Tuesday, May 16, 2017

O Primeiro Cronista


Rua Clara, a Andradas da "subida"

Finalmente pus as mãos naquilo que é o primeiro registro de um cronista ilhéu* sobre o nosso burgo açoriano. O livro é o Antigualhas, ou "Reminiscências de Porto Alegre". O autor é Antônio Pereira Coruja, contemporâneo de Araújo Porto Alegre. O livro é uma espécie de Os Trabalhos e os Dias dos primeiros tempos da cidade.

A maioria das histórias que hoje são correntes — como a história do Alto da Bronze ou dos famosos três nomes da rua General Bento Martins remonta ao texto original das Antigualhas. Publicadas originalmente em 1887, na Gazeta de Porto Alegre (do Von Koseritz, não confundir com o diário de Porto Alegre, de 1833, o primeiro da capital).

Ou seja, muito do que temos hoje, e que é amiúde citado por historiadores a partir dali tem o Antigualhas como o ponto de partida. O Guia Histórico (do Sérgio da Costa Franco), por exemplo, praticamente compilou tudo o que serviria a respeito de nomes de logradouros, topônimos, localização de ruas e seus nomes originais. Com efeito, tudo o que podemos dizer que é informação histórica de valor (muito embora o livro não se presta a tanto, como diz no seu subtítulo) já diluiu-se em publicações afora.

No entanto, causa um espanto a experiência de atravessar as páginas do relato original, tratando-se, pois, de uma fonte primaríssima de um sujeito que nos coloca no alvorecer de Porto Alegre com a sua singular visão de spretcher. Sde a simples citação apenas apresenta-se como uma mera referência, o Antigualhas é como se voltássemos no tempo e travássemos conhecimento com o cronista Coruja em suas andanças da memória, perfazendo o caminho pela lembrança do jovem que ele foi quando relata essas histórias — de memória, a lembrança do jovem que vive no homem velho que Coruja era, já vivendo na Corte, há muito apartado do seu porto dos casais.

Coruja foi menino para frequentar a escola do Amansa-Burros: era um professor de Latim e de Primeiras Letras que lecionava na região da Matriz, e tinha um liceu mais ou menos na esquina da hoje Riachuelo com Caldas Júnior. Ao contrário da tradição popular que, como acontece com os eventos da rua do Arvoredo, trás o tal professor para o final do século XIX, a maioria das "reminiscências" de Coruja são anteriores à Revolta de 35 — da qual ele tomou parte do lado dos revoltosos e, por conta disso, acabou exilando-se depois de oito meses de prisão (na OPresinganga que foi de onde o Conde de Porto Alegre conflagrou a retomada de Porto Alegre, em 1836).

Aliás, foi durante as aulas que Coruja ganhou o apelido. Para poder exorcizar o bullyng, ele decidiu incorporá-lo ao nome. quer dizer, assim como aconteceria com Antônio Mostardeiro, é caso similar de apelido que virou sobrenome (o famoso Comendador Coruja, por sua vez, é filho de criação deste, não o mesmo, como muitos confundem).

Pelas descrições do traçado de Porto Alegre, por exemplo, fica a impressão de que, como a Tróia descoberta por Heinrich Schliemann, da cidade original, a atual Porto Alegre herdou pelo menos apenas o seu traçado. Era uma outra cidade e cabe a nós, ao ler as descrições de Coruja sobre tanto os nomes de ruas (que muitos tinham a ver com a sua origem e que, com a alteração, perderam muito da sua história com isso) quanto da de pessoas (muitos pelo apelido (dr. Cevadinha, Dr. Perdiz, Espalha Brasas, Barriga Me Dói, etc) demonstram como Porto Alegre era uma cidade pequena, um burgo açoriano, como dizia o Reverbel, e onde todos se conheciam. Tanto que muitos topônimos eram relacionados a pessoas — como o Beco do Fanha, nome original da atual Caldas Júnior.

Alguns nomes têm referências históricas e que foram pouco exploradas. Um exemplo interessante é a Vasco Alves, que originalmente teve o nome de Beco dos Guaranis. Consta que ali fora sediado o que restou de dois batalhões de guaranis que, em 1827, foram recrutados pelo exército brasileiro para bater-se contra as tropas do General Rivera, e que sofreram uma terrível derrota contra os orientais na guerra Cisplatina, em setembro de 1825.

Os remanescentes do 24º e 25º regimentos que bateram-se contra Rivera em Rincón de Las Gallinas veio para Porto Alegre, onde ali ficou aquartelado, num prédio na esquina da Barros com Riachuelo. Daí veio o nome, Beco dos Guaranis, que durou pelo menos uns cinquenta anos.

Quer dizer, o nome fixou-se entre a população e perdurou mesmo depois da mudança para Vasco Alves. Mesmo assim, hoje ninguém chama o local de Beco dos Guaranis. Ao contrário do Alto da Bronze, cujo topônimo é realmente uma prova da passagem do tempo. A sua menção remonta, justamente, à mocidade de Coruja, ou seja, o primeiro quartel do Século XIX. Se a personagem Bronze existiu (e existiu), ela pertence a segunda dentição de ilhéus do nosso burgo açoriano.




Porto Alegre era realmente circunscrita à península. Toda a sua história estava dentro desses quadrantes. Havia uma entrada por terra (o Portão, mais ou menos onde hoje fica aquela praça zoada na esquina da Salgado Filho com a Annes dias, no quartier-latin dos salgadoces do centro). O resto era um casario colonial (casas em geral sem platibanda. Coruja viu a primeira casa ganhar vidros, na Rua da Ponte), ruas de pé de moleque, trânsito de muares e muitos frades de pedra pelas calçadas, becos sem saída e muito lixo pelas ruas.

Para os lados de fora do portão, havia um terreno, de propriedade da viúva de Pinto Bandeira, e que estendia-se do começo da estrada dos Moinhos de Vento (a largada da Independência com a Santa Casa, então Caridade, até os altos da Barros Cassal (ali ficava o tal moinho que emprestou o nome à tal estrada e, por conseguinte, ao bairro onde ela chegava, lá no alto da colina de quem ia para os lados da Aldeia (Gravataí). Da esquina da Indepê com a Barros até o Guaíba (ainda sem aterros), era tudo um terreno fechado, que ´pertencia a mulher. A Chácara, pois, ganhou o nome de "da Brigadeira").

Porto Alegre, como Tróia, tem diversas porto alegres por debaixo da que vemos hoje. Se o relato cru e vivo do Nilo Ruschel no Rua da Praia, ao contar, com desenvoltura e ilustração, da Porto Alegre do começo do século passado, com os primeiros cafés cantantes, a imprensa e o comércio alemães, enfim, a Porto Alegre que morreu com a Revolução de 30, a Porto Alegre do tempo dos Caçadores (que Erico Verissimo tenta reconstituir no Arquipélago), a Porto Alegre das Antigualhas é uma volta ao começo, é como chegar nas ruínas da Tróia de Príamo, do Paládio, de Andrômaca e de Heitor.



* Sempre lembrando que o nosso "primeiro cronista" mesmo foi um estrangeiro, o preclaro Saint-Hilaire, lá pelos idos de 1820. Curioso que, o botãnico francês, no entanto, não é mencionado por Coruja.



No comments: