Tuesday, January 16, 2018

Machado de Assis e a cultura do favor no século XIX


Machado de Assis


O presente artigo busca analisar a cultura do clientelismo no Brasil oitocentista sob a ótica do escritor fluminense Machado de Assis, mais precisamente num livro de transição em sua obra, Iaiá Garcia, de 1878. Para tanto, iremos basear nosso ensaio na análise já clássica de Roberto Schwartz, em Ao Vencedor as Batatas (1988).

No estudo citado, o autor observa que, num momento fundador, nosso ficção enxergou as peculiaridades da vida familiar brasileira sob a ótica do pitoresco e da busca da identidade nacional, cujo resultado foi positivo. O grande representante dessa fase foi José de Alencar.

Numa geração posterior, Machado de Assis retoma o complexto temático, porém sem a “névoa protetora da cor local e a autocongratulação patriótica”. Aqui, a família brasileira passa a ser encarada, segundo Schwartz, em A Viravolta Machadiana (2012) sob o prisma do dependente instruído, que fazia parte dela e constituía um problema. O impasse estava dado, com o desequilíbrio dado por entre as classes. Se, num primeiro plano, há a narrativa romanesca, num segundo plano, vemos a nu a relação entre dependente e família de posses, sob o signo opressivo da proteção, que a qualquer momento pode ser retirada.

Burguês e escravocrata, lembra o autor, o Brasil dava forma mercantil aos bens materiais, mas não desenvolvia o trabalho assalariado, aonde uma problemática especial, de classe, à qual aludem os romances, principalmente os de sua primeira fase, de Ressurreição (1872) a Iaiá Garcia. Assentado na cultura escravista, diz Schwartz, o país fazia com que homens livres e pobres, nem proprietários, nem proletários, vivessem um tipo particular de privação ou semiexclusão (2012, p.259).

Na crônica do chamado mal-estar dos dependentes, diz o autor, Machado de Assis mostra um quadro de personagens “do subsolo” lutando por sua dignidade pessoal, “travada no âmbito das famílias proprietárias. No centro da intriga, existem heroínas pobres, inteligentes e lindas — além de muito suscetíveis — [que] faziam frente à injustiça de que eram vítimas.

Dessa forma, na ótica do Bruxo do Cosme Velho, a intriga sentimental deveria humanizar essa sociedade ‘incivil’: o enfrentamento das heroínas com os abusos de autoridade de seus padrinhos, femininos ou masculinos, se dá sob um signo diferente em cada um dos quatro romances [da primeira fase], o que aliás ilustra o ânimo experimentador e sistemático da literatura machadiana (p. 265).



2. Iaiá Garcia

No romance, D. Valéria chama Luís Garcia, protegido do falecido Comendador (marido de Valéria) viúvo e pai de Iaiá, homem que certamente deve favores a ela. Pede à ele que tire Estela, a agregada da sua casa, da cabeça de Jorge, seu filho, e o convença a partir para a campanha do Paraguai. Em paga, D, Valéria daria a Luís a mão da própria Estela, fato que o rapaz perplexo descobre ao retornar da guerra, anos depois.

Jorge acaba entrando na vida dos Garcia ao, como doutor, ajudar Luís à morte e sua família. Com o convívio, acaba apaixonando-se por Iaiá, filha adotiva de sua antiga paixão. O complicado e inesperado triângulo amoroso separa as duas, Estela e Iaiá, que decide romper com Jorge, alegando que sua madrasta ainda o ama.

Estela por fim arruma um emprego de professora e parte, e então Jorge e Iaiá vivem felizes para sempre. Um ano depois, ao visitar o mausoléu de Luís Garcia, Iaiá encontra uma coroa de orquídeas de Estela, prova de fidelidade ao seu falecido pai.


3. Patriarcalismo e a Cultura do Favor


De acordo com Luiz Felipe de Alencastro (1987), o desejo em manter o escravismo no Brasil permitiu uma solução negociada entre a elite do centro e os respetivos grupos regionais do país. Isso também viabilizaria a articulação dos setores dominantes na consolidação de um estado forte. Porém, a imposição desse projeto provocaria um choque entre esses politiburos regionais e a Coroa. Durante o período regencial, vários conflitos eclodiram, como a Balaiada, a Cabanagem e a Revolução Farroupilha, por exemplo.

Com o fim das revoltas, o tom foi de conciliação com o Rio de Janeiro, conciliação cujo fórum seriam as assembleias provinciais. Surgidas a partir de 1834, elas emprestavam um relativo grau de autonomia a esses respectivos grupos. Contudo, no fim, como observa o autor, canalizava tanto disputas quanto interesses para dentro da máquina do Estado. Ou seja, de forma paradoxal, à medida que desejavam resistir à mediação do Império, eles cada vez mais dependiam do governo central no sentido de atendimento de seus interesses.

Essa conciliação ocorria nas assembleias mas também na Câmara dos Deputados. As revoltas regenciais também serviram de antídoto ao problema das disputas locais: a partir de agora, o governo central era um avalista da ordem interna.

Por sua vez, para a Corte, era preciso ampliar o grau de centralização do regime e a neutralização dos potentados locais. Ao inspirar-se, do ponto de vista formal, no modelo dos estados europeus, o Império buscava "civilizar" a população e ordenar a sociedade brasileira.

Na ótica de Maria Odila da Silva Dias (1980), esse projeto "iluminista" seria o principal argumento a favor de um governo autoritário, com poder de cooptar essas elites locais e garantir uma unidade nacional. Isso passava pela criação de uma rede estatal visando substituir a justiça privada pela pública e uma dominação mediada pelas instituições públicas em detrimento da dominação privada.

Mesmo empunhando a bandeira liberal com uma mão, o estado não podia escapar das contingências da ordem escravista. Numa sociedade como aquela, não havia a menor possibilidade de simplesmente transplantar o modelo liberal europeu para o Brasil. Assim, o modelo de estado adotado aqui ganhou um novo conteúdo.

A partir desse impasse, as novas instituições do Império criaram um mecanismo que, segundo Roberto Schwarz, iria reger a vida ideológica brasileira: o favor.

A sociedade escravista não conhecia a figura do profissional liberal. Naquele tempo, os homens livres não tinham acesso à vida social e bens senão por intermédio de um senhor de posses.

A relação de favor era cifrada no sentimento de igualdade e superioridade porque ambos eram livres, embora numa sociedade escravista. Como eles eram iguais, esse jogo era permitido; pelo compadrismo, podiam trocar favores. De acordo com Maria Sylvia de Carvalho Franco (1976), o favor foi a mola mestra desse paradigma de dominação no Brasil, a partir da segunda metade do Século XIX.

Segundo a autora, ao perpassar a administração pública, o favor introduziu o clientelismo como elemento a mediar o jogo político. Da ótica institucional, isso representou uma 'síntese' que tentava amalgamar um modelo moderno à cultura do favor. Para ela, a burocracia realizou

as formas e as teorias do estado burguês pela mediação do clientelismo, vinculando autoridade oficial e influência social na montagem de eficiente de um instrumento centralizador autoritário, explorado pela classe dominante em vista dos seus objetivos, identificados com os interesses nacionais (p.63).

Dessa forma, sob o signo do clientelismo, a política do favor foi entronizado na esfera do jogo político, emprestando novas cores à administração em geral ao mesmo tempo em que lançava mão de um modelo capitalista. Sobre o tema, Sérgio Buarque de Hollanda (1979) entende que foi através desse sistema que a elite conseguiu legitimar-se sob a égide de um estado sem qualquer base popular e sem apoio de um setor significativo numericamente. Para ele, a representatividade do governo central era apenas "aparente", legitimada por eleições fraudadas e falseadas. Era preciso então retirar do nada os eleitores e elegíveis e, para tanto, recorreu-se a uma farta distribuição de empregos públicos (p.22).

Segundo Sérgio Buarque (1985), isso começa em 1831, quando os portugueses deixam o poder e, a partir daí, homens livres e pobres foram progressivamente guindados ao poder, mas tornando-se meros funcionários públicos habilitados a serem "eleitores e elegíveis" (p.85). Isso causou uma perversão da noção de representabilidade, criando-se um sistema sui generis em que, para salvar-se a fachada parlamentarista, o governo há de depender, pelo menos teoricamente, da vontade dos representantes da nação, mas onde estes vão depender, por sua vez, da vontade do governo (HOLLANDA, op cit, p.23). Desta forma, preservava-se um sistema atávico cujo corolário foi a consolidação de um país de sinecuras.

Como se sabe, a monarquia brasileira viveu sob o sistema parlamentarista. A partir de 1837, dois partidos se revezavam, o Liberal e o Conservador.

Através de fraude, sempre que um novo ministério era nomeado, se este não tivesse maioria, ele era dissolvido e novas eleições seriam realizadas. Por causa da fraude eleitoral, o governo sempre contava com a maioria na Câmara. Assim, o grupo no poder conseguiu manter a estrutura escravista e permitiu acomodar a ordem "privada" dos tempos da colônia num estado moderno e capitalista.


3. Iaiá Garcia, Patriarcalismo e a cultura do favor

Segundo Roberto Schwartz, a ousadia da obra de Machado de Assis começou, por assim dizer, de forma tímida, limitada ao âmbito familiar, onde ele analisava as perspectivas e iniquidades do paternalismo à brasileira (SCHWARTZ, 2012, p. 248). Nesse sentido, podemos dizer que sua literatura está eivada de uma fauna de personagens que, dentro do âmbito do espaço familiar, representam de forma inefável tanto a estrutura quanto a cultura do favorecimento a partir dessa ótica singular.

Um exemplo típico é José Dias, de Dom Casmurro (1900). Ao lermos o romance fora do contexto, podemos não entender por que uma figura externa à família de D. Glória possui um papel tão proeminente dentro da família de Bentinho.

Ora, é justamente porque ele está inserido dentro da cultura do século XIX. Ou seja, José Dias pode parecer estranho aos olhos de hoje mas, dentro de um contexto de um Brasil capitalista e escravocrata como o que Machado de Assis narra em seu livro, o personagem seria apenas mais um. A própria estrutura familiar da casa de D. Glória não é incomum — uma matrona que cuida de bens, como imóveis, e vive cercada de uma parentela que gravita em torno dela.

É nesses limites conformistas, traçados pela ideologia do decoro familiar e a relação “conservadora” (como veremos adiante) entre parentes, favorecidos e um patriarca (ou matriarca, viúva e patusca, como no caso mais do que recorrente em Machado) que podemos observar, ainda a partir da primeira fase da obra do Bruxo do Cosme Velho, o quanto ele foi um anatomista da realidade social brasileira daquele período. Para tanto, vamos pegar como exemplo um romance que encerra a chamada fase romântica do autor, Iaiá Garcia (1878).


Assim como em Dom Casmurro, Iaiá Garcia tem o seu José Dias: O agregado Antunes. Escrevente, ele foi homem de confiança do falecido desembargador, marido de D. Valéria. É mestre na palavra. Como o Fígaro de Baumarchais, é o factorum da casa; dá recados, confidente em situações sentimentais, ajuda nas compras de casa, ceia com os familiares (exceto quanto há visitantes) e é apreciador de charutos alheios. Sua filha Estela é ajudante da viúva do desembargador, e ele sonha com o dia que ela se case com o filho de D. Valéria (no entanto, para a tristeza dele, o rapaz não é correspondido e sequer a matrona cogita que seu único filho case-se com uma moça “de baixo” como ela, e faz de tudo para afastá-los). Consola-se freqüentando o Tribunal, tem comportamento sabujamente subalterno, mas convive com os grandes, e detesta os de sua extração.

