o escravo e o camponês. Contudo, ao que concerne à Electra, em Eurípedes, sofre imposições masculinas, obrigando a casar-se duas vezes. Ou seja, mesmo que o tragediógrafo buscasse apresentá-la como livre em suas ações, ela está presa nos limites da sociedade patriarcal em que vive e que ajuda a restaurar (p.20).

Já a figura dramática de Electra em Eurípedes lembra a de Sófocles, onde a força da personagem parece residir em sua amargura perene, que começa com a morte do pai e termina na forma como é tratada. Nela prevalece o ódio sobre o amor e seu desejo de vingança não é desinteressado: apesar de insubmissa, aceita seu destino (o casamento imposto) a fim de que o poder permaneça na casa dos Atridas.

A respeito da atuação dos heróis, é possível perceber diferenças entre os três autores. Se em Ésquilo o clímax da história reside imperiosamente na vingança, nas duas electras, o elemento fundamental está primeiro na salvação da heroína e, num segundo momento, em seu triunfo. Se nas Coéforas, Orestes é o enviado de Apolo (ou de Zeus, em última análise), nas outras peças, ele é aquele que liberta Electra da situação degradante em que se encontra.

Por fim, Militz e Ritzel observam que as electras aproximam-se pelo objetivo de marcar de forma profunda o caráter da heroína que, ao lado de seu irmão, consegue finalmente livrar-se dos sofrimentos por que fora oprimida (idem, ibidem).


Referências Bibliográficas



ARISTÓTELES, Poética. Porto Alegre, Globo, 1966.

COSTA, Lígia Militz, REMEDIOS, Maria Luíza Ritzel. A Tragédia, Estrutura e História. Ática, São Paulo, 1988.

RIBEIRO, M. C. L. Electra e Orestes: reconhecimento e espaço na tragédia grega. Revista do Museu de Arqueologia e Etnografia, 20: 251-176. São Paulo, 2010.

Thursday, January 25, 2018

Carmen: a vida em disco


A Pequena Notável

Carmen Miranda hoje é lembrada principalmente como ícone do cinema e musa do tropicalismo. Porém, algo que chama a atenção, ao transcendermos os epetos da nossa Pequena Notável é que sua imagem de artista de teatro e cinema, de certa forma, acabou eclipsando um elemento fundamental na sua carreira: seu legado como sambista e intérprete, com uma carreira consolidada com centenas de discos gravados em quase uma década.

No entanto, se olharmos em retrospectiva, iremos lembrar de temas como “South American Way”, “Bambu, Bambu” ou “Chica Chica Boom Chic”, músicas que tornaram-se signature songs para ela, mas que são meros produtos da indústria do cinema e ligados ao seu estereótipo de baiana do tutti frutto hat. Carmen, pelo menos publicamente, não dava bola para essa estereotipação: para ela, isso era comum no mundo do cinema - nem John Wayne escaparia.

Mas a verdade é que, muito antes da Broadway e de Hollywood, Carmen teve papel fundamental na pavimentação da canção brasileira. A respeito disso, Ruy Castro (1) diz que, a partir dos anos 30, ela estava fazendo uma revolução, tornando a música popular adulta, urbana, maliciosa e estimulando os compositores a explorar esses caminhos.

Comparando a Brazillian Bombshell à cantora mais popular daquele tempo, Aracy Côrtes, ele entende que a intérprete, a partir de Carmen, deixava de ser a “soprano olímpica”, para quem a letra era apenas uma “pista de corrida tendo os agudos como obstáculos, ou a moçoila ingênua e infantilizada que cantava versos matutos ou piegas”. Para ele, a cantora agora era uma mulher que tomava liberdades com o ritmo, adiantando-se ou atrasando-se em relação a ele, ditando o próprio ritmo, escandindo sílabas, enfim, “tornando-se dona da canção”.

Ao mesmo tempo, diferentemente de Aracy, Carmen passava longe da Praça Tiradentes e das revistas, que marcaram a produção musical até o começo dos anos 30. Ao contrário, desde o princípio, ela foi uma cantora do rádio – surgiu com o começo das transmissões comerciais no Brasil e foi a primeira intérprete de renome a ter um salário fixo, na Mayrink Veiga. Até então, ou, até mesmo depois, era comum que artistas 'do éter' ganhassem por empreitada, recebendo apenas cachês.

Como artista da Victor, ela seria a artista preferida de compositores de sua geração, como Custódio Mesquita, Ary, Assis Valente, André Filho ou Synval Silva. Ao seu lado, havia apenas Aracy de Almeida, que tornaria-se intérprete oficial de Noel Rosa e sua irmã, Aurora. Das duas, só Aurora a ombreava em matéria de produção de discos. Em média, elas lançavam um 78 rotações de três em três semanas (os long-plays só surgiriam quando Carmen já estava radicada nos Estados Unidos, no final dos anos 40).

Como cantora de Noel, Aracy de Almeida iria para o lado do samba-canção: “X do Problema”, “Último Desejo” ou “Triste Cuíca”. Havia um abismo temético entre a lírica do Poeta da Vila e o estilo mais carnavalesco de Carmen. É notória a frase de Noel (“isso é samba ou o que a Carmen Miranda canta?”). Carmen notabilizou-se por músicas mais tematizadas, marcinhas de Carnaval, área muito pouco explorada por Noel. Ele mesmo dizia que achava ser a Pequena Notável mais uma cantora de Carnaval do que uma sambista.

Talvez esse rótulo, se somado à sua imagem antes de performer (já em Hollywood) do que de cantora propriamente dita possa ter, com efeito, diminuído sua importância como cantora popular, mesmo sendo figura de proa no meio artístico, disputada pelas duas gravadoras mais importantes da época (Victor e Odeon) justamente num importante período de consolidação da canção brasileira no país. Diferenças à parte, porém, Ruy Castro salienta que Aracy foi a primeira cantora a surgir depois de Carmen, e só iria começar a arranhar a supremacia de Miranda com “Tenha Pena de Mim” (Cyro de Souza e Babaú), em fins de 1937 e o testamento de Noel, “Último Desejo”, do mesmo ano.
Até aquele ano, Carmen era a dona de canções como “Goodbye”, “Minha Embaixada Chegou”, “Tic-Tac do Meu Coração”, “Moleque Indigesto”, “Uva de Caminhão”, “Alô Alô Carnaval”, “Adeus Batucada”, “Querido Adão”, “Meu Balão Subiu”, “Como Vaes Você”, “No Tabuleiro da Baiana”, “Me dá, Me dá”, “Eu Dei”, “Camisa Listada”, “Maria Boa”, “Primavera no Rio”, “Taí”, “Boneca de Piche”, “Na Baixa do Sapateiro” e tantas outras.

Em dez anos, ela gravou 281 músicas entre marchas, choros, rumbas, emboladas e outros quetais, um recorde entre as cantoras brasileiras até então. Fizera dupla com vários cantores, de Mário Reis a Carlos Galhardo, consagrou tantos compositores, como Assis Valente, Dorival Caymmi e Synval Silva e gravou com regionais de Benedito Lacerda e Pixinguinha.

Porém, como salienta Ruy, sua carreira musical de verdade foram os discos que ela gravou no Brasil.

E por que? Quando ela virou estrela da Broadway e depois do cinema, sua produção musical, de 1940 a 1955 foi resumida a pouco mais de cinquenta fonogramas, todos lançados pela Decca americana. A explicação é a de que empresários e produtores de Miranda nos Estados Unidos queriam que seus fãs fossem ao cinema para ouvi-la. Não queriam que discos prensados e em profusão concorressem com as entradas. O que parece absurdo, já que cantores como Bing Crosby não tinham sua produção ofuscada pelos filmes.

Claro que noves fora era preciso entender que Crosby já era um artista consagrado do microfone, se compararmos com Carmen que, quando surgiu, em 39, era uma performer estritamente de palco. Junto com isso, a sua própria imagem de “comediante” a afastava de parecer ou tentar parecer ser (ou a aventuirar-se a) uma carreira como cantora, como uma Jo Statfford ou uma Dinah Shore. Com o correr dos anos, Carmen estaria cada vez mais presa ao estereótipo de latina. Os poucos discos que foram lançados por ela na América eram os standards de seus filmes, como “When I Love, I Love”, “Asi, Asi”, “A Weekend In Havana” (em geral, rumbas que eram transpostas em tempo de samba pelo Bando da Lua, com versões em Português de Aloyisio de Oliveira) e algumas poucas novidades brasileiras, como “Caroom' Pa Pa” (Baião, de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, em seu ultimo disco, de 1950) ou “Arca de Noé” (Nássara e Sá Roris).

