Saturday, July 08, 2017

Edward Mãos-De-Tesoura e Frankenstein: diálogos e digressões



Quem lê pela primeira vez Frankenstein, de Mary Shelley, dificilmente passa incólume puro das diversas adaptações que apareceram nas últimas décadas. De todas as adaptações existentes, é impossível não passar pela forma icônica como a versão cinematográfica de James Whale (1931) para a Universal.

Isso é tão presente que foi esta versão que iria entronizar a imagem do monstro verde e a do cientista megalomaníaco pela indústria de massa afora. O argumento do filme, aliás, já era uma versão de uma dramaturga britânica, Peggy Webling, que fez sucesso na Broadway, e seguiu o mesmo caminho de uma adaptação do Drácula para os palcos.

A partir da versão de Webling, a sétima arte soube apropriar-se bem da forma como ela transformou a história num thriller, quase que feito para um público típico da tela grande. Tanto que, se pensarmos bem, Frankenstein acabou tornando-se a primeira franquia da história do cinema (com as respectivas sequências em 35 e 39, e outras mais, também produzidas pela Universal).

De 1910, quando Thomas Edison produziu a primeira adaptação paras as telas, o número de filmes já passou de cinquenta versões — isso sem contar adaptações livres. Destas, que naturalmente fogem a uma classificação objetiva, mas que evocam o tema da criatura e do criador, podemos citar Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands, Tim Burton, 1990).

O filme, que pega justamente esse mote criador e criatura, e seus subtema — bastante enfatizado em muitas versões cinematográficas do romance de Shelley: o da rejeição do diferente e ao que parece anômalo, segundo José Geraldo Couto (1998) característica de todas as sociedades, em especial das sociedades de massas.


Edward e Pinóquio

O filme de Burton pode ser classificado como uma fábula moderna. Ao contrário do romance, que possui características da literatura gótica típica do século XIX, e das adaptações em filme, que exploram a questão do mórbido e do terror, como fábula, Edward Mãos de Tesoura dialoga com As Aventuras de Pinóquio, de Collodi. No conto, Pinóquio é uma marionete viva. De certa forma, Edward também é uma marionete.

No entanto, ao contrário do livro de Mary Shelley, a relação entre criador e criatura em Edward e seu criador é mágica e pacífica como a de Gepetto com Pinóquio. Enquanto Gepetto sonha em ter um filho de verdade, Victor Frankenstein quer lograr o experimento de infundir vida a partir de restos humanos. O velho inventor de Edward aproxima-se do marceneiro de Collodi; no entanto, ele morre e deixa seu boneco inconcluso. A falta de mãos em Edward acaba tornando-se seu calcanhar de Aquiles.

Em Pinóquio, também vemos inspiração em Edward Mãos-de-Tesoura pelo fato de que ambos os personagens são ingênuos levados para o mau caminho. No entanto, enquanto Collodi conclui seu livro com um final feliz, o mesmo não acontece no roteiro de Burton, onde a única solução para o protagonista é o exílio e a solidão — mesmo destino do monstro de Shelley.


Edward

Edward Mãos-de-Tesoura não se trata exatamente de uma adaptação direta do romance de Mary Shelley. Mas, mais do que e, além disso, insere-se dentro de uma tradição tanto literário/narrativa quanto cinematográfica de uma ideia que nasceu com o romance.

O filme, pois, possui um enredo diverso, se passa em outro tempo e outro lugar. Contudo, dentro da moldura de fábula moderna, como diz Woods (2011), ele dialoga não apenas com elementos que evocam a literatura gótica do Século XIX quanto com a própria tradução do cinema de horror.

Edward Mãos-de-Tesoura é “filho” de um inventor (como em Pinóquio) que morre deixando sua criação inconclusa. Tempos depois, uma ambulante de cosméticos o encontra e adota Edward, que fica conhecido em todo o bairro.

Mesmo sendo uma figura excêntrica, todos gostam dele, Kim, menos a filha da vendedora. Para conquistá-la, ele é induzido a cometer um furto. Preso, começa a partir daí a “queda” do herói: o bairro se volta contra Edward, menos Kim, que descobriu que ele cometera o crime por ela. Edward, que logo descobriu que todos queriam aproveitar da sua gentileza, resolve escapar. Porém, outros conflitos apenas confirmam a falsa imagem de criminoso dele perante a cidade e a falsa cordialidade das pessoas com relação a ele.

Novos conflitos fazem com que ele seja perseguido pelos habitantes da cidade. Sem destino, foge para o castelo de seu criador. Jim, namorado de Kim, decide ir atrás dele e matá-lo, após ser rejeitado por ela, que declara seu amor a Edward. Os dois brigam, e Jim morre. Kim deixa o castelo e revela que ambos tombaram na luta.



Frankenstein


No romance de Mary Shelley, o subtema da rejeição do diferente e ao anômalo, como enfatiza Couto (op. cit) é recorrente em várias adaptações do filme. A questão é que, de adaptação a adaptação, existe uma tradição da história recriada que deixa muitas das ideias do livro para trás. Em Frankenstein, vemos que a necessidade de contato entre as pessoas é recorrente: o monstro busca travar contato com outras pessoas. O Capitão Wolton, narrador da novela, procura um amigo, com quem possa conversar e se identificar, e encontra em Victor essa pessoa.

Um parêntese: ao contrário de praticamente todas as adaptações conhecidas, a concepção da narrativa proposta por Shelley foi bastante subestimada. Ela concebe a história a partir de um romance epistolar — Wolton escreve cartas para a irmã, quando ocorre o incidente: ele trava conhecimento com Victor Frankenstein e, a partir dali, sua veia de narrador frustrado vem em encontro ao relato fantástico do doutor.

A partir dali o capitão dá a voz ao criador do monstro, que conta a sua vida e sua desgraça a partir da sua terrível e sanguinolenta experiência. O monstro, que aparece distante nos primeiros capítulos, aparece no centro do livro, quando este conta a sua trajetória desde que fugiu do claustro, como Ulisses no Livro IX da Odisseia: é a história dentro da história, até a retomada do fio da história, que termina na cena inicial.

Patinho Feio

A trajetória da questão da 'rejeição' ao diferente em Edward Mãos-de-Tesoura. Num primeiro momento, mesmo sendo o diferente no grupo, ele é aceito. No entanto, quando ele comete um erro, além de não ser perdoado, ainda paira sobre ele certa desconfiança que recai sob seu aspecto 'estranho'. Ou seja, Edward é um monstro que, num primeiro momento é aceito e, em outro, é rejeitado e perseguido, mesmo sem culpa real sobre seus atos. Ele apenas paga o preço por ser ingênuo e bom.

Como Edward, o monstro de Shelley é bom. Ao contrário da criatura entronizada pelo filme de Whale, ele é um ser inteligente e sensível. Aprende a ler e a falar (capítulo XV), lê Goethe, Plutarco e Milton. Porém, quando tenta entrar em contato com a civilização, ele é rejeitado.

Na floresta, ele conhece a família De Lacey, Felix e Agatha. Sabendo de seu aspecto monstruoso, prefere ficar á distância, como um espírito abençoado, ajudando-os ao cortar lenha e deixar á medeira à disposição deles.

Como o pai deles é cego, na ausência destes, o monstro tenta travar contato com o ancião. Como ele não pode ver a criatura, eles ficam amigos (a cena é recriada por James Whale em A Noiva de Frankenstein, de 35). quando Felix chega, considera o monstro uma ameaça, e o ataca. Sem saída, só lhe resta fugir.

Ainda no aspecto da rejeição, um elemento que é pouco explorado (exceto por adaptações recentes para o cinema, como as de Kenneth Branagh, de 2004, e Kevin Connor, de 2004), que é a relação pai/filho no romance. Desiludido, o monstro procura seu criador, Victor. Ali ocorre um ajuste de contas. O médico rejeita a criatura. A relação entre o monstro e seu mentor, no entanto, é ambígua.

A criatura convence Victor a fazer uma mulher para ele (Whale, por sua vez, usa a ideia para a sequência de 35). Depois, desiste de realizar o desejo do monstro, que o pune, matando a mulher de Victor, e Clerval, melhor amigo de seu criador. A ira da criatura reside apenas em fazer o mal a Victor, e mais nada. Porém, a partir daí, o médico não vê outra saída a não ser eliminar fisicamente o monstro — daí a jornada desesperada do pai contra o filho.

Mesmo que Victor rejeite totalmente sua criatura, a cólera do monstro não o transforma num serial killer. Ele apenas cumpriu sua vingança, fazendo todo o mal possível ao seu criador. Contudo, o ódio irracional provocado pela rejeição de Victor contra seu “filho” o prende a ele para sempre, até o paroxismo de uma perseguição que os leva até o Polo Norte — quando o perplexo Capitão Wolton testemunha a justa entre criador e criatura, e a morte daquele.

A ira do monstro contra o seu criador, por causa da recusa deste em conceber uma companheira para ele, como um Aquiles, provoca um ciclo vingativo que só encontra termo com a morte de Victor.

No caso de Edward Mãos-de-Tesoura, a relação entre criador e criatura é quase análoga à de Collodi. Não existe nenhum conflito de ordem parental. Edward não põe a culpa no cientista por ser imperfeito. Aliás, ele sequer parece resignar-se com sua má fortuna. Já o monstro do livro, a despeito de ser um espírito sensível (afinal, ele pensa a respeito da condição humana e da impossibilidade de sua inserção na sociedade como um igual), transforma sua anomalia num cavalo de batalha.

A questão da rejeição nos filmes de Whale também é omitida: ao contrário do Frankenstein de Mary Shelley (e de Peggy Webling), o monstro da Universal não pensa, não fala, e tem o cérebro de um assassino. Ao mesmo tempo, o Dr. Frankenstein entende sua criatura tão somente como um experimento que saiu de seu controle. O elemento que o une ao “filho”, o apelo parental inexiste nas adaptações para o cinema em geral — e a imagem que perpassa pela cultura popular a partir de então é a criatura grosseira e esverdeada da Universal.


