Saturday, July 29, 2017

Peregrinação de Verlaine à Ilha de Watteau


Pierrot, Antoine Watteau, 1719.


Segundo Edmond Lepelletier, o poeta Paul Verlaine ia sempre ia Galeria Lacaze no Louvre, admirar a coleção de mestres das escapolettes, das fetes cahampetres e dos dejeuners sur herbe de Watteau e Fragonard.

Edmond revela que, foi tanto daquelas pinturas quanto de páginas sobre crítica de arte dos irmãos Goncourt, Verlaine que compôs Fêtes Galantes. Lançado em livro pela primeira vez em 1869, foram escritas entre 1867 e 1868, em partes, à princípio, na Gazette Rimée, jornal literário da época e de vida efêmera.

Onestaldo de Pennafort, tradutor de Verlaine no Brasil, na introdução à obra, vai mais além em busca da gênese das Fêtes. De acordo com ele, outras fontes teriam sido o poema “La Fete chez Thereses”, de Victor Hugo, que, segundo Lepelletier, amigo do poeta. “era uma das poucas poesias de outro autor que ele sabia de cor”.

Segundo Pennafort, citando Le Dantec, porém, ao contrário da poesia descritiva e tributária de expressões da Commedia dell Arte, de Hugo, Verlaine destaca-se no Fêtes, que é a “fusão original dos mundos objetivo e subjetivo”, e mais, a “inconsistência do assunto propriamente [no esteio da linguagem], que se dilui na expressão poética, a ausência de todo esplendor verbal e mesmo como que a fragilidade gramatical das palavras, que, ainda mal acabam de preencher a sua função no discurso, logo se esvaem, levadas na onda do inefável que banha todo o livro e que é a sua atmosfera natural”.

Outra influência listada por Pennafort é o de Caprice, com seus “cenários fantásticos” e a sugestão de “reunions em plein air” e às alusões à pantomina típica da arte do século XVIII. Como Verlaine faria anos mais tarde, Banville buscou fazer uma espécie de transposição poética da pintura rococó, no entanto, usando mais Fragonard como tema do que Watteau.

Num ensaio singular sobre Watteau, Norbert Elias (2006) conta a trajetória da estética do pintor belga — de cronista da idle class do Antigo Regime até a demonização total perpretada pelos revolucionários de 1789 até o reconhecimento tardio, nos estertores do romantismo europeu, a partir da segunda metade do século XIX.

Gombrich (1999) revela que, ao fornecer o fundo apropriado para as festas da sociedade cortesã do Antigo Regime, Watteau pautou-se pelas suas próprias visões — de uma vida divorciada de todas as privações e trivialidades, uma vida fictícia de “alegres piqueniques em parques de sonho onde nunca chove, de saraus musicais onde todas as damas são belas e todos os enamorados graciosos, uma sociedade em que todos se vestem de refulgentes sedas sem ostentação, e onde a vida dos pastores e pastoras parece ser uma sucessão de minuetos” (p. 317).

Para muitos, diz Gombrich, o pintor notabilizou-se por refletir o gosto da aristocracia francesa do começo do século XVIII, que é conhecido como o período rococó . No entanto, o autor salienta para a grandeza do artista mesmo diante do fundo falso dos temas considerados como expressões de alegre frivolidade. “Pelo contrário”, afirma, “foram os seus sonhos e ideais que ajudaram a modelar o estilo rococó”.

Para o autor, Watteau era capaz de “transmitir a impressão de carne palpitante através de uma pitada de giz ou cor”. Porém, ao contrário de contemporâneos, como Rubens e Steen, talvez pelo sentimento fatalista do pintor, há no artista um inefável toque de tristeza nessas visões de beleza, mas que eleva sua arte acima da habilidade ou beleza.

Elias entende que Watteau seguia seus próprios caminhos, mas era um homem de seu tempo. Sobre a Peregrinação à ilha de Citera, ele explica que, na época do Antigo Regime, não havia nenhum ideal político relacionado ao quadro. Aquela representação das festas galantes era, justamente, uma utopia de fuga da política (ou talvez mesmo a libertação) mediante a partida para uma ilha de eterna felicidade no amor.

Contudo, após 1789, principalmente na França, como observou um crítico, em 1802, seria um crime falar em Citera, salientando, pois, a “seletividade característica da recepção quando comandada por desejos e sonhos sociais dominantes” (p 34). Além do mais, como observa Elias, para os franceses pós-revolucionários, o caráter ideológico das pinturas do Antigo Regime era bastante
evidente.

Por sinal, como salienta Elias, o próprio nome "rococó", era uma expressão tardia e que visava ridícularizar a dita artificialidade da arte do início do século XVIII e Watteau não escapou do julgamento da sociedade: em 1808, o quadro, e apresentado pelo pintor como uma peça de candidatura à Academia Real de Pintura e Escultura foi banido do Louvre.

A respeito dessa mudança de gosto, o autor entende que, entre os especialistas, ainda é difundida a noção de que a mudança de gosto na arte pode ser compreendida e esclarecida independentemente de transformações na sociedade e, particularmente, nas relações de poder.

Para ele, no caso da Citera de Watteau e da imagem “ideal da viagem à ilha do amor” a ela associado, é importante constatar o tempo necessário antes que se pudesse ter a distância necessária para que, em sua contemplação, o encobrimento da recepção
pela projeção de ideais próprios amenizasse.

De acordo com o autor, as vozes do início do século XIX sobre Watteau lembram que toda obra de arte com funções artísticas pode ter também, ao mesmo tempo, em ato ou em potência, funções ideológicas.

Essas “relações de poder” mudariam diametralmente nos anos posteriores à Revolução. Um exemplo batido dá conta que o próprio equilíbrio entre consumidores e produtores de arte, como diz Elias, foi pendendo, lentamente, em direção aos últimos.

Nesse meio tempo, surgem círculos de jovens artistas, críticos de arte, escritores
e outras atividades ligadas à arte, que” desempenhavam a função de árbitros do gosto artístico”, diz. “Eles tinham certeza do próprio gosto, ou acreditavam tê-la […] O artista tornou-se, então, cada vez mais um autodeclarado especialista em questões de bom gosto artístico”(p.27).

Elias alude á essa mudança na figuração da relação entre artista e público, cada vez corrente: em vez da sociedade do ócio, aristocrática, de corte — como a retratada nas festas galantes de Watteau, agora são os “pequenos grupos de artistas, críticos de arte e seus amigos, portanto de especialistas, que possuem sensibilidade e talento particulares para a arte — ou que acreditam tê-los, que determinam o chamado gosto artístico da moda.

Ele explica que grupos de especialistas dessa estirpe passaram a exercer uma influência decisiva no desenvolvimento das artes e, muitas vezes, também da literatura.

Ao contrário da época pré-revolucionária, quando artistas, em função da estrutura da sociedade, ocupavam uma posição social inferior, no decorrer do século XIX, eles foram guindados do papel de outsiders para o de guias especializados — estetas, e a tensão entre seu gosto e o da sociedade em geral tornariam-se coisa corriqueira a partir dali.

O gosto do público que se interessava por arte seguia, em geral, de acordo com o autor, inovações que vinham sendo desenvolvidas nos pequenos grupos de especialistas. “Esse gosto trivial mudava lentamente, resistindo às inovações dos grupos de especialistas, que representavam, com freqüência, uma geração jovem em vias de ascensão, seus sonhos e protestos contra o gosto e a ordem estabelecidos pelas gerações mais velhas (p.41).

Um desses grupos, o chamado círculo da Rue du Doyenné, foi concebido por Gérard de Nerval. Como era comum entre esse tipo de politiburo cultural, era um grupo de jovens artistas eque, segundo Elias, procurava uma contraimagem, um sonho, para compensar a rotina cinzenta e sóbria da sociedade burguesa.

Por fim, acabaram eles procurando, á sua maneira, mas com uma visão estética singular, o seu próprio caminho para Citera — talvez, “sem pensar, em uma restauração política, em um passado, particularmente na França pré-revolucionária do século XVIII”, diz o autor. No fim das contas, o manifesto desprezo ao rococó cedeu lugar à admiração. “O pêndulo oscilou para o outro lado”(p.42).

Com a redescoberta de Citera, Watteau virou um ídolo para eles. Mais do que isso, o pintor belga tornou-se o símbolo de um paraíso perdido, a regência de Luís XV, quando a vida então viagens de amor e festas galantes. Dessa forma, eles procuravam reviver aquela época, promovendo elegantes bailes. Pèlerinage à l'île de Cythère então era, justamente, a “representação de uma festa do prazer”.

“Mais uma vez”, diz Elias, “mais uma vez via-se o quadro, seletivamente, de maneira a relacioná-lo a ideais particulares, como representação
pictórica de uma utopia coletiva”.

Julie-Anne Plax (2006) parte de todo imaginário social e utopia em torno do revival do rococó na segunda metade do século XIX. Para a autora, assim como observa Elias, estetas como Nerval, os Goncourt, Baudelaire e Verlaine faziam parte de um grupo que buscava um status aristocrático, contra o status típico da burguesia que, ao contrário deles, era uma elite de origem mercantil e, portanto, com relação a eles, culturalmente “inferior”.

Insatisfeitos com os rumos da arte francesa no período — alegando que o rococó estava sendo subjulgado pelo ultra-romantismo de Delacroix, por exemplo — eles criaram a república da rua Doyenné, junto com outros jovens intelectuais, como Wattier, Calille e Devéria, entre outros.

Segundo Julie, foi a experiência dos boêmios de Doyenne que lançou a moda da transposição da poesia das pinturas de Watteau para o terreno da literatura.



Verlaine e as Fêtes Galantes


Publicado em 1869, é obra da primeira fase de Paul Verlaine, que havia se iniciado na poesia três anos antes, com Poèmes Saturniens.

Onestado de Pennafort (1945) considera que o ciclo é, a um só tempo, a transposição poética da pintura e o espírito da pintura do século 18 assim como transplantação para a poesia lírica das fantasias cênicas de Shakespeare (ao relacionar os temas bergamascos — a terra de Arlequim e Briguela — ao Sonho de Uma Noite de Verão).

Inspirando-se em Watteau e seus discípulos Lencret e Pater, bem como em Fragonard e Boucher a partir dos trabalhos estéticos dos Goncourt (o autor salienta que o poeta pode ter bebido da fonte dos irmãos Goncourt em L’ Art du XVIII Sciecle) onde eles já haviam narrado a vida e as aventuras de Du Barry e das atrizes e cortesãs da época, exumaram a arte esquecida e desprezada daquela grande escola da pintura francesa rococó.

Para Pennafort, Verlaine quis reviver, no domínio da literatura, com palavras e ritmos, o mundo encantado, as paisagens, os cenários, a poesia ornamental, a graça, a elegância, o espírito e as personagens criadas por aqueles mesteres em suas telas, toda essa arte a um só tempo féerica e intimista, realista e poética (p.72).

E o que eram propriamente as festas galantes? Segundo Kleiner (2011) elas eram reuniões de diversão ao ar livre organizados por aristocratas parisienses, presumivelmente entre 1715 e 1770. Na maioria das vezes, o termo foi usado dentro do contexto da pintura francesa.

Com a morte de Luiz XIV, em 1715, a aristocracia francesa foi abandonando o esplendor da corte de Versalhes em favor de Paris, onde finalmente eles podiam integrar-se à vida mundana. Na cidade, eles conhecem a commedia dell’arte italiana, já em seus estertores, quando em retorno á França, após serem banidas por Luix XIV.

A origem do termo “festa galante” vem da forma pela qual a Academia Real de Pintura e Escultura passou a designar as variações de Watteau sobre o tema da festa de jardim, representando personagens à fantasia brincando em parques e jardins. Como a Academia no começo não pôde encontrar uma categoria correspondente às obras do pintor francês quando ele pediu a aprovação da entidade, em 1717, optou-se por criar um ‘rótulo’ ou caracterização específica, dentro da hierarquia de gêneros, na fronteira entre a pintura histórica e o retrato.

