Thursday, February 08, 2018

A tragédia grega e o reconhecimento nas Electras



Irene Papas interpretando Electra, no filme de Mihalis Kakogiannis


O objetivo deste trabalho é cotejar as diferentes versões do mito de Electra nos olhares diversos dos três tregediógrafos que nos legaram as respectivas peças, a saber: Ésquilo (Coéforas), Eurípedes (Electra) e Sófocles (idem).

A respeito da tragédia, como observa Lígia Militz da Costa e Maria Rítzel Remédios (1988) drama teve origem na Grécia e caracteriza-se por apoiar-se na identificação que se estabelece entre o público espectador e o problema apresentado na ação encenada.

Outra característica fundamental da tragédia é a ambiguidade resultante entre o ethos e o daimon, porquanto nesse gênero, o herói trágico quer guiar-se por seu próprio caráter mas está subordinado ao gênio mau (deimon).

Na Poética, Aristóteles sistematizou o gênero dramático. Aqui, o estagirita define a arte dramática como imitação e a tragédia como a mímeses de uma ação de caráter elevado (...) suscitando o terror e a piedade (1966, p. 74).

Desta forma, a tragédia é, a um só tempo, formada por diversas partes 'qualitativas' que identificam-se com os traços distintivos da mímese trágica: os meios (a fala e a melopeia), modos (o espetáculo) e o objeto (o mito, a fala e o pensamento). A tragédia não pode existir sem a ação, sem o mito, portanto. E duas partes que integram o mito — a peripécia e o reconhecimento, são admitidos como meios de fascinação na tragédia (1988, p.10).

Ora, de acordo com Aristóteles, a unicidade da ação e do mito depende com efeito da organização interna das partes diversas que o compõem, que são arranjadas conforme o critério de verossimilhança. A ação imitada deve formar um todo uno e coeso a ponto de, havendo deslocamento ou supressão de qualquer um de seus componentes, [é possível que haja] alteração ou confusão da ordem no todo (1988, p.10).

Na Poética, Aristóteles também dá atenção à caracterização do herói trágico. Segundo ele, este mostra-se vinculado aos parâmetros de felicidade e infelicidade, virtude e vício, bondade e mediocridade. O ideal de herói representado é o que está numa ordem intermediária, goza de reputação e fortuna, mas pode cair no erro quando impulsionado pela desdita (op. cit, p.10).


O Reconhecimento

As três partes do mito, segundo Lígia Militz (1992, p.24), peripécia, reconhecimento e catástrofe, são definidas por Aristóteles. Enquanto a primeira é uma espécie de refluxo da narrativa (porém dentro dos critérios de verossimilhança e da necessidade), a segunda é a passagem do não-conhecimento ao conhecimento, ação que ocorre com o fim de revelar uma aliança ou hostilidade entre personagens do drama, ação que, de acordo com a autora, culmina num estado de felicidade ou infelicidade (p.25).

Para Militz segundo Aristóteles, o reconhecimento que o corre junto com a peripécia é o que determina, a partir do conjunto da forma, os sentimentos de terror ou piedade (p.26). Por fim, diz Militz, a par de outras formas de reconhecimento, temos a catástrofe, como ação que resulta em destruição ou dor, corolário violento, a exemplo das mortes ocorridas em cena (1992, 26). Já Ribeiro (2010) citando Elizabeth Belfiore, explica que o reconhecimento "deve resultar numa ação que muda a direção da peça e contribui para o seu movimento contínuo (RIBEIRO, p. 252).

Em Ésquilo (Coéforas, 458 a.C), é Orestes quem primeiro reconhece Electra e logo é reconhecido. Em Eurípedes (Electra, 415 a.C) ele a reconhece, mas joga com a possibilidade de revelar-se. Já em Sófocles (Electra, 415 a.C), o reconhecimento ocorre quando um velho criado nota uma cicatriz que remete a um antigo episódio familiar de ambos.

Ribeiro cita Aristóteles para classificar os respectivos reconhecimentos em Sófocles e Eurípedes os mais comuns e menos artísticos. Segundo ela, o estagirita prefere o modelo concebido por Ésquilo, segundo o autor, de caráter silogístico e exemplar, ao contrário de outros expedientes considerados mais comuns na elaboração do reconhecimento.

Entende-se por herói trágico o que, consciente ou inconscientemente, transgride uma lei aceita pela comunidade e sancionada pelos deuses (1988, p.20). O herói trágico deve pertencer à aristocracia ou ser filho de um rei, por exemplo. Contudo, o que notabiliza o seu caráter trágico é a sua atuação na desgraça, no caminho entre a falha trágica e a punição.

No mito dos Atridas, tanto Electra quanto Orestes são aristocratas, transgridem as leis e cometem o crime (assassinato de Clitemnestra). A solução final do filho de Agamênon passa por sua irmã que, sozinha, não seria capaz de efetuar a vingança. Porém, o plano passa primeiramente pelo reconhecimento de ambos, que ocorre em cada uma das três peças analisadas — em Ésquilo, Sófocles e Eurípedes.



Ésquilo


Nas Coéforas, Orestes reconhece Electra quando ouve uma das suplicantes diante do túmulo dizer: "como pronunciar palavras propícias?". Como Ésquilo não menciona outra irmã (Crisótemis) e seu nome não é falado, ele a reconhece pelo discurso dela.

Oculto, ele vê que ela reconhece traços de Orestes nas libações no túmulo de Agamênon. A mecha de cabelo remeteria diretamente ao filho do Atrida, cuja relíquia só poderia pertencer ao seu irmão.

A cena, segundo Ribeiro, deve ser observada pelo fato de que ela não ocorre em qualquer lugar, ocorre diante do mausoléu do heroi grego e num momento extremo de súplica por parte de Electra que, naquele momento, vê signos de que suas preces foram atendidas.

A similitude das pegadas dos irmãos, por sua vez, de acordo com Jacques Jouanna (apud RIBEIRO, p.256), pode remeter a um tipo de reconhecimento análogo, que ocorre no Livro IV da Odisseia, quando Helena nota semelhança entre Telêmaco e Ulisses, tanto na forma dos pés quanto nacor dos cabelos. Segundo ele, Ésquilo não estaria lançando mão de uma ideia diversa ao usar esse expediente.

"A forma dos pés era uma forma pelo menos igual aos outros para discernir a semelhança física entre membros da mesma família. Por conta disso, o autor entende que o reconhecimento pelo formato dos membros, comum no período homérico, ainda seria válido no clássico (op. cit, p. 256).

Em seguida, ocorre o que seria a segunda etapa do reconhecimento, que é a peça de roupa. É nesse ponto, como observa Ribeiro, que Aristóteles entende o silogismo na forma como Ésquilo resolve o reconhecimento: alguém chegou que me é semelhante; mas ninguém se assemelha a mim a não ser Orestes; logo, quem veio foi Orestes (Poética, 1455a 5).

Sófocles


Na versão sofocleana, Orestes (junto com seu preceptor) já está em Argos e tem todo o plano de vingança decidido: carrega uma urna, como forma de entrar no palácio dos Atridas.

Ao chegar lá, reconhece Electra como uma suplicante mas precisa ter certeza de que é ela. O preceptor quer que ele apresse-se em depor as oferendas no mausoléu do pai. Ou seja, não poderia evitar de contar de sua morte a ela, que sofre seu pathos por quase toda a peça. Ribeiro salienta que, mesmo que o espectador saiba da trama antes que ela descubra, não furta-se a compadecer-se do sofrimento da heroína (RIBEIRO, p.257).

Aristóteles (XIV, 1453b) observa que o mito deve ser composto de tal maneira que, quem ouvir as coisas que vão acontecendo, mesmo que nada veja, só pelos sucessos trema e se apiede, como experimentará quem ouça contar a história de Édipo. Querer produzir essas emoções só pelo espetáculo é processo alheio à arte e que mais depende da coregia.

Em Electra, o reconhecimento no entanto dá-se através de Crosótemis, que nota as libações no túmulo de Agamêmon. Sua certeza é a de que cacho de cabelos só pode ser de Orestes.

Electra, que já ouvira a narrativa da "morte" do irmão, por piedade, quer acreditar que foram apenas relíquias deixadas pelo preceptor. Dado o divertido engano, ela não se dá conta que repudia a prova fatal da presença do filho de Agamênon ao mesmo tempo em que segura a urna com a prova falsa. Ao mesmo tempo, Orestes tem certeza de que está diante da irmã ("Tua mãe não te amava como eu", etc.) embora possa ser difícil de acreditar, ao vê-la na condição em que se encontra, mais velha e em andrajos.

Electra acredita aparentemente quando Orestes se apresenta. Contudo, Sófocles usa um outro sinal — um anel que, segundo ribeiro, serve mais como reforço do que prova cabal de identidade (p.258). Se compararmos com Ésquilo, os signos no mausoléu (como o cacho) e o reconhecimento de Crisótemis são episódios 'menores' ou secundários, com relação às Coéforas.


Eurípedes



Na versão de Eurípedes, encontramos Electra em “núpcias hórridas” com um campônio, solução salomônica para que Egisto enfraquecesse a prole de Clitemnestra e tirasse de Electra o status de cidadã, e assim refreasse seus temores contra a possibilidade de que ela venha dar a luz a um nobre que possa enfim fatalmente vingá-lo. Ao encontrá-la, Orestes fica chocado em ver a irmã morando numa choupana e carregando água num vaso. Como percebe Ribeiro, Electra sofre um duro teste e o reconhecimento é protelado ao máximo: se ela fica sabendo que o irmão está vivo, tem a desvantagem de ter o reconhecimento postergado (p. 262).

Ou seja, se em Sófocles temos Electra sofrendo com a certeza da perda do irmão, em Eurípedes, como diz a autora, posterga o reconhecimento por parte dela, fazendo com que surjam diversas oportunidades propícias para tal. E quando ele atinge o ponto crucial, “deixa a nossa perspectiva frustrada” (idem, ibidem). E de forma diversa da versão sofocleana, Eurípedes faz com que o “velho” amigo da família seja o algoz da informação de que houve libações no mausoléu de Agamênon — e não Crisótemis, que não aparece nesta versão.

Contudo, ao lhe ser revelada a efeméride, ela descarta as pistas uma a uma: um nobre como Orestes não iria chegar às escondidas, e os signos encontrados no túmulo não possuem qualquer prova cabal de que são dele, fazendo aqui o intertexto com Ésquilo. No fim, é o velho que o ‘reconhece’ para ela, mostrando o corte no rosto de Orestes (“repara nele: tem o que mais queres”). Porém, ela só esmorece após o reconhecimento definitivo.

Pietro Pucci, segundo Ribeiro. Pare ele, Eurípedes está lidando com um tema mais caro a ela do que a Ésquilo — a relação entre verdade e evidência: “ela já está certa por algum padrão de análise racional de evidência, e já está errada. Eurípedes aqui reflete seu tema familiar, a impotência da razão humana” (idem). Por fim, Gilberte Ronnett (apud RIBEIRO) entende que os acréscimos esquilanos só podem ser entendidos como forma de o poeta equiparar a sua peça à clássica Electra e atender aos convencionalismos das cenas de reconhecimento (p. 263). porém, ao contrário de Sófocles e Ésquilo, aqui isso ocorre à revelia de Orestes.


Conclusões


Márcia Cristina observa, no entanto, que a etapa do reconhecimento nas Coéforas é peça fundamental para o desenrolar da peça, quando tal expediente significa a mudança “peripecial” da má para a boa sorte. Em Sófocles, o plano de vingança já fora concebido e, em Eurípedes, como uma Lady Macbeth, ela desempanha a função vital do cumprimento do matricídio, papel que em Ésquilo coube ao coro.

Em matéria de estílo e técnica, Lígia Militz e Maria Ritzel salientam a relação entre a versão de Sófocles em Ésquilo. Também entendem que Electra têm ascendência sob os atos do irmão. Ela não participa do crime mas é seu agente racional. Desta forma, Sófocles encontraria-se na figura trágica de Electra e na sua agonia por ver que a vingança custa a ocorrer. A diferença entre ambos nessas peças centra-se na personagem principal, eixo da tragédia. Em Ésquilo é Orestes e em Sófocles Electra.

Ante a destruição progressiva da família, Sófocles procura uma solução conciliadora omitindo os deuses trabalhando a caracterização da irmã de Orestes; figura humana em desgraça, Electra vive uma situação repugnante pela fixação na figura paterna, tornando-se, desse modo, reflexo da desordem e do caos (1988, p.19).

Do ponto de vista religioso, as autoras salientam que Eurípedes diferencia-se de seus pares pela sua visão antropológica de mundo: “[seus heróis] são mais humanos que os de Ésquilo e Sófocles, pois eles odeiam, vingam-se, duvidam; arrependem-se de sua ação, apresentando, portanto, sentimentos próximos ao homem comum” (idem, ibidem).

A crítica corrente, salientam as autoras, também observa como este autor valoriza personagens marginalizados socialmente, como o escravo e o camponês. Contudo, ao que concerne à Electra, em Eurípedes, sofre imposições masculinas, obrigando a casar-se duas vezes. Ou seja, mesmo que o tragediógrafo buscasse apresentá-la como livre em suas ações, ela está presa nos limites da sociedade patriarcal em que vive e que ajuda a restaurar (p.20).

Já a figura dramática de Electra em Eurípedes lembra a de Sófocles, onde a força da personagem parece residir em sua amargura perene, que começa com a morte do pai e termina na forma como é tratada. Nela prevalece o ódio sobre o amor e seu desejo de vingança não é desinteressado: apesar de insubmissa, aceita seu destino (o casamento imposto) a fim de que o poder permaneça na casa dos Atridas.

A respeito da atuação dos heróis, é possível perceber diferenças entre os três autores. Se em Ésquilo o clímax da história reside imperiosamente na vingança, nas duas electras, o elemento fundamental está primeiro na salvação da heroína e, num segundo momento, em seu triunfo. Se nas Coéforas, Orestes é o enviado de Apolo (ou de Zeus, em última análise), nas outras peças, ele é aquele que liberta Electra da situação degradante em que se encontra.

Por fim, Militz e Ritzel observam que as electras aproximam-se pelo objetivo de marcar de forma profunda o caráter da heroína que, ao lado de seu irmão, consegue finalmente livrar-se dos sofrimentos por que fora oprimida (idem, ibidem).


Referências Bibliográficas



ARISTÓTELES, Poética. Porto Alegre, Globo, 1966.

COSTA, Lígia Militz, REMEDIOS, Maria Luíza Ritzel. A Tragédia, Estrutura e História. Ática, São Paulo, 1988.

RIBEIRO, M. C. L. Electra e Orestes: reconhecimento e espaço na tragédia grega. Revista do Museu de Arqueologia e Etnografia, 20: 251-176. São Paulo, 2010.

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