Mesmo assim, ela era ciente dessa estandartização, como se a sua música no exterior tivesse sido pasteurizada pelo mesmo technicolor que plasmava em suas produções cinematográficas. Carmen sabia que “aquilo que ela cantava” (parafraseando Noel, que não viveu para vê-la em Hollywood) lá fora não era o samba de sua terra: “eles [os temas que ela cantava nos filmes] fazem parte da minha interpretação e só servem para dar uma ideia do que é samba, que a dança nacional do Brasil”. Em 1940, contudo, um álbum de 78 rotações foi lançado pela Decca com o nome The South American Way, contendo os sucessos de Carmen ainda no começo.

Ela ainda gravaria suas derradeiras faixas pela Odeon quando retornou ao Brasil, em 1940, com “Voltei pro Morro” e a emblemática “Disseram que Voltei Americanizada”. No entanto, elas não entrariam para o seu repertório nos Estados Unidos. Na verdade, foram suas últimas sessões como cantora de sambas, e ela não sabia disso. Dali sairiam ainda “O Dengo que a Nega Tem”, de Caymmi, ou “Rescenceamento”, de Assis Valente. Como diz Ruy Castro: “os poucos discos que ela ainda gravaria nos Estados Unidos não fariam muita diferença para ela ou pra ninguém. A rigor, e por mais duro que isso possa parecer, era o fim da Carmen cantora – sufocada pela personalidade colorida que também cantava e, às vezes, até representava”.

Com o advento de long-play, algumas coletâneas de Carmen foram lançadas, algumas pela Camden (nos anos 60), divisão da RCA, com fonogramas do começo da carreira de Carmen no Brasil. Porém, nunca houve um lançamento proeminente com todos os fonogramas, pelo menos pelas suas gravadoras originais, Odeon e Victor, até 1996, quando a EMI lançou uma caixa (hoje já esgotada) com as 126 músicas que ela registrou lá entre 1935 e 40. Mais tarde, a BMG, detentora das gravações da Victor, pôs na praça uma outra compilação, no entanto sem cobrir toda a obra de Carmen. Muita coisa saiu pela Revivendo, mas, em 2018, não existe uma edição de toda a sua obra – 281 faixas no Brasil e 32 nos Estados Unidos, além do material que só aparece em seus filmes – como “Paducah”, com Benny Goodman.


(1) Ruy Castro. Carmen Miranda, Uma Biografia. Companhia das Letras, 2007.

Tuesday, January 16, 2018

Machado de Assis e a cultura do favor no século XIX


Machado de Assis


O presente artigo busca analisar a cultura do clientelismo no Brasil oitocentista sob a ótica do escritor fluminense Machado de Assis, mais precisamente num livro de transição em sua obra, Iaiá Garcia, de 1878. Para tanto, iremos basear nosso ensaio na análise já clássica de Roberto Schwartz, em Ao Vencedor as Batatas (1988).

No estudo citado, o autor observa que, num momento fundador, nosso ficção enxergou as peculiaridades da vida familiar brasileira sob a ótica do pitoresco e da busca da identidade nacional, cujo resultado foi positivo. O grande representante dessa fase foi José de Alencar.

Numa geração posterior, Machado de Assis retoma o complexto temático, porém sem a “névoa protetora da cor local e a autocongratulação patriótica”. Aqui, a família brasileira passa a ser encarada, segundo Schwartz, em A Viravolta Machadiana (2012) sob o prisma do dependente instruído, que fazia parte dela e constituía um problema. O impasse estava dado, com o desequilíbrio dado por entre as classes. Se, num primeiro plano, há a narrativa romanesca, num segundo plano, vemos a nu a relação entre dependente e família de posses, sob o signo opressivo da proteção, que a qualquer momento pode ser retirada.

Burguês e escravocrata, lembra o autor, o Brasil dava forma mercantil aos bens materiais, mas não desenvolvia o trabalho assalariado, aonde uma problemática especial, de classe, à qual aludem os romances, principalmente os de sua primeira fase, de Ressurreição (1872) a Iaiá Garcia. Assentado na cultura escravista, diz Schwartz, o país fazia com que homens livres e pobres, nem proprietários, nem proletários, vivessem um tipo particular de privação ou semiexclusão (2012, p.259).

Na crônica do chamado mal-estar dos dependentes, diz o autor, Machado de Assis mostra um quadro de personagens “do subsolo” lutando por sua dignidade pessoal, “travada no âmbito das famílias proprietárias. No centro da intriga, existem heroínas pobres, inteligentes e lindas — além de muito suscetíveis — [que] faziam frente à injustiça de que eram vítimas.

Dessa forma, na ótica do Bruxo do Cosme Velho, a intriga sentimental deveria humanizar essa sociedade ‘incivil’: o enfrentamento das heroínas com os abusos de autoridade de seus padrinhos, femininos ou masculinos, se dá sob um signo diferente em cada um dos quatro romances [da primeira fase], o que aliás ilustra o ânimo experimentador e sistemático da literatura machadiana (p. 265).



2. Iaiá Garcia

No romance, D. Valéria chama Luís Garcia, protegido do falecido Comendador (marido de Valéria) viúvo e pai de Iaiá, homem que certamente deve favores a ela. Pede à ele que tire Estela, a agregada da sua casa, da cabeça de Jorge, seu filho, e o convença a partir para a campanha do Paraguai. Em paga, D, Valéria daria a Luís a mão da própria Estela, fato que o rapaz perplexo descobre ao retornar da guerra, anos depois.

Jorge acaba entrando na vida dos Garcia ao, como doutor, ajudar Luís à morte e sua família. Com o convívio, acaba apaixonando-se por Iaiá, filha adotiva de sua antiga paixão. O complicado e inesperado triângulo amoroso separa as duas, Estela e Iaiá, que decide romper com Jorge, alegando que sua madrasta ainda o ama.

Estela por fim arruma um emprego de professora e parte, e então Jorge e Iaiá vivem felizes para sempre. Um ano depois, ao visitar o mausoléu de Luís Garcia, Iaiá encontra uma coroa de orquídeas de Estela, prova de fidelidade ao seu falecido pai.


3. Patriarcalismo e a Cultura do Favor


De acordo com Luiz Felipe de Alencastro (1987), o desejo em manter o escravismo no Brasil permitiu uma solução negociada entre a elite do centro e os respetivos grupos regionais do país. Isso também viabilizaria a articulação dos setores dominantes na consolidação de um estado forte. Porém, a imposição desse projeto provocaria um choque entre esses politiburos regionais e a Coroa. Durante o período regencial, vários conflitos eclodiram, como a Balaiada, a Cabanagem e a Revolução Farroupilha, por exemplo.

Com o fim das revoltas, o tom foi de conciliação com o Rio de Janeiro, conciliação cujo fórum seriam as assembleias provinciais. Surgidas a partir de 1834, elas emprestavam um relativo grau de autonomia a esses respectivos grupos. Contudo, no fim, como observa o autor, canalizava tanto disputas quanto interesses para dentro da máquina do Estado. Ou seja, de forma paradoxal, à medida que desejavam resistir à mediação do Império, eles cada vez mais dependiam do governo central no sentido de atendimento de seus interesses.

Essa conciliação ocorria nas assembleias mas também na Câmara dos Deputados. As revoltas regenciais também serviram de antídoto ao problema das disputas locais: a partir de agora, o governo central era um avalista da ordem interna.

Por sua vez, para a Corte, era preciso ampliar o grau de centralização do regime e a neutralização dos potentados locais. Ao inspirar-se, do ponto de vista formal, no modelo dos estados europeus, o Império buscava "civilizar" a população e ordenar a sociedade brasileira.

Na ótica de Maria Odila da Silva Dias (1980), esse projeto "iluminista" seria o principal argumento a favor de um governo autoritário, com poder de cooptar essas elites locais e garantir uma unidade nacional. Isso passava pela criação de uma rede estatal visando substituir a justiça privada pela pública e uma dominação mediada pelas instituições públicas em detrimento da dominação privada.

Mesmo empunhando a bandeira liberal com uma mão, o estado não podia escapar das contingências da ordem escravista. Numa sociedade como aquela, não havia a menor possibilidade de simplesmente transplantar o modelo liberal europeu para o Brasil. Assim, o modelo de estado adotado aqui ganhou um novo conteúdo.

A partir desse impasse, as novas instituições do Império criaram um mecanismo que, segundo Roberto Schwarz, iria reger a vida ideológica brasileira: o favor.

A sociedade escravista não conhecia a figura do profissional liberal. Naquele tempo, os homens livres não tinham acesso à vida social e bens senão por intermédio de um senhor de posses.

A relação de favor era cifrada no sentimento de igualdade e superioridade porque ambos eram livres, embora numa sociedade escravista. Como eles eram iguais, esse jogo era permitido; pelo compadrismo, podiam trocar favores. De acordo com Maria Sylvia de Carvalho Franco (1976), o favor foi a mola mestra desse paradigma de dominação no Brasil, a partir da segunda metade do Século XIX.