O estilo de ‘festival galante’ nasce da conjunção de imperativos a que fora submetido Watteau. Para a Academia, suas cenas da vida cotidiana seriam consideradas ‘inferiores’ aos temas históricos e mitológicos – esses tão caros ao estilo rococó. Ao mesmo tempo, o autor buscava o mecenato daqueles a quem ele buscava retratar.

A escolha do tema como forma singular de pintura, geralmente caracterizada ao ar livre, tomando emprestado elementos da escola veneziana do Século XVII, tipicamente impregnado pelos temas míticos da ou Citera, uma época imemorial onde o acreditava-se que todos viviam em harmonia com a natureza.

Glosando elementos pastorais com a alegoria da commedia, Watteau logrou tanto agradar aos seus mecenas quanto à Academia, a fim de obter o estatuto de ‘pintura histórica’ à sua obra. E dessa pororoca cultural, onde a arte cênica influencia a pintura que, por sua vez, influenciaria a literatura, personagens da comédia italiana e francesa encontram-se.

Marqueses e marquesas, abades, atrizes e cortesãs, pantomimas e farsas, as fanchon e as escarpolettes de Fragonard, as Camargô, as lições de música, os repastos italianos, de Lancret, as festas campestres, os donneurs de serenades, os embarques e retornos para Citera, de Watteau, as confidentes e os prazeres do outono no estio, de Boucher. Como diz Pennafort: tudo o que forma o encantamento mágico, o sorriso misterioso da pintura desse tempo fascinante se reflete nas Fêtes assim como num espelho mágico que guardasse as imagens furtivas que por ele houvesse passado (p.73).

Para o autor, sua poesia latente se sobrepõe a qualquer consideração de época, escola e latitude, porque o seu tipo de mensagem poética atende a um desejo de poesia específica latente no espírito humano: o da “lírica evasão da realidade”. Essa “lírica evasão” nos faz retornar ao célebre artigo de Elias sobre Watteau — e que pode nos explicar esteticamente a gênese das Fêtes.

Ao referir-se à mudança da relação entre autor e público do fim do Antigo Regime para a Restauração, Elias diz que a produção poética, que na época da supremacia da sociedade de corte havia sido sempre uma questão interna da sociedade passa a ser uma ocupação de grupos de outsiders (o “galente boêmio, como ele destaca) e uma questão de indivíduos “singulares, auto-constituídos.

Elias lembra, ao citar o caso trágico Gerard de Nerval, da mesma geração romântica de Dumas Filho. Em sua juventude, idealizou o mundo de Watteau e pagou com a vida por esse impulso para a individualização contribuiu para tornar as desgraças desse mundo pelo “contraste entre desejo e realidade”.

Partindo de Nerval, e de uma linhagem posterior — até chagarmos nos poetas malditos, como Verlaine — podemos passar por Baudelaire, cujo tema de Citera não passou desapercebido por ele. Em As Flores do Mal, ele publicou um poema sobre o assunto. Baudelaire escreveu "Voyage à 1'isle de Cythère", que, segundo Elias, é a sua contribuição ao debate, em conexão com o relato de Nerval — que esteve na ilha grega retratada em Watteau, quando ele descobre, pálido de espanto, que não havia nada de árcade e de galante no local.



A Commedia dell’ arte em Fêtes


Julie-Anne Plax salienta que, a partir de Watteau, os boêmios de Doyenne glosaram especialmente o tema recorrente da commedia dell’arte para justapor alegria e tristeza (p.36). Para exemplificar, ela destaca a pintura Pierrot (1718-1719) , que influenciou Banville em suas Odes Funanbulescas (nome tirado do palco dos artistas do gênero faziam pantomimas).

Outro “galante boêmio”, Victor Hugo também glosou o tema, escrevendo, como contribuição ao debate literário “sonho versus realidade”, o poema "Cérigo", e, por fim, Verlaine, o ciclo Fêtes Galantes.

Verlaine — diz a autora — foi largamente influenciado pelos estetas de Nerval e começou a compôr imagens sonambulescas de personagens destacados da realidade. Dada a largada, ele passou a revisitar muitos dos temas de Watteau em sua poesia (ainda da primeira fase).

Julie-Anne salienta que o poeta, dentro do espírito romântico, faz uma leitura mais “dionisíaca” ou “demoníaca” aos mitos de Watteau onde, o que na pintura soa como onírico, na pena de Verlaine parece “aterrador”: (“Seus olhos são de um halo de luz fosforescente/e o pó lhe parece apavorante/E o palor da face é daquele que irá morrer”).

Julie-Anne Plax recorda que Verlaine não foi o primeiro a usar de imagens macabras ao referir-se à Watteau. Ela enumera ainda o citado Baudelaire e Gauthier que, além de estetas, como o poeta das Fêtes, eram colecionadores de arte do século XVIII.

No entanto, Baudelaire teria uma veia mais irônica ao abordar os temas (Nas Fleurs) e foi além nas imagens de morbidez e loucura, como em “Un Voyage à Cythère” (de 1853, publicado em 1857).

Aqui, ele subverte as expectativas de Watteau em seu clássico: ao invés de encontrar amor, felicidade e beleza, o peregrino de Baudelaire encontra um “pesadelo de dor, morte e de queda” (deusa do amor, eu não encontrei nada/ a não ser uma forca/com uma bruxa segurando a minha imagem/ Oh, deusa do amor, dai-me forças no coração/para contemplar meu corpo e minha alma enquanto sem sofrimentos”).

À guisa de conclusão, Julie-Anne compara (quase corroborando a desilusão de Nerval ao deparar-se com a ilha real) o ambiente de sonho de Citera é, ao contrário de ser um desembarque do mundo burguês, soa mais como um naufrágio atroz, 'como o Titanic'.



Verlaine e Watteau


Onestaldo de Pennafort revela que Verlaine concentrou-se em poucas obras de Watteau, salientando que “não era preciso que ele visse todos os quadros da escola rococó para se inspirar em sua pintura, para sentir a fina sugestão poética, o sentido ideal que emana dessa arte delicada e sutil, e transportá-la para a poesia (p.24). Para o autor, “dois ou três quadros lhe bastariam”.

“A intuição, o dom divinatório da poesia unido às informações e à crítica dos Goncourt”, diz Pennafort, “em cujos estudos, publicados dez anos antes de Verlaine começar a escrever as poesias do Fêtes, é curioso notar que já aparecem as expressões bergamasques, e fete galante, [ele] completaria o resto”.

Do ponto de vista literário, Lepelletier acredita que La Fete Chez Therese, de Hugo, possa ter influenciado o poeta, acreditando haver uma semelhança de tom entre as duas obras. Essa poesia de Hugo era a única que Verlaine sabia de cor”, diz ele. Pennafort complementa a observação, entendendo que os dois trabalhos têm em cognato apenas a escolha dos cenários e a indumentária colorida da commedia dell’ arte.

“Nada que se assemelhe ao principal encanto e à principal novidade das Fêtes Galantes de Verlaine”, explica, “à sua característica lá atrás salientada: a maravilhosa fusão dos mundos objetivo e subjetivo – e, mais, a inconsistência do assunto propriamente, que se dilui na expressão poética, a ausência de todo esplendor verbal e mesmo como que a fragilidade gramatical das palavras, que, ainda mal acabam de preencher a sua função no discurso, logo se esvaem, levadas na onda do inefável que banha todo o livro e que é a sua atmosfera natural” (p.25).

Pennafort também lembra que, antes de Verlaine, Banville já havia transposto o rococó da pintura para a poesia. Porém, ressaltando, segundo ele, mais o brilho carnavalesco, exterior, enfim, o ar “meramente pictórico das obras”.

Já o poeta das Fêtes, diz ele, infundiu ao ciclo “imensas clareiras de sonho”, diversidade de planos, identificação profunda das personagens com a piasagem e o que ele entende como “humanização do imponderável”

Pennafort, não se sabe se as personagens existem ou não em função apenas dos seus sentimentos, ou se são elas, com a misteriosa vida dos seus gestos e das suas vestimentas, que nos fazem pensar em sentimentos. É um dos segredos sutis do livro (p.30).


Pierrô — diz o autor — é o do quadro de Watteau no Louvre. Pennafort entende que a geração romântica do século XIX deu conotação diversa aos personagens da commedia que, como se sabe, tinham função cênica arbitrariamente convencional e marcada: “românticos e simbolistas o estropiaram, tornando-o a figura puramente sentimental e apaixonada, como é geralmente mais conhecido” diz.

Diverso de Pierrô, a vítima de Arlequim, de colombina, de Clitandro, o galã das velhas comédias francesas que, segundo ele, é recorrente em Moliere. “Personagem da comédia italiana, tipo de velho imbecil e crédulo, sempre apoiado no bastão, Cassandro era sempre vítima dos embustes de Arlequim, pierrot ou colombina. Seu nome passou à linguagem comum como “velho toleirão”. Em Verlaine, ele “deserda o sobrinho”, e depois se arrepende (p.164).

Já em “Sobre a Relva”, diz Onestaldo de Pennafort, reproduz a festa campestre típica, com seus serões musicais, tacões do “marquesinho frívolo”, a concupiscência do abade e o decote de Camargô, tudo tem um espírito do século que era a um tempo delicado e licencioso (p.165).


Sobre a relva


Divaga o padre – ri o marquês
Colocaste mal a peruca
Chipre raro, menos, bem vês
Camargô do que a tua nuca

Meu amor... do mi sol lá si
Tua intenção padre, está-se a vê-la!

Pios que eu morra, senhoras, se
Não vou trouxer aquela estrela!

Se eu fosse um pequenino cão!
Que cada qual abreca a sua
Pastora – oh senhores, então?

Do mi, sol, boa noite, lua!


Já “Luar” (“Clair de Lune”), por sua vez, seria a inspiração para o terceiro e mais conhecido movimento da Suite Bergamasque, de Debussy (1890) e que também inspiraria Fauré (traduções de Onestaldo de Pennafort, da edição da Globo, de 1945):



Luar

Tua alma é uma paisagem de outros dias
Por onde, ao som de alaúdes, vão passando,
Quase tristes nas suas fantasias
Bergamascos e máscaras dançando

E cantando em surdina a vida bela,

E o amor vitorioso eles tem o ar
De quem de tudo e de si duvida
E o que eles cantam vai se o no luar
No claro luar cheio de encanto e mágoa
Que faz sonhar os pássaros nas árvores
E soluçar de êxtase os jorros d’ água
Os grandes jorros d’água esbeltos entre os mármores



“Pantomima” parece ser o poema que melhor sintetiza Verlaine nas Fêtes Galantes com relação á forma como ele alegoriza a commedia dell’arte, fazendo uso de humor e descritivismo. Ele escolheu "pantomima", arte típica da commedia, como assevera Angela Materno (1994) cujo significado pode ser arte para expressar sentimentos, idéias de atitudes, gestos ou parte imitou.

O poema é como um quadro descritivo em vários planos. Há quatro personagens da commedia dell'arte, três homens e uma mulher com uma progressão. Pierrô é um ser que tem preocupações muito materiais.

Cassandra tem preocupações emocionais: ele está preocupado com o destino de seu sobrinho e parece ser isento de paixões; Arlequim parece ter preocupações afetivas sentimentais: ele pensa abordar esta preocupação pelo rapto mas não mede consequências; Colombina é a que realmente soa ter alguma preocupação amorosa.

A primeira estrofe descreve pierrô. A segunda mostra outro personagem do mesmo estilo (Cassandro) mas independente. Já na terceira, arlequim é mostrado como servo, como na sua representação original, no teatro.