Jorge corteja a moça. A mãe dele resolve comissionar Luís Garcia (contínuo do Caixa, provavelmente indicado pelo falecido desembargador) para que o rapaz a esqueça. No fim, ele é rejeitado por ela, a mãe o manda para a Guerra do Paraguai e ele heroicamente alista-se. Quando retorna, tempos depois, descobre perplexo que nesse meio tempo, D. Valéria costurou o casório entre os dois “favorecidos”, Estela e Luís Garcia.

Schwartz, ao falar do livro em Ao Vencedor as Batatas (1988), salienta que ele é ao mesmo tempo síntese do que machado propunha nos primeiros romances (Ressureição, A Mão e a Luva e Helena) porém sistematizando a ciranda do favor, livre de recursos romanescos, como ocorrera antes. Para ele, a ideologia desta obra os limites que vigoravam nos livros anteriores. “Esta é a versão negativa da vantagem, enquanto ausência de desvantagem. Entretanto, na ausência daqueles limites, novos aspectos da matéria assumirão a função formal, e o resultado é a realidade melhor “observada”, isto é, melhor recriada (p.119).

De forma arbitrária, Valéria acena para o casamento entre Estela e Luís, que seria vantajoso para ambos, e para a filha daquele, Iaiá, que ganhará um dote. Ela gosta dela pelo que ele não tem a dar, isto é, um idílio. O que importa, segundo Schwartz, é o acordo: dado que a fortuna e as distinções sociais estão na dependência do favor, e portanto das quimeras da gente rica, o melhor é abafar as esperanças e ambições (p.125).

Ou seja, como bem observa Schwartz, a “humilhação” não reside propriamente nas relações de favor, mas nas ilusões que a acompanham: um regime onde quem busca algum tipo de distinção, reconhecimento ou ascensão é tido como “desfrutável”. Essa, poderíamos dizer, é a hibris do favorecido. À ele não é permitido mais do que lhe cabe.

Caso notório é o de Capitu. Uma moça pobre, filha de um favorecido de D. Glória, que aspira a ascensão social casando-se com o filho desta, Bentinho. O corolário, no entanto, para ela, é funesto. Ao contrário da heroína de Dom Casmurro, Estela não tem ilusões ao que concerne à sua situação inferior. Resignada, não cede aos arroubos do filho de D. Valéria. Da mesma forma, a situação inferior em que ela e Luís Garcia se encontram não significam situação limite com que faça com que eles busquem revoltar-se.

Ao mesmo tempo, a resolução de D. Valéria em afastar de seu filho o desejo de casar-se com Estela, o que romanticamente parece um anticlímax logo na largada do livro, demostra, na figura de Estela, justamente a sua fortaleza como personagem. O fato consuma-se quando, entre duas “xícaras de chá”, Jorge, já de volta da Guerra, demonstra interesse na filha adotada de Estela (à essa altura, já unida à Luís, por obra e graça da mãe dele, a protetora de ambos), Iaiá.

Roberto Schwartz salienta que, com isso, o leitor tem ideia da crueza com que o autor visa, ao relatar as humilhações próprias ao paternalismo. E terá noção do grau de arbitrariedade a que se vê entregue o dependente, sobretudo se for mulher (1988, p.130). Enfim, se a vida de Jorge é a de uma “evolução sentimental”, a de Estela, a agregada, é o “leque de acidentes que lhe reserva o amor de um moço rico” (idem, ibidem). De forma anti-romântica, continua o ensaísta, a distância social prevalece contra o amor, mas isso por convicção da própria valia, e não por tradicionalismo.