Outros diálogos

Ao mesmo tempo em que vemos incidentes no roteiro de Burton que dialogam com o livro de Shelley, é possível perceber que o filme dialoga tanto com narrativas de fábulas e outras adaptações de Frankenstein, como a de James Whale, de 1931.

Uma, já citada, é a relação entre o cientista e Edward, que lembra Pinóquio, além de outros aspectos, como a 'queda' moral do herói (ou anti-herói), já que muitos interpretam o livro de Collodi como épico (mas aí é outra história).

Um fator interessante que une Frankenstein de Shelley com Edward Mãos-deTesoura é a presença do símbolo do gelo e da neve como algo distante e inóspito no fim de ambos os personagens. Em Shelley, o mostro parte para o Pólo Norte, onde parte para encontrar o seu fim; Edward volta para o seu castelo onde, ao construir artística e incessantemente formas e figuras de gelo, involuntariamente faz com que a neve caia sobre a cidade onde viveu. Fica daí, de certa forma, a perene imagem neve-frio como símbolo invernal desse isolamento que é, também, um símbolo da alma de ambas as criaturas.



O final de Edward, quando ele é perseguido pelo populacho em fúria remete, com efeito, ao próprio filme de Whale. Na história (que passa á revelia do romance de 1818), o monstro encontra uma menina e joga-a num lago, sem saber que a matara. A partir daí, todos perseguem a criatura a fim de linchá-lo. Ou seja, aqui já temos um intertexto da adaptação.

Outro exemplo de “reintertextualização” do cinema no cinema é a imagem de Edward. Ele é uma figura magra, toda de negro, e com uma indomável cabeleira de maestro, o que faz lembrar de Cesare, o misterioso ajudante do Dr. Caligari, do clássico do expressionismo alemão de Robert Wiene. Além disso, os trejeitos de Edward, a forma de se portar, o olhar pueril e curioso evocam o Vagabundo, dos filmes de Chaplin.



Conclusão

Tim Burton, ao abordar os temas da alienação, rejeição do protagonista e a sua inocência diante de um mundo novo no qual ele não é capaz de inserir-se, mesmo que não seja uma adaptação direta, ela remete, de forma considerável, a motivos que estão presentem no livro de Shelley, e que foram colocados de fora em muitas, para não dizer, a maioria das demais adaptações do romance.

Assim como Edward, o Frankenstein de Shelley é sensível, cordial, idealista. Autodidata, aprende a ler — e justamente O Paraíso Perdido, que é a epígrafe do romance.

Porém, ao encarar a realidade, percebe a total impossibilidade de adaptação, dada a sua aparência grotesca. No entanto, enquanto o personagem de Shelley revolta-se contra seu criador, Edward vê-se numa encruzilhada: o homem que o produziu não pôde viver para conclui-lo. Mesmo assim, e talvez por isso mesmo, ele apenas resigna-se. Ao contrário de Frankenstein, que descarrega sua ira em seu “pai”, e vocifera: “Maldito dia em que recebi a vida”.

Edward revolta-se contra as pessoas que o maltrataram e o corromperam. Sente-se usado e mal compreendido. Também faz o bem e recebe o mal. Mas, enquanto Edward vê a hipocrisia das pessoas, o monstro de Shelley é julgado apenas pela aparência.

O que há de comum entre ambos é que, no fim, é possível vislumbrar que, mesmo corrompidos pelo meio, nenhum deles perdeu de todo o sentimento humano. Mesmo rejeitado totalmente por seu criador, ele é incapaz de tocá-lo, mesmo que faça todo o mal possível a todos ao redor de Victor.

À guisa de conclusão da edição brasileira de Frankenstein (1998), José Geraldo Couto discorre sobre o tema da rejeição em Frankenstein ressaltando esse elemento do romance como uma alegoria dessa rejeição das pessoas em face daquilo que lhe é estranho, exótico, diferente, salientando que essa é uma característica de todas as sociedades, em especial da sociedade de massa (p.220).

Para ele, nessa perspectiva, o monstro de Frankenstein que, no fundo, é um ser doce e amável, seria um símbolo dos excluídos, uma espécie de mártir da intolerância e do preconceito.




Fontes Consultadas

BURTON, Tim. Edward Mãosd-de-Tesoura. https://youtu.be/EYGAuIv2xKI Acessado em 25/05/2017. EUA, 1990, 105 min.
SHELLEY, Mary. Frankenstein. Ediouro, 1998.
WHALE, James. Frankenstein. https://www.youtube.com/watch?v=-7PdzAVX7mI Acessado em 25/05/2017. EUA, 1931, 71 min.
WHALE, James. A Noiva de Frankenstein https://youtu.be/1GdwWIU-KtY Acessado em 25/05/2017. EUA, 1935, 80 min.
WOODS, Paul. O Estranho Mundo de Tim Burton. Leya, São Paulo, 2008.

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