Pantomina


Pierro não é um clitandro em nada
Previdente, cai numa empada
E esvazia um frasco de vinho

Cassandro ao fundo da avenida
Verte uma lágrima sentida
Por ter deserdado o sobrinho

O astucioso arlequim combina
O rapto audaz de colombina
E faz quatro piruetas no ar

Colombina sente, indecisa
Um coração bater na brisa
E ouve seu coração falar



Em “Colombina”, Pennafort diz que, além da parada de fantoches, o poema descreve a ronda dos leandros, cassandros, pierrôs e arlequins, sempre às voltas com o eterno feminino, com a imortal, a amorosa, a cruel e a um só tempo generosa colombina, que os conduz para o éter, parábola dos sexos (p.167). Leandro, personagem da commedia italiana que personifica o Belo, terror dos maridos, é transportado para o teatro francês de tal modo que ele passou a ser o “tolo Leandro”. “Nas comédias de Molière, ele é o filho de família, ingênuo e incauto, que se deixa levar pelo primeiro que passa”.

Colombina

O tolo Leandro
De capuz cassandro
Pierrot

Que o sarçal com um salto de pulga bem alto pulou

Também arlequim
Esse malandrim
Fantástico
Louco em seu trajar
De máscara o olhar
Sarcástico

Do mi sol mi fá
Todos eles à porfia
Dançam rindo diante
De uma linda infante
Sombria
De olhar esverdeado
Das gatas
Que oculta o seu dom
E abaixo diz com as patas
E eles vão em bando girando, girando
Ó astrais
Fatídicos signos
Para que destinos fatais
A infante em zumbaias
Lesta e erguendo as saias
Curtíssimas
De flor no chapéu
Conduz seu tropel de vítimas?





Conclusão

Lembro de ter lido as Fêtes Galantes há vinte anos, no mesmo volume que pesquisei sobre Verlaine pela primeira vez, a edição da Biblioteca dos Séculos, da Globo. Sempre me despertou a curiosidade a forma como um pintor fosse transposto para a literatura. Quando tive o interesse em discorrer sobre o tema, pensei imediatamente em analisar a obra de Watteau e reler o livro.

No entanto, quando fui colocar as ideias no papel, me dei conta de algo que não tinha se passado pela minha cabeça: por que Verlaine decidiu transcriar os temas das festas galantes do século XVIII?

Foi quando descobri o pequeno volume do Norbert Elias sobre o pintor. Na segunda parte do ensaio, ele se debruça sobre a questão da geração de nerval, certamente antecipando o simbolismo de Baudelaire em diante, e a questão do imaginário social, ou seja, todo o conjunto de práticas simbólicas que correspondem ao universo de uma cultura ou subcultura, o que se verifica no que foi aquele renascimento do interesse pelo rococó em pleno Romantismo.

Ao verificar a gênese das Fêtes, Pennafort listou as possíveis influências de Verlaine na construção do ciclo de poemas sem, no entanto, referir-se à questão do imaginário social dos boêmios da geração de Nerval e a construção da utopia, a orientação ideal de viver deles, contra o estabilishment e a cultura e valores burgueses em favor de uma nova visão do que é o esteta em pleno século XIX, ressignificando aqueles valores artísticos do Antigo Regime.

A utopia dos boêmios podemos entender não como algo inexequível, mas, como uma proposta de organização do cotidiano de um determinado grupo ou subgrupo, no sentido de exteriorizar uma visão de mundo, de certa forma, revolucionária para a época. Citando o próprio caso de Nerval, em seu caminho ao cadafalso da loucura.

Elias entende que essa utopia cobrou um preço alto: no caso de Verlaine, ainda tratando-se de uma juvenília, mas ainda empunhando a bandeira dos “boêmios galantes”, no caso deles, desse projeto de mundo, o que restou foi a imagem de outsiders.

Enquanto outros de sua geração, como Mallarmé, foram considerados expoentes do modernismo, parece que a história guardou ao autor das Fêtes a pecha de autor maldito, não transcendendo a esfera do simbolismo e do fim de século que a sua poesia simbolizou. Fato esse que não diminui em nada o valor da obra de Paul Verlaine.

Ao mesmo tempo, transitando no campo fértil da interdisciplinaridade, a permanência de Watteau em Verlaine mostra um caminho singular: um gênero específico de teatro influenciou a cultura francesa no começo do século XVIII no terreno das artes plásticas.

Mais tarde, o pintor belga influenciaria uma plêidade de poetas em pleno Romantismo para as fronteiras da literatura, chegando em Verlaine, cuja sugestão musical (que reside, antes de tudo, em sua profissão de fé “antes de tudo, a música”) para, a partir dele, chegar à música propriamente dita, com as Suites Bergamesques, de Debussy, traçando um percurso que amalgamou, a um só tempo, tão diversos universos das artes em geral.

Referências:


ELIAS, Norbert. A peregrinação de Watteau à Ilha do Amor. Zahar, 2005.
GOMBRICH, Ernst. História da Arte. LTD, 1999.
MATERNO, Angela In: BRANDÃO, Tânia (org). O Teatro Através de História. Entourage, 1994, vol. 1
PENNAFORT, Onestaldo. In VERLAINE, Paul. Poesias Escolhidas. Globo, 1945.
PENNAFORT, Onestaldo. Advertência. In: Festas Galantes, Civilização Brasileira, 1983.
PLAX, Julie-Anne. Antoine Watteau : perspectives on the artist and the culture of his time. Newark : University of Delaware, 2006.
KLEINER, Fred. Gardner's Art Through the Ages: A global history. Wadsworth Publishing, 2012

Tuesday, July 25, 2017

Memórias de um Analógico



Matéria da Nexo de 2016 diz: A última geração que viveu o mundo completamente analógico — e portanto pode comparar a espera off-line e a on-line —, não terá mais representantes em cerca de 40 ou 50 anos.

Fiquei pensando: o tempo passou e nem parece que passou tanto tempo. A gente era da geração Almanaque Abril e tinha que fazer pesquisa para o colégio na Biblioteca.

Isso quer dizer que, daqui a uns 40 anos, a gente vai ser uma geração que pisou no barro do analógico. E pensar que já existe gente que não pode imaginar como era a vida há pouco mais de três décadas atrás.

Passando para o lado da música. Hoje você ouve todos os discos do Hendrix no Spotify. Naquele tempo, você poderia passar toda a vida sem ouvir um único e escasso disco dele. De repente, poderia ver cenas da apresentação dele em Woodstock e aquilo ser a única lembrança "visual" do Jimi. Ou quem sabe, aquela revista de rock poderia resolver (sabe-se lá por que) publicar uma matéria sobre o Hendrix. E a gente recortava a matéria e guardava como se fosse hoje uma página da Wikipedia em PDF.

Meu choque foi descobrir da forma mais bizarra que toda a minha coleção de discos - que eu levei pelo menos uns bons vinte anos juntando em sebos por aí, se eu tivesse inventariado todos, eu poderia ter tudo aquilo em formato digital. Talvez aquilo coubesse em pouco espaço.

O curioso é que, olhando em retrospectiva, a gente percebe que não dá para se gabar dos "velhos tempos". A verdade é que, há trinta, quarenta anos atrás, tudo era mais difícil. Se você souber utilizar a Internet a seu favor, você pode ter a oportunidade de ter muito mais conhecimento em menos tempo. Tudo depende de como você utiliza ele, o seu tempo.

Hoje existem os saudosos do "velho vinil". Já devo ter comentado isso aqui antes. A verdade é que isso é uma grande bobagem. A verdade é que a gente penava para catar música. Hoje o que atrapalha é o link expirado do rapidshare. Naquele tempo, era o disco que não existia e o dinheiro que não pagava o vinil que tinha fila para comprar.

Lembro que lá por 1990 ou 1991, apareceu nas lojas de disco daqui esse álbum, intitulado Rock the Beat Boom (1962-1967). O disco é uma seleção mcom Trashmen, Swinging Blue Jeans, Gerry And the Pacemakers, Hollies, Paramounts e Dave Clark Five (é basicamente material da British Invasion, como se pode ver).

O curioso é que o disco não tem nenhuma informação sobre sua origem, e eu nunca soube e nem perguntei. O fato é que todas as gravações são originais. Naquele tempo, muito antes da Internet, esse material era muito raro e era inacreditável encontrar isso despejado nas lojas de discos.

Acontece que, mesmo depois do CD, a maioria das gravadoras não se interessava com catálogo velho. Ainda mais tratando-se de artistas estrangeiros. No máximo, lançavam alguma coletânea, mas só com artistas que realmente haviam feito bastante sucesso no Brasil, como Beatles, Johnny Rivers, Rita Pavone, etc.

Se você quisesse um disco dos Swinging Blue Jeans, eu sabia que um álbum deles havia sido lançado nos anos 60. Porém, como era de se esperar, ele não foi relançado novamente. Quem tem ele, possui uma raridade. Raridade em termos: naquele tempo, um disco desse era raro. Hoje, toda a discografia da banda - um conjunto de Liverpool — está na Internet.


Prá se ter uma ideia do repertório do disco Beat Boom: há o primeiro compacto dos Hollies, com Stay, o grande nº1 do Dave Clark, Glad All Over, Hippy Hippy Shake com os Swingin' Blue Jeans e três faixas da trilha do filme Ferry Cross the Mersey. Todas essas canções estavam fora de catálogo há mais de vinte anos.

Me recordo que ele ainda era encontrado em em balaios de lojões como o Palácio Musical, até sumir de vista e virar ítem de colecionador. Ou não, já que, na verdade, não passa de um disco ordinário - ainda mais hoje. Porém, na época, era a única forma de ter acesso a esse tipo de material.

Para se ter uma ideia: discos do Dave Clark Five eram lenda urbana. Até mesmo na época do CD, porque o Dave, que é o dono dos fonogramas da banda, relutou por décadas em relançar o material - que, oficialmente, não saiu completo, apenas em coletâneas, primeiro só em mono, depois em estéreo. O que não quer dizer que, nesse meio tempo, como aconteceu com tantos discos de vinil,. acabaram sendo ripados em formato digital pela web por aí.

Isso é o que era ser analógico: ter um disco deses, para ter acesso a um material inacessível e que hoje qualquer um acha na Internet. Hoje você conhece uma banda, ouve uma música na segunda, baixa um disco na terça, a discografia na quarta e vira ã roxo desde criancinha no sábado.

Pelo menos disso a gente não vai ter saudade: de ser analógico.


Saturday, July 08, 2017

Edward Mãos-De-Tesoura e Frankenstein: diálogos e digressões



Quem lê pela primeira vez Frankenstein, de Mary Shelley, dificilmente passa incólume puro das diversas adaptações que apareceram nas últimas décadas. De todas as adaptações existentes, é impossível não passar pela forma icônica como a versão cinematográfica de James Whale (1931) para a Universal.

Isso é tão presente que foi esta versão que iria entronizar a imagem do monstro verde e a do cientista megalomaníaco pela indústria de massa afora. O argumento do filme, aliás, já era uma versão de uma dramaturga britânica, Peggy Webling, que fez sucesso na Broadway, e seguiu o mesmo caminho de uma adaptação do Drácula para os palcos.

A partir da versão de Webling, a sétima arte soube apropriar-se bem da forma como ela transformou a história num thriller, quase que feito para um público típico da tela grande. Tanto que, se pensarmos bem, Frankenstein acabou tornando-se a primeira franquia da história do cinema (com as respectivas sequências em 35 e 39, e outras mais, também produzidas pela Universal).

De 1910, quando Thomas Edison produziu a primeira adaptação paras as telas, o número de filmes já passou de cinquenta versões — isso sem contar adaptações livres. Destas, que naturalmente fogem a uma classificação objetiva, mas que evocam o tema da criatura e do criador, podemos citar Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands, Tim Burton, 1990).

O filme, que pega justamente esse mote criador e criatura, e seus subtema — bastante enfatizado em muitas versões cinematográficas do romance de Shelley: o da rejeição do diferente e ao que parece anômalo, segundo José Geraldo Couto (1998) característica de todas as sociedades, em especial das sociedades de massas.


Edward e Pinóquio

O filme de Burton pode ser classificado como uma fábula moderna. Ao contrário do romance, que possui características da literatura gótica típica do século XIX, e das adaptações em filme, que exploram a questão do mórbido e do terror, como fábula, Edward Mãos de Tesoura dialoga com As Aventuras de Pinóquio, de Collodi. No conto, Pinóquio é uma marionete viva. De certa forma, Edward também é uma marionete.