No campo opressivo que é dela, a personagem experimenta uma obediência sem baixeza, salienta Schwartz, que corresponde aos obséquios “frios de Luís Garcia”. O que realmente a constrangia era a corte de Jorge. Ao contrário de Capitu, podemos observar aqui, se o amor de um jovem rico pode suprimir as distâncias sociais, para Estela isso não o valoriza.

Ao contrário, apenas alimenta esperanças indignas — no caso de Dom Casmurro, após a morte de Escobar, quando o prédio emocional de Bentinho ruiu, todo o seu ódio foi catalizado contra a mulher que, com “olhos de cigana dissimulada”, usurpou um lugar que não lhe deveria pertencer. Logo, para muitos críticos, o “ciúme” de Bentinho passa necessariamente por um corrosivo preconceito de classe.

Estela, ao contrário de Capitu, não tinha nem ambições nem esperanças com relação a esse consórcio, ou perfazer o folhetinesco fait-divers de um casamento ultra-romântico, como “O princeso e a plebéia”. Diferentemente de uma trágica Desdêmona de Dom Casmurro, a resignada personagem de iaiá Garcia sabe qual é o limite de sua hibris.

Ao mesmo tempo, assevera o autor, tanto a dignidade de Luís quanto de Estela se constrói como resposta à arbitrariedade de seus protetores, e especialmente a seu aspecto mais veleitário, que é onde se concentra o caráter pessoal e degradante da subordinação (p.131). A solução da heroína consiste em dividir-se em duas: dá ao paternalismo o que é dele, mas lhe recusa o amor (p.132).

Ou seja, no fim das contas, a melhor solução é conservadora: o imobilismo. Quer dizer, é melhor que, numa situação como esta, cada um saiba qual é o seu lugar. Não porque a diferença social seja justa ou a tradição explique, diz Schwartz, mas porque os mediadores do movimento, o obséquio e o desejo de subir, são, segundo o ensaísta, ainda fatores mais degradantes (idem, ibidem).

Ele salienta que, a despeito do fato de que os agregados saibam que sua consciência de situação seja aguda, isso não se transforma em consciência de classe. “Nesta linha”, diz o autor, no entanto, “a dívida de gratidão parece pesar mais do que a inferioridade social.

A ideologia de classe que Machado de Assis nos passa ao falar desses personagens agregados é a de que todos movem-se sob o signo da racionalidade, ou melhor, de uma racionalidade particular. Essa razão consiste em não investir a esperança nas fantasias de seus protetores, nem nas próprias: é uma ideologia de desencanto e resignação. Eles não vivem a salvo do jugo e da prepotência, mas ficam a salvo da dependência interior. E, de certa forma, como também irá demonstrar Machado, essa diferença de classe conta com a cumplicidade do dependente com sua situação — como é o caso de Antunes, pai de Estela.

Agregado de um conselheiro de Império, ele jacta-se de sua condição (como a do mordomo de Brás Cubas, que sempre aparecia à janela para mostrar onde ele servia). Ele internalizou esse processo. A diferença, em Iaiá Garcia, está justamente na figura de Estela se comparada com a de seu pai: ela não irá elaborar sua condição desta forma e, no fim, buscará uma solução capitalista, ainda que à margem do capitalismo: virar professora no interior de São Paulo. Ela tem o seu foro íntimo, salienta Schwartz, e não são as preferências de sua protetora que definem as suas demandas (p.138).

Jorge, por sua vez, é um tipo exemplar. Filho abastado de mãe rica, tem como horizonte intelectual Recife ou Coimbra, desposar a filha de algum senador (enquanto corteja moças pobres, como fará Brás Cubas, que “nasce” aqui) e assim engrenar carreira política na Corte. Vivia vida mundana, desocupado “como convém à ordem escravista”, agora, diz o ensaísta, com especial destaque para a combinação de autoridade e responsabilidade (p.140).