Segundo a autora, ao perpassar a administração pública, o favor introduziu o clientelismo como elemento a mediar o jogo político. Da ótica institucional, isso representou uma 'síntese' que tentava amalgamar um modelo moderno à cultura do favor. Para ela, a burocracia realizou

as formas e as teorias do estado burguês pela mediação do clientelismo, vinculando autoridade oficial e influência social na montagem de eficiente de um instrumento centralizador autoritário, explorado pela classe dominante em vista dos seus objetivos, identificados com os interesses nacionais (p.63).

Dessa forma, sob o signo do clientelismo, a política do favor foi entronizado na esfera do jogo político, emprestando novas cores à administração em geral ao mesmo tempo em que lançava mão de um modelo capitalista. Sobre o tema, Sérgio Buarque de Hollanda (1979) entende que foi através desse sistema que a elite conseguiu legitimar-se sob a égide de um estado sem qualquer base popular e sem apoio de um setor significativo numericamente. Para ele, a representatividade do governo central era apenas "aparente", legitimada por eleições fraudadas e falseadas. Era preciso então retirar do nada os eleitores e elegíveis e, para tanto, recorreu-se a uma farta distribuição de empregos públicos (p.22).

Segundo Sérgio Buarque (1985), isso começa em 1831, quando os portugueses deixam o poder e, a partir daí, homens livres e pobres foram progressivamente guindados ao poder, mas tornando-se meros funcionários públicos habilitados a serem "eleitores e elegíveis" (p.85). Isso causou uma perversão da noção de representabilidade, criando-se um sistema sui generis em que, para salvar-se a fachada parlamentarista, o governo há de depender, pelo menos teoricamente, da vontade dos representantes da nação, mas onde estes vão depender, por sua vez, da vontade do governo (HOLLANDA, op cit, p.23). Desta forma, preservava-se um sistema atávico cujo corolário foi a consolidação de um país de sinecuras.

Como se sabe, a monarquia brasileira viveu sob o sistema parlamentarista. A partir de 1837, dois partidos se revezavam, o Liberal e o Conservador.

Através de fraude, sempre que um novo ministério era nomeado, se este não tivesse maioria, ele era dissolvido e novas eleições seriam realizadas. Por causa da fraude eleitoral, o governo sempre contava com a maioria na Câmara. Assim, o grupo no poder conseguiu manter a estrutura escravista e permitiu acomodar a ordem "privada" dos tempos da colônia num estado moderno e capitalista.


3. Iaiá Garcia, Patriarcalismo e a cultura do favor

Segundo Roberto Schwartz, a ousadia da obra de Machado de Assis começou, por assim dizer, de forma tímida, limitada ao âmbito familiar, onde ele analisava as perspectivas e iniquidades do paternalismo à brasileira (SCHWARTZ, 2012, p. 248). Nesse sentido, podemos dizer que sua literatura está eivada de uma fauna de personagens que, dentro do âmbito do espaço familiar, representam de forma inefável tanto a estrutura quanto a cultura do favorecimento a partir dessa ótica singular.

Um exemplo típico é José Dias, de Dom Casmurro (1900). Ao lermos o romance fora do contexto, podemos não entender por que uma figura externa à família de D. Glória possui um papel tão proeminente dentro da família de Bentinho.

Ora, é justamente porque ele está inserido dentro da cultura do século XIX. Ou seja, José Dias pode parecer estranho aos olhos de hoje mas, dentro de um contexto de um Brasil capitalista e escravocrata como o que Machado de Assis narra em seu livro, o personagem seria apenas mais um. A própria estrutura familiar da casa de D. Glória não é incomum — uma matrona que cuida de bens, como imóveis, e vive cercada de uma parentela que gravita em torno dela.

É nesses limites conformistas, traçados pela ideologia do decoro familiar e a relação “conservadora” (como veremos adiante) entre parentes, favorecidos e um patriarca (ou matriarca, viúva e patusca, como no caso mais do que recorrente em Machado) que podemos observar, ainda a partir da primeira fase da obra do Bruxo do Cosme Velho, o quanto ele foi um anatomista da realidade social brasileira daquele período. Para tanto, vamos pegar como exemplo um romance que encerra a chamada fase romântica do autor, Iaiá Garcia (1878).


Assim como em Dom Casmurro, Iaiá Garcia tem o seu José Dias: O agregado Antunes. Escrevente, ele foi homem de confiança do falecido desembargador, marido de D. Valéria. É mestre na palavra. Como o Fígaro de Baumarchais, é o factorum da casa; dá recados, confidente em situações sentimentais, ajuda nas compras de casa, ceia com os familiares (exceto quanto há visitantes) e é apreciador de charutos alheios. Sua filha Estela é ajudante da viúva do desembargador, e ele sonha com o dia que ela se case com o filho de D. Valéria (no entanto, para a tristeza dele, o rapaz não é correspondido e sequer a matrona cogita que seu único filho case-se com uma moça “de baixo” como ela, e faz de tudo para afastá-los). Consola-se freqüentando o Tribunal, tem comportamento sabujamente subalterno, mas convive com os grandes, e detesta os de sua extração.

Jorge corteja a moça. A mãe dele resolve comissionar Luís Garcia (contínuo do Caixa, provavelmente indicado pelo falecido desembargador) para que o rapaz a esqueça. No fim, ele é rejeitado por ela, a mãe o manda para a Guerra do Paraguai e ele heroicamente alista-se. Quando retorna, tempos depois, descobre perplexo que nesse meio tempo, D. Valéria costurou o casório entre os dois “favorecidos”, Estela e Luís Garcia.

Schwartz, ao falar do livro em Ao Vencedor as Batatas (1988), salienta que ele é ao mesmo tempo síntese do que machado propunha nos primeiros romances (Ressureição, A Mão e a Luva e Helena) porém sistematizando a ciranda do favor, livre de recursos romanescos, como ocorrera antes. Para ele, a ideologia desta obra os limites que vigoravam nos livros anteriores. “Esta é a versão negativa da vantagem, enquanto ausência de desvantagem. Entretanto, na ausência daqueles limites, novos aspectos da matéria assumirão a função formal, e o resultado é a realidade melhor “observada”, isto é, melhor recriada (p.119).

De forma arbitrária, Valéria acena para o casamento entre Estela e Luís, que seria vantajoso para ambos, e para a filha daquele, Iaiá, que ganhará um dote. Ela gosta dela pelo que ele não tem a dar, isto é, um idílio. O que importa, segundo Schwartz, é o acordo: dado que a fortuna e as distinções sociais estão na dependência do favor, e portanto das quimeras da gente rica, o melhor é abafar as esperanças e ambições (p.125).

Ou seja, como bem observa Schwartz, a “humilhação” não reside propriamente nas relações de favor, mas nas ilusões que a acompanham: um regime onde quem busca algum tipo de distinção, reconhecimento ou ascensão é tido como “desfrutável”. Essa, poderíamos dizer, é a hibris do favorecido. À ele não é permitido mais do que lhe cabe.

Caso notório é o de Capitu. Uma moça pobre, filha de um favorecido de D. Glória, que aspira a ascensão social casando-se com o filho desta, Bentinho. O corolário, no entanto, para ela, é funesto. Ao contrário da heroína de Dom Casmurro, Estela não tem ilusões ao que concerne à sua situação inferior. Resignada, não cede aos arroubos do filho de D. Valéria. Da mesma forma, a situação inferior em que ela e Luís Garcia se encontram não significam situação limite com que faça com que eles busquem revoltar-se.

Ao mesmo tempo, a resolução de D. Valéria em afastar de seu filho o desejo de casar-se com Estela, o que romanticamente parece um anticlímax logo na largada do livro, demostra, na figura de Estela, justamente a sua fortaleza como personagem. O fato consuma-se quando, entre duas “xícaras de chá”, Jorge, já de volta da Guerra, demonstra interesse na filha adotada de Estela (à essa altura, já unida à Luís, por obra e graça da mãe dele, a protetora de ambos), Iaiá.

Roberto Schwartz salienta que, com isso, o leitor tem ideia da crueza com que o autor visa, ao relatar as humilhações próprias ao paternalismo. E terá noção do grau de arbitrariedade a que se vê entregue o dependente, sobretudo se for mulher (1988, p.130). Enfim, se a vida de Jorge é a de uma “evolução sentimental”, a de Estela, a agregada, é o “leque de acidentes que lhe reserva o amor de um moço rico” (idem, ibidem). De forma anti-romântica, continua o ensaísta, a distância social prevalece contra o amor, mas isso por convicção da própria valia, e não por tradicionalismo.

No campo opressivo que é dela, a personagem experimenta uma obediência sem baixeza, salienta Schwartz, que corresponde aos obséquios “frios de Luís Garcia”. O que realmente a constrangia era a corte de Jorge. Ao contrário de Capitu, podemos observar aqui, se o amor de um jovem rico pode suprimir as distâncias sociais, para Estela isso não o valoriza.