No entanto, ao contrário do livro de Mary Shelley, a relação entre criador e criatura em Edward e seu criador é mágica e pacífica como a de Gepetto com Pinóquio. Enquanto Gepetto sonha em ter um filho de verdade, Victor Frankenstein quer lograr o experimento de infundir vida a partir de restos humanos. O velho inventor de Edward aproxima-se do marceneiro de Collodi; no entanto, ele morre e deixa seu boneco inconcluso. A falta de mãos em Edward acaba tornando-se seu calcanhar de Aquiles.

Em Pinóquio, também vemos inspiração em Edward Mãos-de-Tesoura pelo fato de que ambos os personagens são ingênuos levados para o mau caminho. No entanto, enquanto Collodi conclui seu livro com um final feliz, o mesmo não acontece no roteiro de Burton, onde a única solução para o protagonista é o exílio e a solidão — mesmo destino do monstro de Shelley.


Edward

Edward Mãos-de-Tesoura não se trata exatamente de uma adaptação direta do romance de Mary Shelley. Mas, mais do que e, além disso, insere-se dentro de uma tradição tanto literário/narrativa quanto cinematográfica de uma ideia que nasceu com o romance.

O filme, pois, possui um enredo diverso, se passa em outro tempo e outro lugar. Contudo, dentro da moldura de fábula moderna, como diz Woods (2011), ele dialoga não apenas com elementos que evocam a literatura gótica do Século XIX quanto com a própria tradução do cinema de horror.

Edward Mãos-de-Tesoura é “filho” de um inventor (como em Pinóquio) que morre deixando sua criação inconclusa. Tempos depois, uma ambulante de cosméticos o encontra e adota Edward, que fica conhecido em todo o bairro.

Mesmo sendo uma figura excêntrica, todos gostam dele, Kim, menos a filha da vendedora. Para conquistá-la, ele é induzido a cometer um furto. Preso, começa a partir daí a “queda” do herói: o bairro se volta contra Edward, menos Kim, que descobriu que ele cometera o crime por ela. Edward, que logo descobriu que todos queriam aproveitar da sua gentileza, resolve escapar. Porém, outros conflitos apenas confirmam a falsa imagem de criminoso dele perante a cidade e a falsa cordialidade das pessoas com relação a ele.

Novos conflitos fazem com que ele seja perseguido pelos habitantes da cidade. Sem destino, foge para o castelo de seu criador. Jim, namorado de Kim, decide ir atrás dele e matá-lo, após ser rejeitado por ela, que declara seu amor a Edward. Os dois brigam, e Jim morre. Kim deixa o castelo e revela que ambos tombaram na luta.



Frankenstein


No romance de Mary Shelley, o subtema da rejeição do diferente e ao anômalo, como enfatiza Couto (op. cit) é recorrente em várias adaptações do filme. A questão é que, de adaptação a adaptação, existe uma tradição da história recriada que deixa muitas das ideias do livro para trás. Em Frankenstein, vemos que a necessidade de contato entre as pessoas é recorrente: o monstro busca travar contato com outras pessoas. O Capitão Wolton, narrador da novela, procura um amigo, com quem possa conversar e se identificar, e encontra em Victor essa pessoa.

Um parêntese: ao contrário de praticamente todas as adaptações conhecidas, a concepção da narrativa proposta por Shelley foi bastante subestimada. Ela concebe a história a partir de um romance epistolar — Wolton escreve cartas para a irmã, quando ocorre o incidente: ele trava conhecimento com Victor Frankenstein e, a partir dali, sua veia de narrador frustrado vem em encontro ao relato fantástico do doutor.

A partir dali o capitão dá a voz ao criador do monstro, que conta a sua vida e sua desgraça a partir da sua terrível e sanguinolenta experiência. O monstro, que aparece distante nos primeiros capítulos, aparece no centro do livro, quando este conta a sua trajetória desde que fugiu do claustro, como Ulisses no Livro IX da Odisseia: é a história dentro da história, até a retomada do fio da história, que termina na cena inicial.

Patinho Feio

A trajetória da questão da 'rejeição' ao diferente em Edward Mãos-de-Tesoura. Num primeiro momento, mesmo sendo o diferente no grupo, ele é aceito. No entanto, quando ele comete um erro, além de não ser perdoado, ainda paira sobre ele certa desconfiança que recai sob seu aspecto 'estranho'. Ou seja, Edward é um monstro que, num primeiro momento é aceito e, em outro, é rejeitado e perseguido, mesmo sem culpa real sobre seus atos. Ele apenas paga o preço por ser ingênuo e bom.

Como Edward, o monstro de Shelley é bom. Ao contrário da criatura entronizada pelo filme de Whale, ele é um ser inteligente e sensível. Aprende a ler e a falar (capítulo XV), lê Goethe, Plutarco e Milton. Porém, quando tenta entrar em contato com a civilização, ele é rejeitado.

Na floresta, ele conhece a família De Lacey, Felix e Agatha. Sabendo de seu aspecto monstruoso, prefere ficar á distância, como um espírito abençoado, ajudando-os ao cortar lenha e deixar á medeira à disposição deles.

Como o pai deles é cego, na ausência destes, o monstro tenta travar contato com o ancião. Como ele não pode ver a criatura, eles ficam amigos (a cena é recriada por James Whale em A Noiva de Frankenstein, de 35). quando Felix chega, considera o monstro uma ameaça, e o ataca. Sem saída, só lhe resta fugir.

Ainda no aspecto da rejeição, um elemento que é pouco explorado (exceto por adaptações recentes para o cinema, como as de Kenneth Branagh, de 2004, e Kevin Connor, de 2004), que é a relação pai/filho no romance. Desiludido, o monstro procura seu criador, Victor. Ali ocorre um ajuste de contas. O médico rejeita a criatura. A relação entre o monstro e seu mentor, no entanto, é ambígua.

A criatura convence Victor a fazer uma mulher para ele (Whale, por sua vez, usa a ideia para a sequência de 35). Depois, desiste de realizar o desejo do monstro, que o pune, matando a mulher de Victor, e Clerval, melhor amigo de seu criador. A ira da criatura reside apenas em fazer o mal a Victor, e mais nada. Porém, a partir daí, o médico não vê outra saída a não ser eliminar fisicamente o monstro — daí a jornada desesperada do pai contra o filho.

Mesmo que Victor rejeite totalmente sua criatura, a cólera do monstro não o transforma num serial killer. Ele apenas cumpriu sua vingança, fazendo todo o mal possível ao seu criador. Contudo, o ódio irracional provocado pela rejeição de Victor contra seu “filho” o prende a ele para sempre, até o paroxismo de uma perseguição que os leva até o Polo Norte — quando o perplexo Capitão Wolton testemunha a justa entre criador e criatura, e a morte daquele.

A ira do monstro contra o seu criador, por causa da recusa deste em conceber uma companheira para ele, como um Aquiles, provoca um ciclo vingativo que só encontra termo com a morte de Victor.

No caso de Edward Mãos-de-Tesoura, a relação entre criador e criatura é quase análoga à de Collodi. Não existe nenhum conflito de ordem parental. Edward não põe a culpa no cientista por ser imperfeito. Aliás, ele sequer parece resignar-se com sua má fortuna. Já o monstro do livro, a despeito de ser um espírito sensível (afinal, ele pensa a respeito da condição humana e da impossibilidade de sua inserção na sociedade como um igual), transforma sua anomalia num cavalo de batalha.

A questão da rejeição nos filmes de Whale também é omitida: ao contrário do Frankenstein de Mary Shelley (e de Peggy Webling), o monstro da Universal não pensa, não fala, e tem o cérebro de um assassino. Ao mesmo tempo, o Dr. Frankenstein entende sua criatura tão somente como um experimento que saiu de seu controle. O elemento que o une ao “filho”, o apelo parental inexiste nas adaptações para o cinema em geral — e a imagem que perpassa pela cultura popular a partir de então é a criatura grosseira e esverdeada da Universal.


Outros diálogos

Ao mesmo tempo em que vemos incidentes no roteiro de Burton que dialogam com o livro de Shelley, é possível perceber que o filme dialoga tanto com narrativas de fábulas e outras adaptações de Frankenstein, como a de James Whale, de 1931.

Uma, já citada, é a relação entre o cientista e Edward, que lembra Pinóquio, além de outros aspectos, como a 'queda' moral do herói (ou anti-herói), já que muitos interpretam o livro de Collodi como épico (mas aí é outra história).

Um fator interessante que une Frankenstein de Shelley com Edward Mãos-deTesoura é a presença do símbolo do gelo e da neve como algo distante e inóspito no fim de ambos os personagens. Em Shelley, o mostro parte para o Pólo Norte, onde parte para encontrar o seu fim; Edward volta para o seu castelo onde, ao construir artística e incessantemente formas e figuras de gelo, involuntariamente faz com que a neve caia sobre a cidade onde viveu. Fica daí, de certa forma, a perene imagem neve-frio como símbolo invernal desse isolamento que é, também, um símbolo da alma de ambas as criaturas.



O final de Edward, quando ele é perseguido pelo populacho em fúria remete, com efeito, ao próprio filme de Whale. Na história (que passa á revelia do romance de 1818), o monstro encontra uma menina e joga-a num lago, sem saber que a matara. A partir daí, todos perseguem a criatura a fim de linchá-lo. Ou seja, aqui já temos um intertexto da adaptação.

Outro exemplo de “reintertextualização” do cinema no cinema é a imagem de Edward. Ele é uma figura magra, toda de negro, e com uma indomável cabeleira de maestro, o que faz lembrar de Cesare, o misterioso ajudante do Dr. Caligari, do clássico do expressionismo alemão de Robert Wiene. Além disso, os trejeitos de Edward, a forma de se portar, o olhar pueril e curioso evocam o Vagabundo, dos filmes de Chaplin.



Conclusão

Tim Burton, ao abordar os temas da alienação, rejeição do protagonista e a sua inocência diante de um mundo novo no qual ele não é capaz de inserir-se, mesmo que não seja uma adaptação direta, ela remete, de forma considerável, a motivos que estão presentem no livro de Shelley, e que foram colocados de fora em muitas, para não dizer, a maioria das demais adaptações do romance.

Assim como Edward, o Frankenstein de Shelley é sensível, cordial, idealista. Autodidata, aprende a ler — e justamente O Paraíso Perdido, que é a epígrafe do romance.

Porém, ao encarar a realidade, percebe a total impossibilidade de adaptação, dada a sua aparência grotesca. No entanto, enquanto o personagem de Shelley revolta-se contra seu criador, Edward vê-se numa encruzilhada: o homem que o produziu não pôde viver para conclui-lo. Mesmo assim, e talvez por isso mesmo, ele apenas resigna-se. Ao contrário de Frankenstein, que descarrega sua ira em seu “pai”, e vocifera: “Maldito dia em que recebi a vida”.

Edward revolta-se contra as pessoas que o maltrataram e o corromperam. Sente-se usado e mal compreendido. Também faz o bem e recebe o mal. Mas, enquanto Edward vê a hipocrisia das pessoas, o monstro de Shelley é julgado apenas pela aparência.

O que há de comum entre ambos é que, no fim, é possível vislumbrar que, mesmo corrompidos pelo meio, nenhum deles perdeu de todo o sentimento humano. Mesmo rejeitado totalmente por seu criador, ele é incapaz de tocá-lo, mesmo que faça todo o mal possível a todos ao redor de Victor.

À guisa de conclusão da edição brasileira de Frankenstein (1998), José Geraldo Couto discorre sobre o tema da rejeição em Frankenstein ressaltando esse elemento do romance como uma alegoria dessa rejeição das pessoas em face daquilo que lhe é estranho, exótico, diferente, salientando que essa é uma característica de todas as sociedades, em especial da sociedade de massa (p.220).

Para ele, nessa perspectiva, o monstro de Frankenstein que, no fundo, é um ser doce e amável, seria um símbolo dos excluídos, uma espécie de mártir da intolerância e do preconceito.




Fontes Consultadas

BURTON, Tim. Edward Mãosd-de-Tesoura. https://youtu.be/EYGAuIv2xKI Acessado em 25/05/2017. EUA, 1990, 105 min.
SHELLEY, Mary. Frankenstein. Ediouro, 1998.
WHALE, James. Frankenstein. https://www.youtube.com/watch?v=-7PdzAVX7mI Acessado em 25/05/2017. EUA, 1931, 71 min.
WHALE, James. A Noiva de Frankenstein https://youtu.be/1GdwWIU-KtY Acessado em 25/05/2017. EUA, 1935, 80 min.
WOODS, Paul. O Estranho Mundo de Tim Burton. Leya, São Paulo, 2008.

Wednesday, July 05, 2017

Sultans of Swing



Esses dias estava eu zapeando o rádio do celular pela rua afora quando tocou Sultans of Swing em duas emissoras quase que ao mesmo tempo.

Lembro dos gloriosos tempos do jabaculê no rádio, nos anos 80. Também lembro de certos artistas ou cantores que eram tão incensados que tocavam, às vezes, na hora das mais pedidas (fim da manhã ou fim de tarde nas programações em geral) quase que as mesmas músicas rodando simultaneamente.

Um exemplo foi o "Melo do Marinheiro", do terceiro disco dos Paralamas. Você podia rodar o tuning do aparelho e pegava a música tocando ao mesmo tempo em até cinco rádios diferentes.

Creio que nunca, em toda a história da indústria da música, houve uma total e irrestrita veneração pelo imediatismo como nos anos 80. Parecia que você deveria estar completamente integrado aos anos 80. Do contrário, você seria um pária. Ao mesmo tempo, quem tivesse vindo antes e não aceitasse integrar-se àquela cultura imediatista e feérica, seria taxado de anacrônico.

Isso em parte explica por que tantos músicos dos anos 60 e 70 derraparam nos anos 80. Entre fazer o que sempre faziam ou produzir para o novo público da MTV, eles se perderam nos anos 80. Hoje, a maioria dos sobreviventes relembram apenas dos primeiros sucessos. Os anos 80, para eles, não existiram.

Não sei se existe uma teoria da conspiração sobre isso, mas a verdade, é isso já foi dito aqui outras vezes (e vale a pena ser redito): os anos 80 fizeram de tudo para que tudo o que foi feito antes fosse esquecido. No fim das contas, foi a última época em que esse desejo insaciável pelo novo foi capaz de tentar apagar o passado.

Digo isso porque, no fim dos anos 80, lembro de ter descoberto o Dire Straits a partir de uma retrospectiva deles lançada em CD, o Money For Nothing. Eles haviam quebrado recordes com o último disco, o Brothers in Arms. No entanto, a música daquele conjunto inglês fazendo um country-folk-rock em plena época disco e punk soava estranho ao mundo do disco.

Aqui, por exemplo, lembro que descobri Sultans of Swing. Ficava ouvindo aquilo dezenas de vezes. Claro que, na intenção de fazer com que outros ouvissem, como a gente ficava ligando para as estações de rádio. Aliás, era justamente isso que fazia com que a gente ficasse enchendo o saco do pessoal das rádios, principalmente de madrugada — para ver só, numa época do rádio quando existia programação ao vivo nesse período.

Pois lembro que a maior parte da programação das 'grandes' era puro jabaculê. Poucas cediam a esse apelo. Nada de estranho nisso. Por sinal, passando pelo aval do público, pelo menos a gente sabia o que era descaradamente vendido e o que caia realmente no gosto dos ouvintes. Ou, pelo menos, estranhava quando uma determinada música tocava mais do que a nossa paciência fosse capaz de suportar.

O problema é que, no fim das contas, não havia, como hoje, espaço para revival. A maior parte da programação era direcionada e, em quase sua totalidade, lançamentos. A conta é que, por toda a década, essa demanda do inédito foi apagando o passado. diferente de hoje, onde a Internet serve como database, sedimentando a história desses processos culturais; Muita coisa foi sendo solapada naqueles anos em favor das mais pedidas. Muitas músicas, artistas, discos, tudo foi ficando na poeira do tempo.

Quando eu pedia incessantemente Sultans of Swing, lá por 89, a música tinha uma década. Já era velha demais para aqueles tempos. Como as rádios funcionavam com cartuchos ou com promos (aqueles bolachões de 33 com apenas uma música, cedidos pelas gravadoras). Ligava para o Nilo Cruz, na Ipanema. Eles tocavam a única versão que eles tinham, a do Alchemy ao vivo; a Universal eles me diziam que o único disco que eles tinham com a música estava rachado.

Um dia eu acabei comprando o disco, mas em fita (no tempo quando a gente comprava fita gravada na loja). E, depois, como acontece com todo mundo, fui ouvir também outras coisas.

Mas, passado tanto tempo, eu vejo que o rádio mudou. Não é aquela indústria vital como nos anos 80, quando rolava muita grana. Mas — curioso! Todas as rádios que hoje, pelo menos, no dial da Grande Porto Alegre (que musicalmente não é tão extenso e intenso como nos anos 80) o clássico dos Dire Straits toca em todas.

É incrível pegar um exemplo como esse para ver uma música que, num percurso diacrõnico, passou por um processo de esquecimento total e reconhecimento. Hoje, ela é mais clássica do que era quando já era clássica, isto é, quando da época do lançamento daquela coletânea.

Uma música que não enjoa. E que marcou a vida de tanto garoto dos anos 80 que queria ouvir rock nos anos 80, uma década cheia de new romantics, de pop, synth, eurodance e teclados escorrendo pelas paredes, por todas as partes. dire Straits foi a nossa resistência, e marcou a vida de tanta gente e a minha também.



Saturday, June 10, 2017

O sprecher: Diego Velázquez através do espelho


Las Meninas

No livro Traçando Madrid (1997), Luís Fernando Verissimo narra sua estada na cidade espanhola, sendo ciceroneado pelo espírito de Goya (espirituosamente da mesma forma que Malazartes em Gato Preto em Campo de Neve, de seu pai, Erico).

No capítulo cinco, encontramos o cronista no Museu do Prado. Dentre tantas pinturas que ele observa, Verissimo presta atenção no Las Meninas, de Diego Velasquez (óleo sobre tela, 1656).

O quadro mostra uma cena trivial. Velázquez em seu estúdio, no Alcazár, antigo aposento do falecido príncipe Baltasar Carlos. Os reis de Espanha observam seu trabalho quando a Infanta Margarida irrompe em cena com um séquito, como se buscasse um espaço no meio da composição.

Sobre Las Meninas, Ernest Gombrich (1999), pergunta: “o que significa exatamente tudo isso?”, Ele mesmo responde: “é possível que nunca o saibamos, mas eu gostaria de imaginar que Velázquez fixou um momento real de tempo muito antes da invenção da máquina fotográfica” (p.287).

À guisa de interpretação, ele diz: “talvez a princesa lenha sido trazida a presença de seus régios pais a fim de aliviar o tédio da pose para o retrato, e o Rei ou a Rainha comentasse com Velázquez que ali estava um tema digno de seu pincel”, explica.

Para ele, as palavras proferidas pelo soberano são sempre tratadas como uma ordem e, assim, é provável que devamos essa obra-prima um desejo passageiro, e que “somente Velázquez seria capaz de converter em realidade”.

Arriscando uma interpretação, Verissimo lança mão de um conceito de sprecher (conceito que roubo dele — e que provavelmente tenha sido invenção do cronista, já que não encontramos cognato em cinema ou estética) para tentar olhar além do mero observador. Mesmo que sobre a obra-prima de Velázquez existam aos milhares, é interessante pegar carona com seu olhar diante da pintura.

Para o autor do Analista de Bagé, o sprecher (ou o “orador”, em alemão) é a “figura que, num tableau ou numa cena de multidão, está olhando, por assim dizer, para a câmera, e que é uma constante na história da pintura”. Ele explica que o sprecher raramente é a figura principal do quadro: “Não é um queixudo habsburg retratado por Velázquez ou um arrogante burguês pintado por Rembrandt, que olham para o pintor e para a posteridade como se olhassem num espelho, e cujo olhar não ultrapassa o verniz”, explica.

Ele entende que o resultado é como se esse observador da obra fosse um coadjuvante que é colocado para “preencher o quadro” ou “equilibrar uma composição da tela”. Contudo, o sprecher se destaca por quebrar os demais personagens do quadro, que meramente ‘posam’. Ao contrário deles, o sprecher olha “para fora” do quadro como se olhasse para nós.

A teoria do sprecher como o personagem intrusivo que olha para fora parece ser corroborada por Luiz Roberto Lopéz, (1996, p. 101). No entanto, ele afirma que o personagem principal no Las Meninas é o espaço. Ele também entende que, ao olhar para a frente, o pintor olha para fora do quadro.

Já o rei e a rainha, para Lopez, são personagens ausentes, muito embora façam parte da composição. “fisicamente eles só existem como reflexos no espelho (…) é o espectador, postado diante do quadro, quem ocupa o lugar dos modelos reais”. Dessa forma, de acordo com o autor, “realidade e pintura se tornam uma coisa só e o expectador se transforma em parte do quadro”, conclui.

No quadro, Verissimo acredita que Velasquéz é o sprecher dele mesmo. "Las Meninas é uma pintura cheia de truques em que Velasquéz vai além da clandestinidade e nos pôe dentro do quadro, nos convida formalmente a entrar"(Verissimo, p.94).

Também parece concordar com Lopéz quanto à essa “troca” onde o observador olha “para fora” ao mesmo tempo em que o expectador é conduzido “para dentro”. “Ele, no quadro, está pintando um quadro, espiando detrás de uma tela. O que está pintando não fica claro, depende da interpretação”.

Para Verissimo, as meninas estão no primeiro plano, elas seriam o foco do retrato. Contudo, Velázquez está atrás delas, olhando por cima da cabeça delas, diretamente para nós. Ele observa o engodo do espelho ao refletir o casal real: “se a cena fosse real, hipoteticamente seríamos nós refletidos (algo parecido com o “engodo” do reflexo da Vênus no Espelho).

Dessa forma, segue o cronista, o Velázquez estava a pintar o casal quando, de repente, a infanta e as damas de companhia irrompem a cena, como num instantâneo (o que vai de encontro com a observação de Gombrich, de que Velázquez fixou o tempo antes do advento da fotografia). Ao mesmo tempo, todos nós estamos inseridos naquele instantâneo, “participando de tudo”, diz.

O mistério posto (Verissimo cita o teatrólogo e escritor inglês Sir Jonathan Miller) é que, se essa interpretação é correta, então deveria existir um retrato de Felipe IV e sua mulher. Essa pintura seria a “matriz” da cena; Las Meninas, por conseguinte, seria uma espécie de “fotografia de bastidores”, ou um “making of”.

Porém, se o artista espanhol estava retratando o casal (a pintura poderia ser um símile dos Esponsais dos Arnolfini, de Van Eyck, que foi grande inspiração de Velázquez. Miller dá a largada e lança uma provocação: se o pintor estava pintando o casal real, onde está a obra? (frase na verdade muitas vezes atribuída a Théophile Gautier). Verissimo responde que pintar fazendo uma pintura que nunca existiu talvez fosse um truque de Velázquez.

De remate, o cronista diz que, no fim das contas, não podemos nos queixar: “indiretamente, ele nos transformou em realeza e nos colocou na corte espanhola no século XVII sem precisarmos estar vivos naquela época e portanto mortos agora” (p.95).

Numa interpretação mais ousada, Verissimo pontifica que Las Meninas é uma reflexão sobre as relações entre arte e poder. Como o quadro é elaborado do ponto-de-vista do casal régio, Velázquez pintou-se não como ele se via, mas como seus patronos o viam.

A despeito de ser o pintor real, Velázquez era quase um criado (Felipe IV, como se sabe, chegou a condecorar o pintor; porém, nos espetáculos de corrida de touros, ele tinha que ficar na quarta fila, ao lado das criadas de quarto), e um intruso na intimidade do palácio.