Se traçarmos um paralelo com um Dickens, por exemplo, Jorge, o jovem abastado brasileiro, é o anti-David Copperfield. Não trabalha, não começou do nada, não tem nada do que orgulhar-se. Estela e Luís Garcia, num país onde não poderiam ser força produtiva, como muitos, vivem às custas da idle class da Corte, algo idiverso da realidade da Inglaterra vitoriana. Diz Schwartz: quando encontrava uma solução possível para o realismo brasileiro, Machado abandonava a fórmula consagrada do realismo europeu e com ela o domínio da racionalidade convencional (p.141).

Enquanto envereda por uma forma peculiar de realismo — na periferia do Capitalismo, como diria o ensaísta, Machado, em Iaiá Garcia, elabora um enredo cuja descontinuidade e senso difuso transcenda e até frustre o que seria o projeto de um romance para moças.

O argumento de Schwartz é curioso se pensarmos que, antes de a fortuna crítica do escritor fluminense separar de forma simplista as duas fases do autor de “Esaú e Jacó” em romântica e realista, seus primeiros quatro romances contenham elementos onde o conflito de classes entre proprietários e agregados seja tão recorrente.

Contudo, como diz o autor, o que era ensaiado no começo ganha cores mais fortes em Iaiá Garcia, onde o conflito em si ganha estatuto de tese e se presta menos à mecânica da fabulação em si, como em Helena, por exemplo. Como entende o autor, a supressão metódica do movimento romanesco é fruto de observação local e é um avanço realista de Machado, que no entanto o aproxima da autocrítica formal característica da literatura de vanguarda, em que se explicitam pressupostos gerais da ordem burguesa. Um exemplo mais da convergência entre atraso social e formas artísticas avançadas (p.144).


4. Conclusões

Segundo análise de Roberto Schwartz, como extrato de tese, nestes romances “românticos”, Machado esboçava uma combinatória entre as posições sociais enquanto realidade prática e o campo social enquanto valor imaginário, combinatória cuja regra são as compensações simbólicas (1988, p.134). Dessa forma, a desigualdade social não se demonstra como antagonismo mas de coesão (e ou complementação), porquanto essa duplicação imaginária dispõe aos favorecidos os fumos de ‘superioridade’ que são, com efeito, os elementos que ele necessita.

Porém, no caso de Estela, a sua trajetória não é na resolução da própria situação dentro do sistema. Sufocada pela relação familiar desgastada, sua solução heroica (ou deus-ex-machina à Machado) é o trabalho assalariado, já historicamente nos estertores do Império (muito embora ele não faça menção à palavra “salário”).

O trabalho, observa o autor, se insurge como alternativa ao paternalismo — no entanto, o trabalho livre, mas livre da Corte. Luís Garcia, que era funcionário público, ainda estava preso às malhas da ciranda do favor. Para ele, a ideologia de Luís Garcia e Estela, é antes civilizatória do que crítica.

Mas, nessa mesma ideologia, assevera o ensaísta, o mérito intelectual e moral em Iaiá Garcia reside justamente nos dependentes (p.134). No entanto, se o começo do livro parece prometer um enfrentamento de classes, essa promessa não se cumpre. Se a contradição ideológica é central no começo, posteriormente ela passa ao largo do romance: a mola dos acontecimentos estava nos desmandos de Dona Valéria (como ocorrerá em Dom Casmurro com Dona Glória) e não nos antagonismos ou questiúnculas de direito.

E aqui, para ele, Machado de Assis ainda analisa o arbitrário paternalista na perspectiva dos dependentes ou, por outra, na ‘neutralidade’ do narrador em terceira pessoa, ele acaba expondo o problema pela ótica do mais fraco. Nos seus romances realistas, a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), ele passa a expor essa mesma situação, contudo, na ótica dos donos do poder, usando a licença poética do memorialismo para encarar o arbitrário com a intimidade de quem se confessa praticante, e já não tem o que temer (p. 161).