Ao contrário, apenas alimenta esperanças indignas — no caso de Dom Casmurro, após a morte de Escobar, quando o prédio emocional de Bentinho ruiu, todo o seu ódio foi catalizado contra a mulher que, com “olhos de cigana dissimulada”, usurpou um lugar que não lhe deveria pertencer. Logo, para muitos críticos, o “ciúme” de Bentinho passa necessariamente por um corrosivo preconceito de classe.

Estela, ao contrário de Capitu, não tinha nem ambições nem esperanças com relação a esse consórcio, ou perfazer o folhetinesco fait-divers de um casamento ultra-romântico, como “O princeso e a plebéia”. Diferentemente de uma trágica Desdêmona de Dom Casmurro, a resignada personagem de iaiá Garcia sabe qual é o limite de sua hibris.

Ao mesmo tempo, assevera o autor, tanto a dignidade de Luís quanto de Estela se constrói como resposta à arbitrariedade de seus protetores, e especialmente a seu aspecto mais veleitário, que é onde se concentra o caráter pessoal e degradante da subordinação (p.131). A solução da heroína consiste em dividir-se em duas: dá ao paternalismo o que é dele, mas lhe recusa o amor (p.132).

Ou seja, no fim das contas, a melhor solução é conservadora: o imobilismo. Quer dizer, é melhor que, numa situação como esta, cada um saiba qual é o seu lugar. Não porque a diferença social seja justa ou a tradição explique, diz Schwartz, mas porque os mediadores do movimento, o obséquio e o desejo de subir, são, segundo o ensaísta, ainda fatores mais degradantes (idem, ibidem).

Ele salienta que, a despeito do fato de que os agregados saibam que sua consciência de situação seja aguda, isso não se transforma em consciência de classe. “Nesta linha”, diz o autor, no entanto, “a dívida de gratidão parece pesar mais do que a inferioridade social.

A ideologia de classe que Machado de Assis nos passa ao falar desses personagens agregados é a de que todos movem-se sob o signo da racionalidade, ou melhor, de uma racionalidade particular. Essa razão consiste em não investir a esperança nas fantasias de seus protetores, nem nas próprias: é uma ideologia de desencanto e resignação. Eles não vivem a salvo do jugo e da prepotência, mas ficam a salvo da dependência interior. E, de certa forma, como também irá demonstrar Machado, essa diferença de classe conta com a cumplicidade do dependente com sua situação — como é o caso de Antunes, pai de Estela.

Agregado de um conselheiro de Império, ele jacta-se de sua condição (como a do mordomo de Brás Cubas, que sempre aparecia à janela para mostrar onde ele servia). Ele internalizou esse processo. A diferença, em Iaiá Garcia, está justamente na figura de Estela se comparada com a de seu pai: ela não irá elaborar sua condição desta forma e, no fim, buscará uma solução capitalista, ainda que à margem do capitalismo: virar professora no interior de São Paulo. Ela tem o seu foro íntimo, salienta Schwartz, e não são as preferências de sua protetora que definem as suas demandas (p.138).

Jorge, por sua vez, é um tipo exemplar. Filho abastado de mãe rica, tem como horizonte intelectual Recife ou Coimbra, desposar a filha de algum senador (enquanto corteja moças pobres, como fará Brás Cubas, que “nasce” aqui) e assim engrenar carreira política na Corte. Vivia vida mundana, desocupado “como convém à ordem escravista”, agora, diz o ensaísta, com especial destaque para a combinação de autoridade e responsabilidade (p.140).

Se traçarmos um paralelo com um Dickens, por exemplo, Jorge, o jovem abastado brasileiro, é o anti-David Copperfield. Não trabalha, não começou do nada, não tem nada do que orgulhar-se. Estela e Luís Garcia, num país onde não poderiam ser força produtiva, como muitos, vivem às custas da idle class da Corte, algo idiverso da realidade da Inglaterra vitoriana. Diz Schwartz: quando encontrava uma solução possível para o realismo brasileiro, Machado abandonava a fórmula consagrada do realismo europeu e com ela o domínio da racionalidade convencional (p.141).

Enquanto envereda por uma forma peculiar de realismo — na periferia do Capitalismo, como diria o ensaísta, Machado, em Iaiá Garcia, elabora um enredo cuja descontinuidade e senso difuso transcenda e até frustre o que seria o projeto de um romance para moças.

O argumento de Schwartz é curioso se pensarmos que, antes de a fortuna crítica do escritor fluminense separar de forma simplista as duas fases do autor de “Esaú e Jacó” em romântica e realista, seus primeiros quatro romances contenham elementos onde o conflito de classes entre proprietários e agregados seja tão recorrente.

Contudo, como diz o autor, o que era ensaiado no começo ganha cores mais fortes em Iaiá Garcia, onde o conflito em si ganha estatuto de tese e se presta menos à mecânica da fabulação em si, como em Helena, por exemplo. Como entende o autor, a supressão metódica do movimento romanesco é fruto de observação local e é um avanço realista de Machado, que no entanto o aproxima da autocrítica formal característica da literatura de vanguarda, em que se explicitam pressupostos gerais da ordem burguesa. Um exemplo mais da convergência entre atraso social e formas artísticas avançadas (p.144).


4. Conclusões

Segundo análise de Roberto Schwartz, como extrato de tese, nestes romances “românticos”, Machado esboçava uma combinatória entre as posições sociais enquanto realidade prática e o campo social enquanto valor imaginário, combinatória cuja regra são as compensações simbólicas (1988, p.134). Dessa forma, a desigualdade social não se demonstra como antagonismo mas de coesão (e ou complementação), porquanto essa duplicação imaginária dispõe aos favorecidos os fumos de ‘superioridade’ que são, com efeito, os elementos que ele necessita.

Porém, no caso de Estela, a sua trajetória não é na resolução da própria situação dentro do sistema. Sufocada pela relação familiar desgastada, sua solução heroica (ou deus-ex-machina à Machado) é o trabalho assalariado, já historicamente nos estertores do Império (muito embora ele não faça menção à palavra “salário”).

O trabalho, observa o autor, se insurge como alternativa ao paternalismo — no entanto, o trabalho livre, mas livre da Corte. Luís Garcia, que era funcionário público, ainda estava preso às malhas da ciranda do favor. Para ele, a ideologia de Luís Garcia e Estela, é antes civilizatória do que crítica.

Mas, nessa mesma ideologia, assevera o ensaísta, o mérito intelectual e moral em Iaiá Garcia reside justamente nos dependentes (p.134). No entanto, se o começo do livro parece prometer um enfrentamento de classes, essa promessa não se cumpre. Se a contradição ideológica é central no começo, posteriormente ela passa ao largo do romance: a mola dos acontecimentos estava nos desmandos de Dona Valéria (como ocorrerá em Dom Casmurro com Dona Glória) e não nos antagonismos ou questiúnculas de direito.

E aqui, para ele, Machado de Assis ainda analisa o arbitrário paternalista na perspectiva dos dependentes ou, por outra, na ‘neutralidade’ do narrador em terceira pessoa, ele acaba expondo o problema pela ótica do mais fraco. Nos seus romances realistas, a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), ele passa a expor essa mesma situação, contudo, na ótica dos donos do poder, usando a licença poética do memorialismo para encarar o arbitrário com a intimidade de quem se confessa praticante, e já não tem o que temer (p. 161).

Em Iaiá Garcia, a nota histórica pode ser uma espécie de ensaio de aprendizado de classe, que se liga a uma dualidade de funções que é uma condição sem volta. O chefe da camorra também é proprietário, para quem essa ordem de obrigações, como diz o autor, é relativa.

A dinâmica do envolvimento paternalista, segundo ele, mostra ser apenas metade da situação, cujo outro aspecto, ditado pela propriedade, pertence a uma órbita diversa, à qual as razões do dependente não dizem nada, e a que este, além disso, não tem acesso independente, o que consubstancia a fratura social (p.269).

É a partir de Memórias Póstumas que essas contradições viram a forma da nova literatura de Machado. Após fazer a crônica do anacronismo social brasileiro, é a partir da versão do proprietário à brasileira, europeizado e caboclo, cordial à brasileira e liberal à moda européia, filho do iluminismo e escravocrata na terra da palmeira, ele se torna o molde da nova prosa.

Brás Cubas, em suas memórias, é como se fosse o Jorge de Iaiá Garcia, porém ao expressionistamente ao contrário, passando sua vida em retrospectiva, e sem medo de contar suas pusilaminidades. Vende a imagem de um Sterne mas é na verdade um farsante e mostra, sem puder nenhum, a forma como deu cabo de sua vida, tanto exaltando um adultério como mote romântico e suas torpezas, gloriosas frustrações e relações com mulheres ao longo da vida — uma vida inútil, perdida, mas defendida galhardamente até rir do leitor ao gabar-se de não deixar descendência num mundo onde tudo irá para debaixo da terra.

Já a Capitu de Dom Casmurro, também personagem de um livro de memórias (ou seja, Machado abdica da neutralidade do narrador moralista (e ligado á causa dos dependentes) e comportado para mergulhar na mente doentia do proprietário), é Estela ao contrário: ao invés de resignar-se ao limite de sua situação de classe, ela dobra a tudo e a todos em busca de ascensão social. Quando Bentinho tem essa epifania, acusa a esposa de adultério, sendo juiz e advogado de acusação.

Nos dois casos, é como se tivéssemos o mesmo horizonte social do patriarcalismo e do favor, porém, aqui ocorre o que Schwartz entende como “viraviolta”, ou seja, quando Machado sai da ótica do mais fraco para mostrar, num retrato sem retoques, a visão distorcida do Brasil pela visão dos de cima.

Essa é, por último, a grande perplexidade da Comédia Humana de ponta-cabeça nessa viravolta machadiana: livre, o narrador, dono de seus meios e principalmente da tradição, vai reiterar em pensamentos e em conduta os atrasos de nossa formação social, em vez de se superar (2012, p.275). Antes, a simpatia do escritor ia para a heroína injustiçada, e que fazia jus ao formato de folhetim. Do lado dos opressores proprietários, era preciso caracterizar o lado negativo destes. Pois foi por meio dessa progressão lógica livro a livro que, de acordo com Schwartz, deu-se a fórmula que iria caracterizar a obra de Machado e fazer dele um grande escritor.



Referências Bibliográficas


ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Fardo dos Bacharéis. In Revista Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, 19:68-72, dez/1987, p. 69.

DIAS, Maria Odila da Silva. Ideologia Liberal e construção do estado do Brasil. In: Anais do Museu Paulista, São Paulo, XXX:211-325, 1980, p. 217.

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. As Ideias estão no lugar. In; Cadernos debate, São Paulo, 1976.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Prefácio. Jeanne Berrance de Castro - A Milícia Cidadã. 2º edição, São Paulo, Nacional, 1979.
................................................ Do Império à República. In: História da Civilização Brasileira, 4º ed, São Paulo, Difel, 1985, Tomo II. Volume IV.

SCHWARTZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas. Duas Cidades, 1988.

………………………. Martinha versus Lucrécia – ensaios e entrevistas. Companhia das Letras, 2012.

Thursday, November 23, 2017

Balanço Zona Sul


Golden Room do Copacabana Palace, 1950



1. INTRODUÇÃO

A canção brasileira, como lembra José Ramos Tinhorão (1972) tem suas raízes na modinha e no lundu, e viveu uma longa gestação, até deixar suas raízes eminentemente folclóricas até, nos primeiras décadas do século passado, tornar-se um produto de consumo de massas, com o surgimento do compositor profissional. A famosa polêmica do samba “Pelo Telefone” dá conta dessa inevitável transição quando um dos partideiros responsáveis por glosar o tema (que, naquele momento, nos serões dos jovens sambistas da casa da Tia Ciata, não era original, provavelmente de origem remota e apócrifa), Ernesto dos Santos, observando as possibilidades da música, decidiu registrá-la na Biblioteca Nacional, em 1916.

Coincidentemente ou não, naquele mesmo ano, uma famosa revistógrafa, Chiquinha Gonzaga, com um grupo de compositores, fundava a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), com o objetivo de manter uma salvaguarda a respeito da questão de direitos autorais. Naquele tempo, a música da Capital Federal fervilhava nos arredores da Praça Tiradentes, no centro do Rio.

Aquela era a pequena Broadway brasileira. A SBAT, guardadas as devidas proporções, nasceu como uma espécie de Tim Pan Alley, um movimento conjunto de compositores com vistas a dar conta da demanda da produção musical que as peças em cartaz — vivia-se o tempo dos teatros cantados, ou de revista. A partir da atitude pioneira da autora de “O Corta-Jaca” (que, àquela altura, já era francamente plagiada em Portugal e em outros países da Europa), surgiram outras sociedades e editoras musicais.

Nesse mesmo momento, enquanto a produção musical se profissionalizava cada vez mais, buscava-se, a partir do gosto do público, uma forma de criar um tipo de canção que tivesse um gosto mais popular, bem diferente do que era comum nessas revistas: cantigas com ionfluências do norte, na maioria muito esquemáticas, para não dizer simples (ou simplórias demais). Muitos compositores populares, os primitivos, de origem popular, ainda estavam presos à um estilo empolado e parnasiano demais, cheio de palavras raras e hipérbatos: faltava um acento mais popular, um tipo de canção com um tipo de letra que facilmente caísse na “boca do povo” ou, por outra, que ficasse na memória das pessoas; que fosse mais ‘palatável’, digerível.



2. MISTURA E TRIAGEM


Também observava-se uma mudança na forma de se fazer canção. Em O século da Canção, Luiz Tatit (2004) lança mão da teoria da triagem e mistura como formas de explicar a evolução da canção brasileira através dos tempos.

Para ele,o processo de mistura transcende o campo meramente étnico da formação de nossa cultura. O semiólogo e compositor diz que a assimilação é avaliada muitas vezes como caso de enriquecimento cultural. Desse ponto-de-vista, essa mesma assimilação pode ser considerada “positiva” ou, de forma diversa, como causa de estranhamento no sentido de “profanação” de crenças e costumes de grupos.

Ao amalgamar melodia, letra e arranjo instrumental, diz Tatit, a mistura constitui um campo hegemônico característico do mundo simbólico. Porém, ao contrário da assimilação, que é um processo natural e contínuo, há ainda a triagem, que tem caráter de intervenção cultural e de demarcação histórica. Ele explica que, no caso da triagem, denota-se que há consciência na intervenção e, a extração, que se manifesta por uma operação de eliminação e seleção de valores.

Nesse sentido, o autor elabora uma periodização de triagens que ocorreram na nossa música ao longo dos últimos cem anos no Brasil.

A primeira, segundo ele, foi uma triagem de ordem técnica, que delimitou o que poderia ou não ser gravado em disco. Isso excluiria manifestações mais primitivas, como a umbigada e o fandango, por exemplo, por causa de sua percussão, que soaria indistinta no registro sonoro. Nesse período, o compositor popular não tinha uma ambição comercial ao fazer esses registros.

A segunda, já em meados dos anos 20 do século passada, dava passagem ao samba (as técnicas de gravação permitiriam o registro de uma percussão mais presente). Aqui, surgem compositores populares mas de pretensão erudita, como Cândido das neves e Catulo da Paixão Cearense. A música é feita para teatros de revista e era comum a temática da música com temas do norte, como “Chuá Chuá” (Pedro de Sá e Ary Machado) e “Luar do Sertão”, de Catulo. A segunda triagem corresponderia à popularização do samba de carnaval (1917) e do samba-canção (1929).

Ainda nesse período, observa Tatit, ocorre uma mudança da “instabilidade” que estavam associados à canção, a começar pelo problema do estilo ainda pomposo de autores como Catulo e a necessidade da busca de uma fala mais oral, cotidiana (p.98). Mas iremos tratar disso mais adiante.

Na terceira triagem, ocorre a ascensão do samba-canção em detrimento da música de carnaval e a caracterização daquele gênero como música de rádio, com seus componentes sentimentais (ou, na acepção de José Ramos Tinhorão, “sambolero”) e tornou-se, segundo Tatit, o padrão único de criação, não fossem as incursões do baião de Luiz Gonzaga. Talvez por conta desse passionalismo típico, o público mais jovem passou a desgostar desse tipo de criação, e estava mais sintonizado com o jazz de artistas como Stan Kenton e Frank Sinatra (como lemos no capítulo “Os sons que vieram do porão”, do livro Chega de Saudade (CASTRO, 1990)), um tipo de música mais “cerebral” e menos melodramática. Para o autor, o corolário dessa terceira fase é a Bossa Nova, em 1959.

Na quarta triagem temos a continuação da “linha evolutiva” da Bossa Nova desaguando no Tropicalismo como forma de eficaz de mistura e triagem que deram à canção popular brasileira um equilíbrio estético nem sempre presente em outras culturas musicais (TATIT, p.104). Ao mesmo tempo, expôs os limites tênues da criação artística ao mesmo tempo que propôs uma revisão de apreciações estereotipadas e de gênero na música.

Ou, como diz Ruy Castro à guisa de conclusão em A Noite do Meu Bem (2012) (do qual falaremos mais tarde) que o próprio samba-canção, depois que misturou-se com o bolero (contra o qual bateu-se José Tinhorão como um tipo arte decadente) acabou incorporada á própria MPB em composições célebres da dupla João Bosco-Aldir Blanc, como “Dois Prá Lá, dois Prá Cá” ou a versão de Elis Regina, já nos anos 70, de “Na Batucada da Vida”, de Ary Barroso e Luiz Peixoto.

O tropicalismo finalmente também seria responsável, de acordo com Luiz Tatit, pela incorporação do rock na MPB e, nos anos 80, do percurso inverso, com a MPB sendo adotada por músicos de rock, cujo caso mais notável é o de Cazuza como cancionista original, fazendo a síntese entre a temática sentimental atávica do samba-canção com a linguagem jovem do rock. Essa quarta triagem contempla o surgimento da música romântica “brega” (embora a expressão seja controversa e rendeu inclusive um extenso livro-ensaio, Eu Não sou Cachorro Não, de Paulo César de Araújo (2002) e, por fim, na década de 90, o sertanejo pop e o pagode.