O artista, nesse contexto, como observa o cronista, só existe e prospera em deferência do rei. “Mas pintando-se no ponto-de-vista do rei, Velázquez se coloca como rei(grifo nosso), pelo menos naquele momento da criação. Para Verissimo, pinta o próprio rosto como o rei o vê, mas pinta o rei refletido no espelho, portanto a imagem do rei pelo inverso, portanto, o rei errado”, conclui.


Narrativas

Voltando à teoria do sprecher de Luís Fernando Verissimo, poderíamos comparar o observador intrusivo dentro da composição da obra como efeito análogo ao que encontramos na “quarta parede”. Segundo Mário Lago (2011), ela é uma quebra de artifício, na qual o público olha a “verdade”, como que por meio do buraco de uma fechadura.

Ao mesmo tempo, Verissimo entende o sprecher é elemento voyeur na pintura. No entanto, entre ele e a plateia, existe o surpreendente contato (da quarta parede) que vira um foco desconcertante de atenção. “Estabelece-se um estranho contato, uma forma de cumplicidade [entre o espectador e o personagem da tela]”. Em Las Meninas, sendo Velázquez retratado olhando além da realidade da tela, ele quebra a ilusão divisória e “sai” do quadro querendo comunicar-se nos olhos do espectador além dos personagens do quadro, que simplesmente posam.

O olhar dele no nosso pode estar atravessando alguns séculos. Todos na pintura já morreram, o pintor morreu e continua ali, com seu olhar inquisidor posto no futuro. O único sobrevivente. Ou então está querendo nos dizer alguma coisa. Pode ser só uma mensagem do pintor. Só o que fica dos dramas e esplendores do mundo é esse contato mudo — que só perdurará enquanto houver olhos humanos para olhar o quadro e encontrar o olhar cúmplica do spretcher (1997, p.93)

Logo, de acordo com Verissimo, podemos entender que Diogo Velázquez, a um só tempo, teria feito uma inversão: um auto-retrato sob o ponto-de-vista do rei, colocando-se, disfarçadamente, em proeminência mas “protegendo-se ao colocar a Infanta Margarida em primeiro plano. De forma concomitante, com efeito, ele quebra a quarta parede da composição, explorando uma inusitada familiaridade com o espectador.

A quebra da “quarta parede” pode nos remeter á metalinguagem: em Las Meninas, além da primeira narrativa (o pintor retratando Felipe IV num quadro imaginário) há a ilustração de uma cena dentro da cena (a Infanta e seu séquito) e uma terceira cena, que é Velázquez flagrando-se no ato de pintar — o artista falando da sua arte ou, o pintor auto retratando-se como artista, onde esses vários planos concorrem ao mesmo tempo, num flagrante instantâneo.

Logo, abre-se a possibilidade de se pensar nessa intertextualidade entre o Van Eyck do casal Arnolfini (onde Eyck sutilmente pinta a si mesmo, embora no sentido de documentar o retrato, muito antes do truque do espanhol) e Velázquez, como se Las Meninas seja uma narrativa dentro de outra narrativa ambas dentro de uma terceira que emoldura as duas, que é metalinguística. Esta, por sua vez, nos faz pensar, enquanto tentamos entender o conjunto da obra, sobre o ato de pintar, ou o ato da criação.

Não indo muito longe, outro autor do Século de Ouro que lança mão da metalinguística é Cervantes. Numa cena dentre tantas no Dom Quixote, há a famosa história de dois inseparáveis amigos — Anselmo e Lotário.

O primeiro deles se casa e resolve fazer um teste de fidelidade logo depois das bodas, convidando seu amigo a ficar na casa dele com a esposa enquanto ele viaja. No fim, depois de tantas peripécias, o outro foge com a esposa e o marido traído, o curioso impertinente, vítima de sua mórbida curiosidade, comete suicídio (sintomático que nosso Machado de Assis não era indiferente a essa história do Cervantes quando ele resolveu escrever o Dom Casmurro).

Detalhe é que o cura devolve o livro ao dono da estalagem (a obra era de alguém que havia esquecido bagagem ali) e faz um comentário meio à guisa de crítica literária, achando a história ligeiramente inverossímil — porém não deixando de achar a história do triângulo amoroso muito “bem bolada”.

Então, a um só tempo, aqui nós temos também uma espécie de jogo de espelhos, onde há uma narrativa que abre-se dentro de outra (como lembra Borges ao referir-se às 1001 Noites) e, em seguida, um comentário a respeito dessa segunda narrativa, tudo concorrendo naquilo que Maria Augusta da Costa Vieira (2013) aponta no escritor espanhol, a sua tendência a experimentar formas de discurso, e gostar de “brincar com essas mesmas formas discursivas que existiam naquele tempo”.

Maria Augusta salienta que, com esse expediente, Cervantes desafia o leitor que, à primeira vista, não dá conta da complexidade de Dom Quixote. “Ele estimula o leitor para pensar o tempo inteiro sobre a própria arte da escrita”, diz ela.

Esse comentário a respeito da hipertextualização (aqui empregada mais no sentido de fenômeno intertextual) em Dom Quixote não passaria muito longe do que podemos apreender, nas artes visuais, de Velázquez? No Las Meninas também vemos esses dois expedientes: o de brincar com o espectador e o de estimulá-lo a pensar sobre a própria arte da pintura.

Finalmente, outro exemplo de hipertextualização podemos encontrar em Shakespeare. Como lembra Frank Kermode (2001) usa a metalíngua como efeito recorrente em seu teatro, (p.256). Nelson Rodrigues (1994) ilustra o fenômeno:


Você se lembra que, em Hamlet, acontece o seguinte: — de repente, o palco shakespeariano é invadido por um bando de comediantes e os recém chegados fazem piruetas, dão saltos mortais, dançam e declamam. A plateia fica atônita de beleza. É o teatro dentro do teatro, a poesia dentro da poesia, o sonho dentro do sonho (p 269)

Na cena II do 2º ato (2012), Rosencrantz informa ao príncipe da Dinamarca que uma trupe de saltimbancos chega a Elsinor. Halmet pergunta por que o grupo resolveu partir de Wittenberg e seu amigo informa que eles foram proibidos de atuar na Saxônia devido “ao que eles representam” (p.56).

Em seguida, Rosencrantz e Hamlet começam a debater a respeito de moda e protocolo na montagem teatral. Quando trava contato com a trupe, o filho de Gertudes debate com os atores desde a natureza do teatro quanto à sua representação no palco e suas contingências, ensaiam uma interpretação, ao mesmo tempo em que barganha a famosa interpolação que irá desmascarar o rei aos olhos de Hamlet.

No ato III, temos finalmente o teatro no teatro. Hamlet, que antes doutrinara a trupe, agora noutro plano é o voyeur do rei, descrevendo a reação do espectador singular. A plateia vê o teatro, o teatro no teatro e a peça sendo vista pelos olhos do sprecher da cena — o intrépido herdeiro do trono da Dinamarca, que faz com que nós sejamos cúmplices dele projetados como se víssemos os saltimbancos da coxia.




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Embora pareça movediço e carente de certa fundamentação teórica, o conceito de sprecher nos parece interessante no sentido de poder, na nossa opinião, amalgamar um conceito de arte visual com de linguística, onde pode existir mais coisas além do céu e a terra do que supõe o código.

Contudo, o conceito de Quarta Parede, oriunda do teatro e usado em escala fordista no cinema, é mais utilizado como expediente cômico, de forma a que haja, a título de chiste, uma quebra dos protocolos da representação cênica com o aliciamento de espectador.

No caso de Velázquez, é como se o pintor espanhol tivesse provocado o fenômeno, de acordo com Verissimo, de, ao mesmo tempo, atrair para si a realeza de sua arte ao colocar-se em primeiro plano de forma original, mas não com a intenção de comicidade, mas de fazer com que o espectador possa meditar sobre a natureza de sua arte, e da pintura em geral.

Isso faz com que pensemos nos vários planos que concorrem em Las Meninas e que nos fazem lembrar das palavras de Maria Augusta da Costa Vieira, que observa como, assim como Velázquez, seu contemporâneo Cervantes, também gosta de brincar com formas discursivas e colocar o leitor/espectador a pensar, quase que o tempo todo, sobre o próprio código a ser utilizado: a arte de pintar e a de escrever. O pensamento está ali, se exercendo o tempo todo. Daí decorre toda essa “mobilidade” da narrativa, que se desenvolve em vários planos. Ou, como dizia Montaigne: “quem perde a minha pista é o leitor desatento”.


Fontes consultadas:



CERVANTES, Saavedra, Miguel de. Dom Quixote: o cavaleiro da triste figura. 4. ed.
São Paulo: Scipione, 2010.

FILHO, Mário. Quarta Parede. Disponível em Acessado em 30/05/2017.

GOMBRICH, Ernst. História da Arte. LTC, 2001.

KERMODE, Frank. Shakespeare's Language. Penguin UK, Inglaterra, 2001.

LOPEZ, Luiz Roberto. Sinfonias e Catedrais. UFRGS, 1996.

RODRIGUES, Nelson. A Menina Sem Estrela. Coampanhia das Letras, 1994.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. LPM, Porto Alegre, 2012.

UNIVESP TV. Literatura Universal - Dom Quixote de La Mancha - Maria Augusta da Costa Vieira - Pgm 04. disponível em Acessado em 26/05/2017.

VERISSIMO, Luis Fernando. Traçando Madrid. Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1997

Wednesday, May 31, 2017

Album de Retratos




Olha essa foto aqui, minha bisavó, minha avó, minha tia e o irmão dela, todos vestidos de aqualoucos, ele está montado num burrico, na beira da praia de Pinhal. O burrico um senhor lambe-lambe passeia pela orla para tirar fotos com banhistas. Ao fundo, quase na linha do horizonte no mar, vemos a cauda do Nautilus. Logo atrás da minha bisavó, temos Poseidon, o Príncipe Submarino (correndo atrás do guarda-sol que o Nordestão acabou levando ele) e, com um chicabon, aquele cara de chapéu dos 18 do Forte.

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Da direita para a esquerda: Cláudio, Hamlet, Fortimbrás, Laertes, Horácio, Polônio (com um copo de quentão), Cornélio, Ofélia (morta), Bernardo, Francisco. Os sem cabeça são Rosencrantz e Guildsntern. O local é o castelo de Elsinor.


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Essa foi tirada na terra dos Feácios. Eu (de amarelo), depois Ulisses ao lado de Alcinoo, Nausicaa, Calipso, Cila, Eumeu, Euricleia, os lotófagos, Caríbdis, as sereias, Aquele com um olho só é o Polifermo. do lado dele, Ninguém.

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Essa aqui eu tentei tirar do Little Richard do fundo do palco, mas ele não parava quieto então a foto pegou só um pedaço do piano e a cabeça do baixista.

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Brahms na casa dos Fellinger. O dr. Fellinger e a mulher dele são os do lado direito dele. Pela cara do Brahms (de faróis baixos) e as garrafas vazias, certamente que a foto foi tirada na hora da saideira.

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Spencer Tracy, Katharine Hepburn, Katharine Houghton e... adivinha quem veio para jantar?


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Meu vô no Grêmio. Acho que é o Campeonato Municipal de 1927 (ou 26, mais provavelmente 26). Essa foto é bastante conhecida, mas ninguém conhece quem são os atletas na foto. O cara de branco deitado é o Lara. Meu vô é esse agachado com cara de velho mas com uns 19 anos ainda. O gordinho mulato à direita dele é o Adroaldo. O baixinho de pé no meio é o Luiz Carvalho.

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Eu com uns oito ou nove anos e o Garrincha no Churrascão Colônia lá em Curitiba. diziam que ele bebia, mas no jantar, ele não passou do guaraná.

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A Infanta Margarida, Dona Maria Agustina Sarmiento de Sotomayor, Dona Isabel de Velasco, Mari-Bárbola, Dona Marcela de Ulloa (atrás da dona Isabel), Diego Ruiz Azcona (lá na penumbra), Dom José Nieto (no fundo, na parte mais luminosa). Lá no canto esquerdo, dá prá ver o reflexo de Filipe IV e dona Mariana de Áustria (não queriam aparecer mas aceitaram ficar mais ao longe). O cara de bigodes pintando é o Velasquéz.

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Ligeiramente mareado, Dr. Victor Frankenstein. ao lado, o intrépido Capitão Wolton e o Monstro. ao fundo, um iceberg.

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Essa é a que eu mais gosto: Dante, Beatriz e Haroldo de Campos, nas margens do Letes.

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A luta pela liberdade e contra a opressão são o tema central deste folhetim que narra a história dos irmãos Coragem: João, Jerônimo e Duda, na fictícia cidade de Coroado. Tarcísio Meira é João Coragem, Cláudio Marzo é Eduardo Coragem (o Duda), Cláudio Cavalcanti é Jerônimo Coragem, Glória Menezes é Maria de Lara Barros Lemos e a Regina Duarte é a Ritinha.

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Uma bela selfie na lancha: Heidi Lamarr, Debbie Harry, Audrey Hepburn, o Gato, Rita Hayworth, Orson Welles, Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre, Fidel Castro, meu avô, John, Paul, George, Ringo e a sombra de uma vítima de Hiroshima.

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Alfredo e Violeta e as ciganinhas. O senhor contemplativo ao fundo com cara de poucos amigos é Giorgio Germont.


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No entanto, para dizer a verdade, hoje em dia a razão e o amor quase não andam juntos. É pena que alguns vizinhos honestos não se esforcem para torná-los amigos. Como vê, também posso ser espirituoso se houver ocasião.

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Dom Quixote, Sancho Pança, os galeotes, um vigário, Anselmo, Lotário e Camila. Ao fundo, parecido com um moinho de vento, um moinho de vento.

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A noite é linda
Nos braços teus
é cedo ainda
Pra dizer adeus

Vem
Não deixe pra depois
Depois
Vem
Que a noite é de nós dois
Nós dois
Vem
Que a lua é camarada
Em teus braços
Quero ver
O sol nascer

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De pé: Gainete, Sadi, Scala, Luis Carlos, Tovar e Laurício. Agachados: Valdomiro, Bráulio, Claudiomiro, Dorinho e Canhoto.

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Dumas pai, George Sand e a Condessa Marie d'Agoult. de pé, Hector Berlioz, Victor Hugo, Paganini, Gioachino Rossini. No piano, Lizst tocando provavelmente "A Mulher do Leiteiro". O busto em cima do pianoforte é Beethoven. Lá no fundo, na parede, um retrato de Byron e uma estátua da Santa Joana D'Arc na esquerda.

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Os apóstolos se agrupam em quatro grupos de três, Cristo no centro. Da esquerda para a direita da foto, segundo as cabeças, estão: no primeiro grupo, meu avô, Bartolomeu, Tiago Menor e André; no segundo grupo, Judas Iscariote, Pedro (cabelo branco) e João (imberbe); Cristo (fazendo vinho) no terceiro grupo, Tomé, Tiago Maior e Filipe (também imberbe); e no quarto grupo, Mateus (aparentemente com barba rala), Judas Tadeu e Simão Cananeu também chamado de Simão, o Zelote, por último.


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Essa foto é para entrar para a história realmente muito rara, está colada com uma espécie de moldura de papelão bem grosso. É Heinrich Schliemann posando feliz diante das ruínas de Tróia. Ao seu lado, vemos Aquiles, Tétis, Páris, Heitor, Pátroclo, Palas Atena, Apolo, Helena, Agamênon, Ajax, Nestor, Silvana Mangano, Anthony Quinn, Rossana Podestà e Dino De Laurentiis.


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Essa aqui, nunca antes vista, é do famoso Atentado de Sarajevo: foi tirada por um popular que passava as férias no local. Quando ampliada, podemos ver que, na verdade, o Arquiduque é, na verdade, um sósia. Isso comprova a tese de que Gavilo Princip fora realmente contratado para forjar a eliminação física de Francisco Ferdinando que, na verdade, não morreu. Apenas cansou daquela barafunda decadente que era o Império e decidiu mudar de identidade, fugindo para Buenos Aires através de uma ratline.

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Grande momento quando Alexander Selkirk é finalmente resgatado de uma ilha perdida no Pacífico por Woodes Rogers, que é o capitão do Duke. O sujeito ao lado de Selkirk usando um calção Adidas é Sexta-Feira, nativo da ilha.


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Essa aqui é clássica: Édipo, Tirésias, Creonte e Freud (com um charuto)


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Moulin Rouge, no Montmartre, final do século XIX. no primeiro plano, uma moça com o rosto branco pela luz do flash. Ao fundo, duas moças conversando e um senhor de cartola olhando para o lado. No centro, rodeando uma mesa, tomando absinto, vemos um senhor de barbas, uma senhora com o rosto verde, outro senhor desconhecido de bigodes, depois José Ferrer como Lautrec e Zsa Zsa Gabor (de costas).








Saturday, May 27, 2017

O Criador e a Criatura


Capa do relançamento do Pepper's

Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, chega aos 50 anos e, como não podia deixar de ser, com relançamento comemorativo e muitos comentários a respeito do álbum que é considerado um dos melhores discos de rock de todos os tempos.

Acho que não há praticamente mais nada a ser escrito a respeito do oitavo trabalho do grupo. Sobre ele, já escreveram-se milhares de artigos, dezenas de documentários e livros. O relançamento em caixa especial, por exemplo, vem com sobras de estúdio e toda a sorte de memorabilia a respeito, desde estojo em formato de bumbo até o fac-símile do famoso cartas do Mr. Kite.

Porém, ao invés de me somar à tudo o que já foi dito de positivo, prefiro debruçar-me sobre a versão dos oponentes do trabalho. Não pode questão de gosto, já que, com relação ao meu próprio, de fato, ele é ambíguo quanto ao álbum. Claro que sempre me entusiasma ouvir e reouvir o disco, porém tenho um interesse (mórbido?) em avaliar as opiniões em contrário ao mito do Pepper's.

Por exemplo, ao passo de que um musicólogo, John Covack, o define como "proto-progressivo". Por outro lado, Billy Childish, artista plástico, músico e queridinho de Kurt Cobain e Jack White considera o Pepper's "a morte do rock'n roll. Porém, antes de um ardoroso fã dos Beatles não se contenha e esteja a dois passos de meter a mão na cara dele, não deixa de ser sintomático que um dos primeiros críticos do disco foi John Lennon.

Aliás, isso deixou George Martin magoado por muito tempo. John falou mais ou menos o que poderíamos entender como morte do rock: que, pegando o mote de Covack sobre o Pepper's como precursor do progressivo, em entrevistas após a saída dos Beatles, Lennon dizia que o trabalho não era rock. Mesmo que eles tivessem sido pioneiros da aplicação de tecnologias como o Adicional Double Tracking (ADT) que, mais tarde, seria a doença fácil da própria era do progressivo — e John estivesse largamente engajado nesse processo, ele passou a renegar o Pepper's, como se ele fosse uma espécie de fraude feita por toneladas de overdubs e pós-produção.

O curioso é que, recentemente, o guitarrista dos Stones, Keith Richards, dourou a mesma pílula de Childish, chamando o álbum de 'rubbish'. Óbvio que isso atraiu a fúria de beatlemaníacos (principalmente os que detestam os Stones) e, com efeito, muitos morderam a isca de Keith que, como nós o conhecemos bem, é um sincero bravateiro. Críticas à Richards passaram na conta do divertido e malfadado Theuir Satanic Majesties Request que, por si só, desqualificaria qualquer opinião dos Stones contra o disco.

Fato é que Keith também detestava Their Satanic. Hoje, provavelmente nenhum stone goste desse disco (embora fãs, como nós, sempre achemos que somos as respectivas únicas pessoas que gostam dele). Todos foram na voga do flower power. Mas, passada a moda, todos sentiram saudades do rock.

Por mais perplexidade que a produção de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band tenha causado nos últimos 50 anos, esse tipo de crítica — pegando o mote do progressivo e da "morte do rock", a verdade é que, se formos pensar, no começo, assim como no jazz, tudo era ao vivo. Tudo era essencialmente acústico. Nem que você tivesse que achar alguém na rua só para entrar no estúdio só para tocar o pandeiro, o corte todo era ao vivo. Quer dizer, o culpado não é o Sgt. Pepper's; vamos dizer que a culpa é do overdub.

Foi um salto gigantesco na música poder mostrar que era possível fazer avant-garde num disco de rock. Por isso, o álbum dos Beatles é o que é. Mas, pelo que vemos, a crítica se dá no sentido de que, a partir dali, músicos passaram a frequentar também a mesa de gravação, a influenciar cada vez mais a produção dos seus próprios trabalhos, que foram ganhando cada vez mais foros de complexidade, de uma forma nunca antes vista. O problema é que, por conta do ADT e de meses as pistas múltiplas, tudo era uma "fraude". Era uma banda que só existia no estúdio.

Essa foi a opção dos Beatles. Deixaram a arena do rock para ingressar na avant-garde. O Pepper's, nesse sentido, é amplamente proto-progressivo. Tudo o que apareceu, até o mais excrescente, veio da costela do Pepper's. Até que, de fato, ninguém mais aguentava mais progressivo, como se a aventura em questão tivesse ido longe demais (e o próprio Childish era um músico punk, o que explica em parte o ódio aos Beatles). Como se todo o perfeccionismo e a magalomania sinfônica do progressivo fosse culpa do Pepper's. De fato, é fácil de entender esse rancor. Vamos dizer assim: rock com "tracking" já não é rock, é a traição do rock.

Hoje é difícil ser tão radical: até gravações ao vivo que caem no mercado têm overdubs. A própria indústria da música matou o ao vivo. Se formos radicais, chegaremos à conclusão de que o rock, como diria o falecido Raul Seixas, morreu mesmo nos anos 50, nos tempos do Sam Philips.

Contudo, ao focar sobre a música dos Beatles, nada seria como antes. Muitos críticos entendem, por exemplo, que o Pepper's não é uma evolução mas o contrário. difícil bancar essa. Mas entende-se que, com o White Album, a produção do quarteto foi tornando-se marcante pela auto-paródia pelo ecletismo extremo. E, afinal de contas, o projeto Get Back, por sua vez, parecia mais uma mudança de percurso, onde os Beatles tentavam inutilmente voltar aos tempos do Please Please Me. A gente entende a crítica, pois é difícil criticar tanto o quarteto, quanto a sua produção.

Dizer que houve uma involução nos Beatles é difícil. O rock saiu do palco, adaptou-se á mesa de gravação, abarcou outros estilos musicais e tropicalizou-se, isso é involução? Para os roqueiros bizantinos, é possível. Mas, enfim, o que quero dizer é que, para o bem ou para o mal, é importante entender as razões da crítica, não só nesse caso, mas em todos, tentar entender o que se quer dizer. Talvez realmente haja algo de depurador na crítica, principalmente no caso do Pepepr's (e isso que não quis elencar muitas outras, refutáveis ou não, que foram direcionadas ao álbum), onde existem bilhões de resenhas positivas e estudos sobre. Como diria Nelson Rodrigues, enfim, dando o braço a torcer: a maior apoteose é a vaia.

Eu particularmente, já devo ter escrito dezenas de artigos sobre o Sgt. Pepper's. Não que eu seja rebelde, mas de fato eu realmente não teria nem como acrescentar mais o que eu disse, imagine acrescentar a tudo o que já foi dito.

Quando eles largaram os palcos, escolheram entrar na banda do Sargento Pimenta. Mas criaram um Frankenstein. Como o cientista do livro de Mary Shelley, teriam que suportar o monstrengo pelo fim dos seus dias. John dizia que não gostava do disco, preferia o White Album. Certa vez, em Los Angeles, nos anos 70, Martin reencontrou John num estúdio. Lennon pediu desculpas a George, dizendo que falou aquilo tudo sem pensar. Verdade é que Martin ficou muito magoado com a crítica, que tomou como pessoal. Como no caso do Dr. Victor Frankestein, é difícil para o criador entender a criatura.