Em Iaiá Garcia, a nota histórica pode ser uma espécie de ensaio de aprendizado de classe, que se liga a uma dualidade de funções que é uma condição sem volta. O chefe da camorra também é proprietário, para quem essa ordem de obrigações, como diz o autor, é relativa.

A dinâmica do envolvimento paternalista, segundo ele, mostra ser apenas metade da situação, cujo outro aspecto, ditado pela propriedade, pertence a uma órbita diversa, à qual as razões do dependente não dizem nada, e a que este, além disso, não tem acesso independente, o que consubstancia a fratura social (p.269).

É a partir de Memórias Póstumas que essas contradições viram a forma da nova literatura de Machado. Após fazer a crônica do anacronismo social brasileiro, é a partir da versão do proprietário à brasileira, europeizado e caboclo, cordial à brasileira e liberal à moda européia, filho do iluminismo e escravocrata na terra da palmeira, ele se torna o molde da nova prosa.

Brás Cubas, em suas memórias, é como se fosse o Jorge de Iaiá Garcia, porém ao expressionistamente ao contrário, passando sua vida em retrospectiva, e sem medo de contar suas pusilaminidades. Vende a imagem de um Sterne mas é na verdade um farsante e mostra, sem puder nenhum, a forma como deu cabo de sua vida, tanto exaltando um adultério como mote romântico e suas torpezas, gloriosas frustrações e relações com mulheres ao longo da vida — uma vida inútil, perdida, mas defendida galhardamente até rir do leitor ao gabar-se de não deixar descendência num mundo onde tudo irá para debaixo da terra.

Já a Capitu de Dom Casmurro, também personagem de um livro de memórias (ou seja, Machado abdica da neutralidade do narrador moralista (e ligado á causa dos dependentes) e comportado para mergulhar na mente doentia do proprietário), é Estela ao contrário: ao invés de resignar-se ao limite de sua situação de classe, ela dobra a tudo e a todos em busca de ascensão social. Quando Bentinho tem essa epifania, acusa a esposa de adultério, sendo juiz e advogado de acusação.

Nos dois casos, é como se tivéssemos o mesmo horizonte social do patriarcalismo e do favor, porém, aqui ocorre o que Schwartz entende como “viraviolta”, ou seja, quando Machado sai da ótica do mais fraco para mostrar, num retrato sem retoques, a visão distorcida do Brasil pela visão dos de cima.

Essa é, por último, a grande perplexidade da Comédia Humana de ponta-cabeça nessa viravolta machadiana: livre, o narrador, dono de seus meios e principalmente da tradição, vai reiterar em pensamentos e em conduta os atrasos de nossa formação social, em vez de se superar (2012, p.275). Antes, a simpatia do escritor ia para a heroína injustiçada, e que fazia jus ao formato de folhetim. Do lado dos opressores proprietários, era preciso caracterizar o lado negativo destes. Pois foi por meio dessa progressão lógica livro a livro que, de acordo com Schwartz, deu-se a fórmula que iria caracterizar a obra de Machado e fazer dele um grande escritor.



Referências Bibliográficas


ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Fardo dos Bacharéis. In Revista Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, 19:68-72, dez/1987, p. 69.

DIAS, Maria Odila da Silva. Ideologia Liberal e construção do estado do Brasil. In: Anais do Museu Paulista, São Paulo, XXX:211-325, 1980, p. 217.

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. As Ideias estão no lugar. In; Cadernos debate, São Paulo, 1976.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Prefácio. Jeanne Berrance de Castro - A Milícia Cidadã. 2º edição, São Paulo, Nacional, 1979.
................................................ Do Império à República. In: História da Civilização Brasileira, 4º ed, São Paulo, Difel, 1985, Tomo II. Volume IV.

SCHWARTZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas. Duas Cidades, 1988.

………………………. Martinha versus Lucrécia – ensaios e entrevistas. Companhia das Letras, 2012.

No comments: