Thursday, January 25, 2018

Carmen: a vida em disco


A Pequena Notável

Carmen Miranda hoje é lembrada principalmente como ícone do cinema e musa do tropicalismo. Porém, algo que chama a atenção, ao transcendermos os epetos da nossa Pequena Notável é que sua imagem de artista de teatro e cinema, de certa forma, acabou eclipsando um elemento fundamental na sua carreira: seu legado como sambista e intérprete, com uma carreira consolidada com centenas de discos gravados em quase uma década.

No entanto, se olharmos em retrospectiva, iremos lembrar de temas como “South American Way”, “Bambu, Bambu” ou “Chica Chica Boom Chic”, músicas que tornaram-se signature songs para ela, mas que são meros produtos da indústria do cinema e ligados ao seu estereótipo de baiana do tutti frutto hat. Carmen, pelo menos publicamente, não dava bola para essa estereotipação: para ela, isso era comum no mundo do cinema - nem John Wayne escaparia.

Mas a verdade é que, muito antes da Broadway e de Hollywood, Carmen teve papel fundamental na pavimentação da canção brasileira. A respeito disso, Ruy Castro (1) diz que, a partir dos anos 30, ela estava fazendo uma revolução, tornando a música popular adulta, urbana, maliciosa e estimulando os compositores a explorar esses caminhos.

Comparando a Brazillian Bombshell à cantora mais popular daquele tempo, Aracy Côrtes, ele entende que a intérprete, a partir de Carmen, deixava de ser a “soprano olímpica”, para quem a letra era apenas uma “pista de corrida tendo os agudos como obstáculos, ou a moçoila ingênua e infantilizada que cantava versos matutos ou piegas”. Para ele, a cantora agora era uma mulher que tomava liberdades com o ritmo, adiantando-se ou atrasando-se em relação a ele, ditando o próprio ritmo, escandindo sílabas, enfim, “tornando-se dona da canção”.

Ao mesmo tempo, diferentemente de Aracy, Carmen passava longe da Praça Tiradentes e das revistas, que marcaram a produção musical até o começo dos anos 30. Ao contrário, desde o princípio, ela foi uma cantora do rádio – surgiu com o começo das transmissões comerciais no Brasil e foi a primeira intérprete de renome a ter um salário fixo, na Mayrink Veiga. Até então, ou, até mesmo depois, era comum que artistas 'do éter' ganhassem por empreitada, recebendo apenas cachês.

Como artista da Victor, ela seria a artista preferida de compositores de sua geração, como Custódio Mesquita, Ary, Assis Valente, André Filho ou Synval Silva. Ao seu lado, havia apenas Aracy de Almeida, que tornaria-se intérprete oficial de Noel Rosa e sua irmã, Aurora. Das duas, só Aurora a ombreava em matéria de produção de discos. Em média, elas lançavam um 78 rotações de três em três semanas (os long-plays só surgiriam quando Carmen já estava radicada nos Estados Unidos, no final dos anos 40).

Como cantora de Noel, Aracy de Almeida iria para o lado do samba-canção: “X do Problema”, “Último Desejo” ou “Triste Cuíca”. Havia um abismo temético entre a lírica do Poeta da Vila e o estilo mais carnavalesco de Carmen. É notória a frase de Noel (“isso é samba ou o que a Carmen Miranda canta?”). Carmen notabilizou-se por músicas mais tematizadas, marcinhas de Carnaval, área muito pouco explorada por Noel. Ele mesmo dizia que achava ser a Pequena Notável mais uma cantora de Carnaval do que uma sambista.

Talvez esse rótulo, se somado à sua imagem antes de performer (já em Hollywood) do que de cantora propriamente dita possa ter, com efeito, diminuído sua importância como cantora popular, mesmo sendo figura de proa no meio artístico, disputada pelas duas gravadoras mais importantes da época (Victor e Odeon) justamente num importante período de consolidação da canção brasileira no país. Diferenças à parte, porém, Ruy Castro salienta que Aracy foi a primeira cantora a surgir depois de Carmen, e só iria começar a arranhar a supremacia de Miranda com “Tenha Pena de Mim” (Cyro de Souza e Babaú), em fins de 1937 e o testamento de Noel, “Último Desejo”, do mesmo ano.
Até aquele ano, Carmen era a dona de canções como “Goodbye”, “Minha Embaixada Chegou”, “Tic-Tac do Meu Coração”, “Moleque Indigesto”, “Uva de Caminhão”, “Alô Alô Carnaval”, “Adeus Batucada”, “Querido Adão”, “Meu Balão Subiu”, “Como Vaes Você”, “No Tabuleiro da Baiana”, “Me dá, Me dá”, “Eu Dei”, “Camisa Listada”, “Maria Boa”, “Primavera no Rio”, “Taí”, “Boneca de Piche”, “Na Baixa do Sapateiro” e tantas outras.