Tuesday, May 16, 2017

O Primeiro Cronista


Rua Clara, a Andradas da "subida"

Finalmente pus as mãos naquilo que é o primeiro registro de um cronista ilhéu* sobre o nosso burgo açoriano. O livro é o Antigualhas, ou "Reminiscências de Porto Alegre". O autor é Antônio Pereira Coruja, contemporâneo de Araújo Porto Alegre. O livro é uma espécie de Os Trabalhos e os Dias dos primeiros tempos da cidade.

A maioria das histórias que hoje são correntes — como a história do Alto da Bronze ou dos famosos três nomes da rua General Bento Martins remonta ao texto original das Antigualhas. Publicadas originalmente em 1887, na Gazeta de Porto Alegre (do Von Koseritz, não confundir com o diário de Porto Alegre, de 1833, o primeiro da capital).

Ou seja, muito do que temos hoje, e que é amiúde citado por historiadores a partir dali tem o Antigualhas como o ponto de partida. O Guia Histórico (do Sérgio da Costa Franco), por exemplo, praticamente compilou tudo o que serviria a respeito de nomes de logradouros, topônimos, localização de ruas e seus nomes originais. Com efeito, tudo o que podemos dizer que é informação histórica de valor (muito embora o livro não se presta a tanto, como diz no seu subtítulo) já diluiu-se em publicações afora.

No entanto, causa um espanto a experiência de atravessar as páginas do relato original, tratando-se, pois, de uma fonte primaríssima de um sujeito que nos coloca no alvorecer de Porto Alegre com a sua singular visão de spretcher. Sde a simples citação apenas apresenta-se como uma mera referência, o Antigualhas é como se voltássemos no tempo e travássemos conhecimento com o cronista Coruja em suas andanças da memória, perfazendo o caminho pela lembrança do jovem que ele foi quando relata essas histórias — de memória, a lembrança do jovem que vive no homem velho que Coruja era, já vivendo na Corte, há muito apartado do seu porto dos casais.

Coruja foi menino para frequentar a escola do Amansa-Burros: era um professor de Latim e de Primeiras Letras que lecionava na região da Matriz, e tinha um liceu mais ou menos na esquina da hoje Riachuelo com Caldas Júnior. Ao contrário da tradição popular que, como acontece com os eventos da rua do Arvoredo, trás o tal professor para o final do século XIX, a maioria das "reminiscências" de Coruja são anteriores à Revolta de 35 — da qual ele tomou parte do lado dos revoltosos e, por conta disso, acabou exilando-se depois de oito meses de prisão (na OPresinganga que foi de onde o Conde de Porto Alegre conflagrou a retomada de Porto Alegre, em 1836).

Aliás, foi durante as aulas que Coruja ganhou o apelido. Para poder exorcizar o bullyng, ele decidiu incorporá-lo ao nome. quer dizer, assim como aconteceria com Antônio Mostardeiro, é caso similar de apelido que virou sobrenome (o famoso Comendador Coruja, por sua vez, é filho de criação deste, não o mesmo, como muitos confundem).

Pelas descrições do traçado de Porto Alegre, por exemplo, fica a impressão de que, como a Tróia descoberta por Heinrich Schliemann, da cidade original, a atual Porto Alegre herdou pelo menos apenas o seu traçado. Era uma outra cidade e cabe a nós, ao ler as descrições de Coruja sobre tanto os nomes de ruas (que muitos tinham a ver com a sua origem e que, com a alteração, perderam muito da sua história com isso) quanto da de pessoas (muitos pelo apelido (dr. Cevadinha, Dr. Perdiz, Espalha Brasas, Barriga Me Dói, etc) demonstram como Porto Alegre era uma cidade pequena, um burgo açoriano, como dizia o Reverbel, e onde todos se conheciam. Tanto que muitos topônimos eram relacionados a pessoas — como o Beco do Fanha, nome original da atual Caldas Júnior.

Alguns nomes têm referências históricas e que foram pouco exploradas. Um exemplo interessante é a Vasco Alves, que originalmente teve o nome de Beco dos Guaranis. Consta que ali fora sediado o que restou de dois batalhões de guaranis que, em 1827, foram recrutados pelo exército brasileiro para bater-se contra as tropas do General Rivera, e que sofreram uma terrível derrota contra os orientais na guerra Cisplatina, em setembro de 1825.

Os remanescentes do 24º e 25º regimentos que bateram-se contra Rivera em Rincón de Las Gallinas veio para Porto Alegre, onde ali ficou aquartelado, num prédio na esquina da Barros com Riachuelo. Daí veio o nome, Beco dos Guaranis, que durou pelo menos uns cinquenta anos.

Quer dizer, o nome fixou-se entre a população e perdurou mesmo depois da mudança para Vasco Alves. Mesmo assim, hoje ninguém chama o local de Beco dos Guaranis. Ao contrário do Alto da Bronze, cujo topônimo é realmente uma prova da passagem do tempo. A sua menção remonta, justamente, à mocidade de Coruja, ou seja, o primeiro quartel do Século XIX. Se a personagem Bronze existiu (e existiu), ela pertence a segunda dentição de ilhéus do nosso burgo açoriano.




Porto Alegre era realmente circunscrita à península. Toda a sua história estava dentro desses quadrantes. Havia uma entrada por terra (o Portão, mais ou menos onde hoje fica aquela praça zoada na esquina da Salgado Filho com a Annes dias, no quartier-latin dos salgadoces do centro). O resto era um casario colonial (casas em geral sem platibanda. Coruja viu a primeira casa ganhar vidros, na Rua da Ponte), ruas de pé de moleque, trânsito de muares e muitos frades de pedra pelas calçadas, becos sem saída e muito lixo pelas ruas.

Para os lados de fora do portão, havia um terreno, de propriedade da viúva de Pinto Bandeira, e que estendia-se do começo da estrada dos Moinhos de Vento (a largada da Independência com a Santa Casa, então Caridade, até os altos da Barros Cassal (ali ficava o tal moinho que emprestou o nome à tal estrada e, por conseguinte, ao bairro onde ela chegava, lá no alto da colina de quem ia para os lados da Aldeia (Gravataí). Da esquina da Indepê com a Barros até o Guaíba (ainda sem aterros), era tudo um terreno fechado, que ´pertencia a mulher. A Chácara, pois, ganhou o nome de "da Brigadeira").

Porto Alegre, como Tróia, tem diversas porto alegres por debaixo da que vemos hoje. Se o relato cru e vivo do Nilo Ruschel no Rua da Praia, ao contar, com desenvoltura e ilustração, da Porto Alegre do começo do século passado, com os primeiros cafés cantantes, a imprensa e o comércio alemães, enfim, a Porto Alegre que morreu com a Revolução de 30, a Porto Alegre do tempo dos Caçadores (que Erico Verissimo tenta reconstituir no Arquipélago), a Porto Alegre das Antigualhas é uma volta ao começo, é como chegar nas ruínas da Tróia de Príamo, do Paládio, de Andrômaca e de Heitor.



* Sempre lembrando que o nosso "primeiro cronista" mesmo foi um estrangeiro, o preclaro Saint-Hilaire, lá pelos idos de 1820. Curioso que, o botãnico francês, no entanto, não é mencionado por Coruja.



Friday, May 12, 2017

Love or Confusion


A capa original

Parece que foi ontem que eu ganhei o meu primeiro disco do Jimi Hendrix — cujo álbum de estreia faz 50 anos esta noite.

Lembro que foi na época que os remasters dele estavam aparecendo em CD (depois de um primeiro lançamento, em formato digital, pela Polydor, nos anos 80, mas que não chegou a aparecer muito por aqui). Os CDs estavam aparecendo com uma mixagem excepcional para a época (1997) e, o que era melhor, em versão brasileira.

Quando eu era piá, lembro-me de assistir aleatoriamente na tevê a famosa cena do Jimi tocando o star Spanned Banner naquela manhã visceral e nublada em Woodstock. Achava que ele fosse um músico instrumentista apenas, e essa foi a impressão que ficou comigo por anos.

Fora que, vivendo naqueles tempos em que a internet era mais do que uma utopia, não havia nada mais esquecido do que artistas dos anos 60. E mais do que isso: parecia que o objetivo dos anos 80 era que aquela gente fosse esquecida mesmo. E quase foi.

Um disco do Hendrix, por exemplo. Disputado a manotaços e cachaçadas em sebos, muitas vezes nem paravam nas estantes. Na maioria das vezes, algum colecionador já combinava com o dono da loja que, se aparece o "disco aquele", ele queria e 1 certamente — pagaria a quantia que fosse pelo bolachão.

Por isso que coisas de artistas como o Jimi eram tão escassos que pouco podíamos conhecer. Não havia publicações a respeito. Isso foi por anos, até 1997.

Recordo que o Contracultura, da FM Cultura, fez um especial enorme com aqueles discos. Era a primeira vez que eu certamente ouvia no rádio um cara como o Jimi. Não prestei muita atenção, porém, gravei o programa na época.

Aliás, minto: a primeira vez que eu escutei o Experience foi quando recebi de doação a trilha do Sem Destino. Tinha lá o "If Six Was Nine" (música que eu amigo meu, beatlemaníaco, detestava, como detestava o Experience). Na verdade, aquele disco mudou meu gosto musical: até então, eu não escutava nada de rock que fosse além de 67 (além dos Beatles e Stones, só até a fase Brian Jones, ora veja só que bobagem).

Gostei da loucura dionisíaca de "If Six Was Nine", mas era a única faixa que eu tinha ouvido naquele sentido de colocar o disco na minha própria eletrola e ouvir (essa experiência, com efeito, é essencial para assimilar a música, mais do que a do rádio).

Lembro que pedi de presente de Natal daquele ano a coletânea Experience Hendrix (o Smash Hits só foi relançada recentemente). Não sei o que aconteceu, mas, por um surpreendente delay de um ano, eu acabei ganhando o CD em dezembro do ano seguinte.

Botei o disquinho no meu estéreo e viciei. Fiquei reouvindo aquilo pelos meses seguintes, pensando: meu Deus, isso aqui é o futuro". Não fosse o bastante, fui obrigado a corer atrás de todos os discos. Por sorte, achei num sebo um Are You Experienced (por incrível que pareça, naquele tempo o vinil, mesmo valorizado, valia menos que o compact disc, ainda mais lançamento, porque era um produto ainda muito caro nas lojas.

Lembro de inúmeras chapações e bebedeiras abastecidas pelo Are You Experienced. Aquilo me abriu a cabeça para aquele tipo de rock visceral, que dialogava com outras expressões, como o jazz, até por conta de que Mitch Mitchell, a despeito da idade, era um músico de estúdio experimentado (desculpe o trocadilho) e era totalmente influenciado tanto por fusion quanto por Ronnie Stephenson.

O resultado foi, e é, uma das maiores parcerias da história da música, que é a de Mitch com Hendrix. Mesmo que eles não tivessem nada na cabeça para tocar, qualquer jam furada com ambos era uma experiência (desculpe) profunda, de cabeça limpa, imagine sob influência de outras coisas. Gostava de ficar trancado no quarto ouvindo repetidas vezes o Are You, de preferência, tomando talagaços de vodka (tanto que eu não conseguia escutar aquilo de cara).

O tempo passou, vendi meus discos (cheguei a ter o Band of Gypsies americano, capa linda, provavelmente uma prensagem dos anos 80, selo vermelho). Com a Internet, aí comecei a ouvir muitas outras coisas (muita coisa do tempo dele, e que a gente não tinha acesso). Mas, desde aqueles tempos imemoriais, em que uma informação era quase uma mensagem numa garrafa, hoje é ótimo saber que os anos 60 não foram devastados pelos anos 80 (que também não foram devastados pelos anos 90), e que tem muito guri com a camiseta do Hendrix andando por aí, e isso é realmente um milagre da vida.