É importante notar que, se nas primeiras triagens, o mercado do disco já se constituía como pano de fundo nesses processos de extração, observa Tatit, na quarta, já em tempos de uma indústria cultural plenamente implantada no Brasil, ele escolha o consumo como critério principal para a caracterização dos seus modelos (p.107). Nessa fase, os sujeitos da quarta triagem são os representantes das empresas de mídia, que responderiam pelo perfil artístico dos grupos e pelos acordos com os veículos de divulgação. E o auge do jabá no rádio.


3. NASCE O SAMBA-CANÇÃO

No livro Pequena História da Música Popular Brasileira, José Ramos Tinhorão dedica um magro capítulo dedicado ao samba-canção. Difícil saber ao certo quais eram as intenções do autor, já que ele dedica vários capítulos a outros estilos que marcaram a nossa música, como o baião. Sobre o samba-canção, ele estabelece o gênero originalmente como samba de meio da ano, já que esse, mais lento e de temática lírico-amorosa se diferenciava do samba carnavalesco, esse que, por sua vez, popularizou-se a partir do sucesso e polêmica de "Pelo Telefone", de 1917(talvez a polêmica mais conhecida da história da música brasileira).

Para Tinhorão, o samba-canção tem origem no teatro de revista. Assim como o samba de carnaval tem "Pelo Telefone" como sua certidão de nascimento, o de "meio de ano" nasce através da popularização de "Ai Iôiô, de Henrique Voegler.

Caetano Veloso tem uma definição particular do gênero, já em media res, ou seja, na sua fase anos 40 e 50:

O que se chama samba-canção - e que já foi apelidado meio pejorativamente de "sambolero" - é uma espécie de balada lenta em que o ritmo do samba só é perceptível para um ouvido brasileiro treinado para reconhecê-lo em todas as suas variações de andamento e acentuação. Essa modalidade de samba vinha se desenvolvendo desde Noel Rosa - inclusive com interpretações ostensivamente cool de Mário Reis, um cantor de voz pequena e estilo desdramatizado - e chegou a se constituir em parte predominante de uma fase da produção de Ary Barroso e Herivelto Martins, além do Caymmi dos anos 40. Basta ouvir as gravações de Sílvio Caldas de "Maria" ou "Tu", de Ary Barroso, ou "Carinhoso" de Pixinguinha por Orlando Silva - todas dos anos 30 - para saber que o samba domado e refinado dos estúdios e das partituras havia muito se tornara o gênero dominante, sendo os registros de tratamento mais percussivo de samba "de rua" ou de terreiro antes a exceção do que a regra (1998, p.29).


Como no caso de "Pelo Telefone", "Ao Ioiô" também tem uma definição controversa. Luiz Tatit, em Século da Canção, entende que nesse momento, samba-canção se definia ao gradativamente livrar-se tanto do atavismo amaxixado com que essas canções, que popularizavam-se a partir dos espetáculos da Praça Tiradentes, no centro do rio de Janeiro quanto à poética imanente desse tipo de canção.

Letras de espetáculos de revista em geral, por influência de poetas de origem humilde e, por isso mesmo, procuravam compensar essa posição social compondo letras com traços eruditos. Um exemplo esse perfil de cancionista do começo do século XX é Catulo da Paixão Cearense e Cândido Costa.

Costa foi comissionado justamente para pôr letra na música de Vogeler. Segundo Tatit, o maestro rejeitou a primeira versão, achando, com efeito, demasiadamente 'catulista'. Uma segunda versão, criada por outro revistógrafo, Freire Júnior, também foi rejeitada, a despeito de ter sido levada ao disco por Francisco Alves em 1928.

A versão definitiva seria a de Luiz Peixoto. segundo Tatit, Peixoto soube captar o que o gênero precisava: maior espontaneidade, algo que a canção brasileira ainda não tinha, ou então seguia exemplos esquemáticos ainda muito limitados, como nos sambas de Sinhô.

É possível que o grande salto do gênero se daria com o advento do rádio comercial, em 1930, e o surgimento de compositores que captaram o espírito do samba-canção, como é o caso de Noel Rosa, que o levou a um tipo de sofisticação nunca antes visto.

Como diz Tinhorão, o samba-canção passou a representar uma média do gosto nacional, desde o tempo das modinhas (p.159). Também iria revelar-se um sucesso pois, como música para se ouvir e cantar, vinha atender a uma exigência do lazer das massas urbanas, junto a um público sem maiores perspectivas de diversão que os programas de rádio.



4. O AUGE

Com o rádio, surgiram grandes cantores que personificavam esse gênero. se formos pensar em uma periodização do samba-canção, poderíamos dizer que dos anos 30 até o fim dos anos 40 foi a era desses cantores: Francisco Alves, Sílvio Caldas e Orlando Silva, e cantoras como Aracy Côrtes e Dalva de Oliveira. Estes se singularizavam pela forte emissão de voz, uso de vibratos e, na maioria dos casos, dedicavam-se mais ao samba-canção do que o carnavalesco.

Por conta desse tipo de 'personificação' o gênero ficou marcado pela aura de música melodramática, interpretando canções de dor-de-cotovelo. No livro A Noite do Meu Bem, Ruy Castro aponta para uma segunda fase do samba-canção, que de certa forma, ligaria o antigo samba-canção à Bossa Nova.

Esse tipo de 'periodização' é um tanto complicada de se conceber, porque o samba-canção ficou marcado nas ondas do rádio por cantores como Caldas e Chico Alves, além de Dalva que, por sua vez, era a verdadeira síntese, porquanto sua vida pessoal acabaria amalgamando-se com a artística, dado ao seu tempestuoso relacionamento com Herivelto Martins e toda a reprecussão da separação dos dois.

Ao mesmo tempo, teríamos uma vertente de dor-de-cotovelo que foi delimitada de forma exemplar por Lupicínio Rodrigues. Este, provavelmente inspirado na lírica do tango argentino, se notabilizaria por ser quase um gênero particular dentro do samba-canção já que, de certa forma, sua poética é quase toda dedicada à chamada dor-de-cotovelo.

Quando escreveu Chega de Saudade, Ruy Castro pontificava através de compositores como Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, que a Bossa Nova, de certa forma, havia surgido no panorama da música brasileira, no final dos anos 50 não apenas para modernizar harmonicamente o samba, mas para dar um caráter menos pessimista para o que era o samba-canção naquele período.

Assim, como que para demarcar um estilo musical que iria ganhar o mundo e influenciar até o jazz numa época em que estava relegada ao esquecimento, Castro teve uma postura política ao defender a Bossa Nova. Quase duas décadas depois, ele iria mergulhar justamente nas águas noturnas do samba-canção. No entanto, ao escrever um livro-reportagem sobre o assunto, ele estaria num impasse: afinal de contas, ele teria que abarcar toda a história do samba-canção, inclusive aquilo que mais o escandalizava, que era a dor-de-cotovelo.

Porém, num recorte mais cinematográfico, Ruy Castro conta uma história curiosa. Exatamente no momento em que Tinhorão releva o samba-canção ao transformar-se, segundo ele, em sambolero, atingindo, de acordo com o jornalista, um rebaixamento (grifo nosso) de níveis insuportáveis (p.159), o autor de A Noite do Meu Bem começa a sua narrativa, a partir de um ponto singular, na verdade, uma nota histórica.


5. O SAMBA-CANÇÃO: MISTURA E TRIAGEM

Em 1945, o governo Dutra fecha os cassinos. Se isso não foi um grande problema para os capitalistas que viviam do pano verde, toda a trupe de maitres e músicos súbito viu-se desempregada. A partir da inauguração do Golden Room do Copacabana Palace, toda uma plêidade de artistas descobriu a zona sul do Rio.

Em poucos anos, o bairro de Copacabana viraria o esteio dessa nova geração de músicos que, mesmo despontando no disco e no rádio, não tinham exatamente interesse em obterem os holofotes dos cantores do rádio. E, ao contrário do que afirma Tinhorão, a música que nasceria desse ambiente seria cada vez mais sofisticada e camerística, como é o caso de compositores como João Donato, Antônio Maria, Paulo Soledade, Fernando Lobo e cantores como Dolores Duran, Dóris Monteiro e Lúcio Alves, Mary Gonçalves e Zezé Gonzaga.

Por uma ‘reperiodização’ do samba-canção, a partir do livro de Ruy Castro, que faz uma sutil ligação com Chega de Saudade mas ao fracionar a parte "sadia" do que era produzido nos inferninhos da zona sul. Um elo de ligação entre a antiga e a nova geração poderia ser sintetizada num nome como Johnny Alf.