Em dez anos, ela gravou 281 músicas entre marchas, choros, rumbas, emboladas e outros quetais, um recorde entre as cantoras brasileiras até então. Fizera dupla com vários cantores, de Mário Reis a Carlos Galhardo, consagrou tantos compositores, como Assis Valente, Dorival Caymmi e Synval Silva e gravou com regionais de Benedito Lacerda e Pixinguinha.

Porém, como salienta Ruy, sua carreira musical de verdade foram os discos que ela gravou no Brasil.

E por que? Quando ela virou estrela da Broadway e depois do cinema, sua produção musical, de 1940 a 1955 foi resumida a pouco mais de cinquenta fonogramas, todos lançados pela Decca americana. A explicação é a de que empresários e produtores de Miranda nos Estados Unidos queriam que seus fãs fossem ao cinema para ouvi-la. Não queriam que discos prensados e em profusão concorressem com as entradas. O que parece absurdo, já que cantores como Bing Crosby não tinham sua produção ofuscada pelos filmes.

Claro que noves fora era preciso entender que Crosby já era um artista consagrado do microfone, se compararmos com Carmen que, quando surgiu, em 39, era uma performer estritamente de palco. Junto com isso, a sua própria imagem de “comediante” a afastava de parecer ou tentar parecer ser (ou a aventuirar-se a) uma carreira como cantora, como uma Jo Statfford ou uma Dinah Shore. Com o correr dos anos, Carmen estaria cada vez mais presa ao estereótipo de latina. Os poucos discos que foram lançados por ela na América eram os standards de seus filmes, como “When I Love, I Love”, “Asi, Asi”, “A Weekend In Havana” (em geral, rumbas que eram transpostas em tempo de samba pelo Bando da Lua, com versões em Português de Aloyisio de Oliveira) e algumas poucas novidades brasileiras, como “Caroom' Pa Pa” (Baião, de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, em seu ultimo disco, de 1950) ou “Arca de Noé” (Nássara e Sá Roris).

Mesmo assim, ela era ciente dessa estandartização, como se a sua música no exterior tivesse sido pasteurizada pelo mesmo technicolor que plasmava em suas produções cinematográficas. Carmen sabia que “aquilo que ela cantava” (parafraseando Noel, que não viveu para vê-la em Hollywood) lá fora não era o samba de sua terra: “eles [os temas que ela cantava nos filmes] fazem parte da minha interpretação e só servem para dar uma ideia do que é samba, que a dança nacional do Brasil”. Em 1940, contudo, um álbum de 78 rotações foi lançado pela Decca com o nome The South American Way, contendo os sucessos de Carmen ainda no começo.

Ela ainda gravaria suas derradeiras faixas pela Odeon quando retornou ao Brasil, em 1940, com “Voltei pro Morro” e a emblemática “Disseram que Voltei Americanizada”. No entanto, elas não entrariam para o seu repertório nos Estados Unidos. Na verdade, foram suas últimas sessões como cantora de sambas, e ela não sabia disso. Dali sairiam ainda “O Dengo que a Nega Tem”, de Caymmi, ou “Rescenceamento”, de Assis Valente. Como diz Ruy Castro: “os poucos discos que ela ainda gravaria nos Estados Unidos não fariam muita diferença para ela ou pra ninguém. A rigor, e por mais duro que isso possa parecer, era o fim da Carmen cantora – sufocada pela personalidade colorida que também cantava e, às vezes, até representava”.

Com o advento de long-play, algumas coletâneas de Carmen foram lançadas, algumas pela Camden (nos anos 60), divisão da RCA, com fonogramas do começo da carreira de Carmen no Brasil. Porém, nunca houve um lançamento proeminente com todos os fonogramas, pelo menos pelas suas gravadoras originais, Odeon e Victor, até 1996, quando a EMI lançou uma caixa (hoje já esgotada) com as 126 músicas que ela registrou lá entre 1935 e 40. Mais tarde, a BMG, detentora das gravações da Victor, pôs na praça uma outra compilação, no entanto sem cobrir toda a obra de Carmen. Muita coisa saiu pela Revivendo, mas, em 2018, não existe uma edição de toda a sua obra – 281 faixas no Brasil e 32 nos Estados Unidos, além do material que só aparece em seus filmes – como “Paducah”, com Benny Goodman.


(1) Ruy Castro. Carmen Miranda, Uma Biografia. Companhia das Letras, 2007.

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