Pianista jovem e compositor que flertava com o jazz, Alf apareceu no clube Sinatra-Farney e foi descoberto por César de Alencar (o mesmo que, nessa mesma época, para referir-se às fãs dos artistas da rádio Nacional de “macacas de auditório”). Como Tom Jobim, ele começou como músico de inferninhos até que, depois de gravar alguns discos (e ser gravado), no auge da Bossa Nova, da qual ele seria um dos pais, Johnny migrou para São Paulo, onde foi inaugurar a Baiúca, radicando-se lá até sua morte, em 2010.

Alf seria o grande mistério do samba-canção. Mesmo sendo um compositor afinado com a Bossa Nova, a maioria dos seus grandes sucessos, como "Eu e a Brisa", "Escuta", "O Que é Amar" são rigorosamente sambas-canção. Como poucos, ele sintetizaria o tipo de musica produzida nos porões enfumaçados dos bares da Zona Sul. Introduziria a lírica do "amor, o sorriso e a flor" em canções como "Céu e Mar" e "Rapaz de Bem" sem, no entanto, poder ser considerado o momento da ruptura do samba-canção com a Bossa Nova.

Ainda haveria, como podemos ler em A Noite do Meu Bem, uma longa gestação que correspondeu ao auge dos bares chiques de Copacabana. Pensando numa reperiodização, a partir de Ruy Castro (que, no entanto, não concebeu essa tal reperiodização), podemos dizer que, por coincidência, essa nova vertente 'intimista' do samba-canção tipicamente carioca começa quando Dick Farney lança "Copacabana", de Joao de Barro e Alberto Ribeiro.

Como diz Caetano Veloso, em Verdade Tropical ao analisar essa mudança formal nos estatutos da nossa música: “Nos anos 40, Dick Farney e Lúcio Alves, homens muito mais ricos e mais cultos do que Orlando, adaptaram conscientemente procedimentos de Bing Crosby (e, a essa altura, de Sinatra) à canção brasileira”. (p.196).

Apesar de compositores mais estritamente ligados ao mundo do carnaval, Braguinha e seu parceiro foram felizes em vislumbrar, em letra e música, tudo um novo universo que se descortinava a partir dali: uma descrição ensolarada do bairro que agora iria ditar, de certa forma, uma nova moda musical.
Ainda Caetano, a respeito do samba-canção:

[o gênero] deu sentido ás buscas de músicos talentosos que, desde os anos 40, vinham tentando uma modernização através da imitação da música americana - Dick Farney, Lúcio Alves, Johnny Alf, o conjunto vocal Os Cariocas —, revalorizando a qualidade de suas criações e a legitimidade de suas pretensões (mas também driblando-os a todos com uma demonstração de domínio dos procedimentos do cool jazz, então a ponta-de-lança da invenção nos Estados Unidos, dos quais ele fazia um uso que lhe permitiu melhor religar-se ao que sabia ser grande na tradição brasileira: o canto de Orlando Silva e Ciro Monteiro, a composição de Ary Barroso e Dorival Caymmi, de Wilson Batista e Geraldo Pereira, as iluminações de Assis Valente, em suma, todo um mundo de que aqueles modernizadores se queriam desmembrar em seu apego a estilos americanos já meio envelhecidos); marcou, assim, uma posição em face da feitura e fruição de música popular no Brasil que sugeria programas para o futuro e punha o passado em nova perspectiva — o que chamou a atenção de músicos eruditos, poetas de vanguarda e mestres de bateria de escolas de samba (p.28)

Assim como Castro defendia a Bossa Nova contra o que era o pesadelo do samba-canção, agora era esse gênero que despontava mas tendo como o seu antípoda o baião, outro gênero (esse sim amplamente discutido por Tinhorão em seu livro sobre a MPB) que fez enorme sucesso naquele período. Ou seja, de certa forma, a música de Luiz Gonzaga era o inimigo manifesto do samba-canção tipo zona sul, e que grassava de forma impressionante pelas ondas do rádio. Tanto que cantores como Dóris Monteiro e Nora Ney evitavam gravar qualquer coisa do tipo.

É essa a história que Ruy Castro delineia em A Noite do Meu Bem: como aquele tipo de música, produzida entre 1946 (com "Copacabana") (pensando na "periodização") até o que seria o marco zero da Bossa Nova, o 78 rotações "Chega de Saudade/Bim Bom", de João Gilberto, gravado a duras penas e contra a vontade do então produtor artístico da gravadora Odeon, Aloísio de Oliveira.

Antes, porém, além do universo de "A Noite do Meu Bem", ainda temos a temática da dor-de-cotovelo (aliás, personificada pela própria autora, Dolores Duran, ou tra cancionista que misturou vida artística de pessoal), já teríamos Tom Jobim em parceria com Bily Blanco ou Newton Mendonça, produzindo suas próprias canções ainda na fase do samba-canção.


6. ORFEU DA CONCEIÇÃO: O SAMBA-CANÇÃO NO LIMIAR DA BOSSA NOVA



Dois momentos que antecederam "Chega de Saudade" protagonizados por Jobim já prenunciavam, de forma sintética, todo o imaginário zona sul, com suas garçonnieres e desencontros amorosos, o que se veria na Bossa Nova.

Um é o famoso encontro do compositor com o poeta Vinícius de Moraes, na produção da peça Orfeu da Conceição, em 1956 e o lançamento de "Foi a Noite", de Jobim, com Sílvia Telles. Nesses dois momentos, já era possível perceber que havia algo de harmonicamente diverso daquilo que se costumava associar ao samba-canção, mas que não apontava para o que viria a ser Bossa Nova. De qualquer forma, essas canções seriam incorporadas posteriormente à maneira de tocar típica da Bossa Nova, o que causa o estranhamento ao ouvirmos a versão original de "Se Todos Fossem Iguais a Você".

Ao que Ruy Castro simbolicamente sugere, o 'fim' do samba-canção deu-se primeiro com o ocaso da era de ouro do rádio, quando muitos artistas, como Linda Batista ou Dalva de Oliveira, mesmo mantendo grande prestígio já eram consideradas ‘fora de moda’ pelo gosto do público, que não se interessava mais naquele estilo grandilouquente e samboleirado (como diz Tinhorão) que, mesmo assim, ainda era recordista de vendas e público.

A própria Dalva enfrentaria uma longa decadência como artista, nas décadas seguintes, mas ainda parecia ter um enorme público cativo quando gravou seu derradeiro sucesso, a marcha-rancho “Bandeira Branca”, em 1970.

Ao mesmo tempo do ponto-de-vista do samba-canção das boates da Zona Sul passou pela longa decadência dessas mesmas casas de espetáculo, que foram drasticamente mudando para um tipo de frequentador bem menos aquinhoado, diferente do que ocorria em casas como o Golden Room ou o Vogue que, no auge, tiveram cartazes de nível internacional, como Juliette Greco ou Gregório Barrios (no começo, boates como o Golden Room só admitiam artistas de renome internacional. Com o tempo, surgiriam os “furões”, cantores brasileiros “modernos”, e que mudariam os rumos do “fazer” e do “cantar” samba-canção, de forma moderna).

Essas boates tiveram uma sobrevida inusitada com o surgimento da Bossa Nova. Muitos locais, como o Beco das Garrafas, no limite do Leme com Copacabana, viraram o esteio de jovens grupos de samba-jazz instrumental, como o Sérgio Mendes do começo de carreira, bem como Wilson Simonal ou Elis Regina. Em pouco tempo, a despeito de ter nascido no Rio, a Bossa iria mudar-se para São Paulo, onde conquistaria espaço na televisão, na medida em que uma continuação do que era a Bossa Nova transformava-se em música de festival.

Outro fator de que segundo Castro foi o golpe mortal nas boates Zona Sul foi a transferência da Capital Federal para Brasília, afastando todo aquele imenso público endinheirado que era comensal do poder.

Quando ocorreu o famoso Encontro, com Vinícius de Moraes, os Cariocas, Tom João Gilberto, quando 'nasce' Garota de Ipanema", por exemplo, o Au Bon Gourmet já estava no terceiro proprietário, e tentava conquistar um novo público frequentador. Mas como salient Castro, até o fim da década de 60, com o surgimento da Jovem Guarda e das boates de som mecânico, esse ouvinte por ora já via definitivamente aquele ambiente que florescera nos anos 40 e 50 como coisa do passado.

Resumindo: o rock, a fundação de Brasília e o som mecânico solaparam de forma incontornável o mundo boêmio de onde florescera aquela derradeira vertente do samba-canção que, diferente do que era no começo, nos anos 30, já havia incorporado muito dos arranjos sofisticados de maestros como Gordon Jenkins (que trabalhou com Sinatra e Nat “King” Cole, este, um entusiasta do samba-canção, e que chegou a gravar "Ninguém Me Ama" no Brasil, com Sílvia Telles). Isso é notável no disco "Foi a Noite", 78 rotações que foi o carro-chefe do disco de estreia de Silvinha Telles, Carícia, de 1957.

Sílvia foi outro exemplo de cantora que viveu e transitou entre os dois mundos do samba-canção e da Bossa Nova e seus primeiros discos mostram o impasse em que se encontrava a canção brasileira naquele momento. Intérpretes de samba-canção cantavam moderno, em arranjos americanizados, algo que Tinhorão, nacionalista, sem esconder o seu desgosto com essa hibridização (que ele entendia como deturpação) do gênero.

Artistas como Sílvia e Lúcio Alves, por exemplo, como no caso manifesto de Dóris Monteiro, que foi a transição do rádio para a música mais intimista, ja prenunciando a Bossa Nova, não eram cantores de multidões, como no tempo de Vicente Celestino ou Francisco Alves (com exceção de Sílvio Caldas, que acabou adaptando-se ao mundo das boates cariocas, antes de aposentar-se pela enésima vez, no fim dos anos 50) e muito menos grandes vendedores de discos, isso num país que estava ainda em vias de vislumbrar uma indústria cultural massificada, mas apontavam para um novo caminho estético.

Muitos ficaram na fronteira entre samba-canção e Bossa Nova sem, no entanto, abrir-se além, muito embora plenamente identificados, mas como ídolos que serviram mais de padrinhos e precursores, como no caso de Dick Farney. No fim dos anos 40, ele era o sinônimo de moderno, se pensarmos em termos de 'linha evolutiva' da MPB (como preconizava Décio Pignatari no Balanço da Bossa), ja muito além do samba-canção entronizado numa Aracy de Almeida interpretando Noel Rosa, talvez o paradigma mais duradouro do que era o samba-canção até aquele momento.

Essa modernização passava pela interpretação, mais influenciada por crooners americanos, como Dick Haymes ou Frank Sinatra, Farney inclusive tentou carreira nos Estados Unidos mas optou por retornar ao Brasil, em fins dos anos 40. Do pono-de-vista composicional, havia músicos 'modernos', como Custodio Mesquita, que tinha um acento 'americanizado' em seus foxes (Mesquita tinha, mesmo em tempo de samba, o cacoete do fox-canção) , como "Nada Além" ou "Mulher", mas ainda era cantado de forma antiga, na interpretação de um Sílvio Cadas ou um Orlando Silva.

A mudança deu-se com a nova forma cool de cantar, sem vibratos ou arroubos operísticos, e que foi introduzido por Farney, Nora Ney e Doris Monteiro. Aliás, intérpretes que preservavam essa postura cool negando-se a gravar samba de carnaval (já em fase de declínio, se compararmos com os tempos de Lamartine Babo) ou baião, gêneros que uma Dalva de Oliveira cantava.

Diferente de Dalva e Linda Batista, como no caso de Sílvia Telles, mais na fronteira do samba-canção com a Bossa Nova, surgiria Maysa Matarazzo, depois simplesmente Maysa. Seguindo o estilo de Nora Ney e de Dolores Duran, que desaparece em 1959, ele firma-se como um expoente do gênero, tanto pelo fato de, como Dolores, cantar em outras línguas quanto por ser cantora e compositora.

Essa postura cool era a nova forma de fazer canção, 'tanto' que Dick Farney 'suavizou' Caymmi em "Marina", que virou uma signature song bem ao seu estilo, da mesma forma com "Alguém Como Tu" (de José Maria de Abreu) ou "Outra Vez" (de Tom Jobim), tema de um Jobim pré-Bossa Nova, e que seria reinterpetada por João Gilberto no seu segundo disco e na famosa apresentação no Carnegie Hall, em 1962.


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Observando-se assim, teríamos aqui, a partir do livro de Ruy Castro, A Noite do Meu Bem, a possibilidade de vislumbrar uma crônica de costumes cuja trilha sonora foi o samba-canção já num processo de mistura e a triagem estética que concebeu uma variante mais cool do samba-canção que, noves fora, é o cerne do livro. Ruy castro não tinha como não passar a limpo toda uma geração e tendências e vertentes dentro do próprio gênero mas, sem dúvida, o seu foco está justamente, mesmo não querendo realizar uma tese, em analisar essa vertente que Rocha Brito analisa em Balanço da Bossa (CAMPOS, 1974): o samba-canção da zona sul e a forma como ele iria influenciar a Bossa Nova, de certa forma “positivamente” e “negativamente”.

Positivamente porque, como ele mesmo explica, o bebop influenciaria aqueles intérpretes e compositores nessa fase. Pianista, além de cantor, Dick Farney, segundo Rocha, se designava um cantor de bebop. Mesmo uma década antes da Bossa Nova, ele já parecia “moderno” demais para o que se produzia nos anos 40 (BRITTO apud CAMPOS, p. 18). Como dissemos acima, sues leituras de canções como “Marina” eram, antes de tudo, jazz como samba-canção. Como lemos em Chega de Saudade, mesmo que inicialmente Ruy Castro inicialmente ‘renegasse’ o samba-canção em favor da Bossa Nova, era latente a forma como esta sairia daquela.

Negativamente porque, como muitos músicos disseram, o samba-canção, nos estertores dos anos 50, já havia chegado a um limite onde uma nova música se insinuava e não era naquela moldura de gênero que ela poderia florescer. Muitos compositores, como Bôscoli e Menescal, ao defender a nova música taxavam o samba-canção de quadrado.

Outro fator que não pode ser deixado de lado: muito da lírica, mesmo dos samba-canções “modernos” tinham uma lírica que parecia agradar mais a ouvintes adultos, que tinham condições de comprar long-plays de pés de palito e que transformaram Copacabana em seu reduto carioca justamente porque ela era o recanto da boemia bem vestida. Enfim, um universo boêmio, de casais já na faixa de trinta anos e que necessariamente não eram oficialmente casais, e que saíam das boates direto para garçonieres. Daí decorre tanto o fato de que a zona sul, naquele tempo, tinha essa mística (Ruy Castro, ao comentar “Teresa da Praia” didaticamente pontifica que a letra se justificava, já que o Leblon, que aparece na letra era, naquelas priscas eras, o paraíso do “sexo á milanesa”.

Em 1956, quando Jobim e Vinícius encontram-se “oficialmente” no mítico bar Vilarino (bar que existe até hoje, na rua Calógeras, bairro do Castelo, centro do Rio) e iniciam uma parceria histórica, o samba-canção resistia nesse impasse: havia um elemento modernizante na nova produção mas ela, ao mesmo tempo, havia atingido um limite em termos de gosto de público. O movimento (como quer Tinhorão, ao invés de caracterizá-lo como gênero) Bossa Nova acabou sendo a síntese dessa dialética estética, onde a temática iria mudar — visando propositalmente ou não, mas composto na perspectiva de compositores jovens para um público idem daquela ambiência noturna para o dia, o mar, enfim, uma mudança de imaginários.

A Bossa vingaria como uma substituta ao samba-canção com vias, dentro da perspectiva teórica de Augusto de Campos, de uma linha evolutiva que iria culminar no caldeirão cultural do Tropicalismo? É uma polêmica que, como citamos no começo do artigo, foi pontificada por José Tinhorão: num ensaio de estilo sociológico mas, este sim, segundo Caetano Veloso em Verdade Tropical (1997), algo como um marxismo de pacotilha em que a Bossa Nova aparecia, segundo ele, como submissão cultural ao modelo americano e, por outro, como apropriação indébita
da cultura popular pela classe média.

Era a defesa articulada do ideário nacional-popular e que permeava todos os julgamentos dos esquerdistas brasileiros. Veloso tomou as dores da Bossa Nova e escreveu um artigo questionando as posições de Tinhorão que, ao mesmo tempo em que parecia negligenciar todo um manancial informativo e histórico por conta de um desdém tanto pelo samba-canção (que ele, assim como Adorno investia em Schönberg com relação ao seu dodecafonismo) acreditava que o verdadeiro samba-canção resistia apenas nas composições hebdomanárias de sambistas como Nelson Cavaquinho e Cartola, que só iriam ao disco nos anos 70, já no fim da vida, quando o próprio samba-canção havia se desvanecido na MPB e a sua música restava mais como um atavismo do próprio samba (pela forma como era tocado e interpretado) do que especificamente o que seria o samba-canção “verdadeiro”.

Aliás, se o próprio João Gilberto falasse sobre essa polêmica (ninguém nunca perguntará e ele nunca responderá), ele responderia tocando as músicas do seu primeiro disco, onde desfilam desde coisas “modernas” como as composições de Menescal e Bôscoli como “Lobo Bobo” quanto coisas realmente antigas, como “Aos Pés da Cruz” (samba-canção tradicional e grande sucesso na voz de um ídolo dele, Orlando Silva, revisitado com o “violão gago” que Tinhorão chama à forma do músico baiano de tocar ‘diferente’ ou “É Luxo Só” (Ary Barroso), que é puro samba.





FONTES PESQUISADAS

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