Saturday, July 29, 2017

Peregrinação de Verlaine à Ilha de Watteau


Pierrot, Antoine Watteau, 1719.


Segundo Edmond Lepelletier, o poeta Paul Verlaine ia sempre ia Galeria Lacaze no Louvre, admirar a coleção de mestres das escapolettes, das fetes cahampetres e dos dejeuners sur herbe de Watteau e Fragonard.

Edmond revela que, foi tanto daquelas pinturas quanto de páginas sobre crítica de arte dos irmãos Goncourt, Verlaine que compôs Fêtes Galantes. Lançado em livro pela primeira vez em 1869, foram escritas entre 1867 e 1868, em partes, à princípio, na Gazette Rimée, jornal literário da época e de vida efêmera.

Onestaldo de Pennafort, tradutor de Verlaine no Brasil, na introdução à obra, vai mais além em busca da gênese das Fêtes. De acordo com ele, outras fontes teriam sido o poema “La Fete chez Thereses”, de Victor Hugo, que, segundo Lepelletier, amigo do poeta. “era uma das poucas poesias de outro autor que ele sabia de cor”.

Segundo Pennafort, citando Le Dantec, porém, ao contrário da poesia descritiva e tributária de expressões da Commedia dell Arte, de Hugo, Verlaine destaca-se no Fêtes, que é a “fusão original dos mundos objetivo e subjetivo”, e mais, a “inconsistência do assunto propriamente [no esteio da linguagem], que se dilui na expressão poética, a ausência de todo esplendor verbal e mesmo como que a fragilidade gramatical das palavras, que, ainda mal acabam de preencher a sua função no discurso, logo se esvaem, levadas na onda do inefável que banha todo o livro e que é a sua atmosfera natural”.

Outra influência listada por Pennafort é o de Caprice, com seus “cenários fantásticos” e a sugestão de “reunions em plein air” e às alusões à pantomina típica da arte do século XVIII. Como Verlaine faria anos mais tarde, Banville buscou fazer uma espécie de transposição poética da pintura rococó, no entanto, usando mais Fragonard como tema do que Watteau.

Num ensaio singular sobre Watteau, Norbert Elias (2006) conta a trajetória da estética do pintor belga — de cronista da idle class do Antigo Regime até a demonização total perpretada pelos revolucionários de 1789 até o reconhecimento tardio, nos estertores do romantismo europeu, a partir da segunda metade do século XIX.

Gombrich (1999) revela que, ao fornecer o fundo apropriado para as festas da sociedade cortesã do Antigo Regime, Watteau pautou-se pelas suas próprias visões — de uma vida divorciada de todas as privações e trivialidades, uma vida fictícia de “alegres piqueniques em parques de sonho onde nunca chove, de saraus musicais onde todas as damas são belas e todos os enamorados graciosos, uma sociedade em que todos se vestem de refulgentes sedas sem ostentação, e onde a vida dos pastores e pastoras parece ser uma sucessão de minuetos” (p. 317).

Para muitos, diz Gombrich, o pintor notabilizou-se por refletir o gosto da aristocracia francesa do começo do século XVIII, que é conhecido como o período rococó . No entanto, o autor salienta para a grandeza do artista mesmo diante do fundo falso dos temas considerados como expressões de alegre frivolidade. “Pelo contrário”, afirma, “foram os seus sonhos e ideais que ajudaram a modelar o estilo rococó”.

Para o autor, Watteau era capaz de “transmitir a impressão de carne palpitante através de uma pitada de giz ou cor”. Porém, ao contrário de contemporâneos, como Rubens e Steen, talvez pelo sentimento fatalista do pintor, há no artista um inefável toque de tristeza nessas visões de beleza, mas que eleva sua arte acima da habilidade ou beleza.

Elias entende que Watteau seguia seus próprios caminhos, mas era um homem de seu tempo. Sobre a Peregrinação à ilha de Citera, ele explica que, na época do Antigo Regime, não havia nenhum ideal político relacionado ao quadro. Aquela representação das festas galantes era, justamente, uma utopia de fuga da política (ou talvez mesmo a libertação) mediante a partida para uma ilha de eterna felicidade no amor.

Contudo, após 1789, principalmente na França, como observou um crítico, em 1802, seria um crime falar em Citera, salientando, pois, a “seletividade característica da recepção quando comandada por desejos e sonhos sociais dominantes” (p 34). Além do mais, como observa Elias, para os franceses pós-revolucionários, o caráter ideológico das pinturas do Antigo Regime era bastante
evidente.

Por sinal, como salienta Elias, o próprio nome "rococó", era uma expressão tardia e que visava ridícularizar a dita artificialidade da arte do início do século XVIII e Watteau não escapou do julgamento da sociedade: em 1808, o quadro, e apresentado pelo pintor como uma peça de candidatura à Academia Real de Pintura e Escultura foi banido do Louvre.

A respeito dessa mudança de gosto, o autor entende que, entre os especialistas, ainda é difundida a noção de que a mudança de gosto na arte pode ser compreendida e esclarecida independentemente de transformações na sociedade e, particularmente, nas relações de poder.

Para ele, no caso da Citera de Watteau e da imagem “ideal da viagem à ilha do amor” a ela associado, é importante constatar o tempo necessário antes que se pudesse ter a distância necessária para que, em sua contemplação, o encobrimento da recepção
pela projeção de ideais próprios amenizasse.

De acordo com o autor, as vozes do início do século XIX sobre Watteau lembram que toda obra de arte com funções artísticas pode ter também, ao mesmo tempo, em ato ou em potência, funções ideológicas.

Essas “relações de poder” mudariam diametralmente nos anos posteriores à Revolução. Um exemplo batido dá conta que o próprio equilíbrio entre consumidores e produtores de arte, como diz Elias, foi pendendo, lentamente, em direção aos últimos.

Nesse meio tempo, surgem círculos de jovens artistas, críticos de arte, escritores
e outras atividades ligadas à arte, que” desempenhavam a função de árbitros do gosto artístico”, diz. “Eles tinham certeza do próprio gosto, ou acreditavam tê-la […] O artista tornou-se, então, cada vez mais um autodeclarado especialista em questões de bom gosto artístico”(p.27).

Elias alude á essa mudança na figuração da relação entre artista e público, cada vez corrente: em vez da sociedade do ócio, aristocrática, de corte — como a retratada nas festas galantes de Watteau, agora são os “pequenos grupos de artistas, críticos de arte e seus amigos, portanto de especialistas, que possuem sensibilidade e talento particulares para a arte — ou que acreditam tê-los, que determinam o chamado gosto artístico da moda.

Ele explica que grupos de especialistas dessa estirpe passaram a exercer uma influência decisiva no desenvolvimento das artes e, muitas vezes, também da literatura.

Ao contrário da época pré-revolucionária, quando artistas, em função da estrutura da sociedade, ocupavam uma posição social inferior, no decorrer do século XIX, eles foram guindados do papel de outsiders para o de guias especializados — estetas, e a tensão entre seu gosto e o da sociedade em geral tornariam-se coisa corriqueira a partir dali.

O gosto do público que se interessava por arte seguia, em geral, de acordo com o autor, inovações que vinham sendo desenvolvidas nos pequenos grupos de especialistas. “Esse gosto trivial mudava lentamente, resistindo às inovações dos grupos de especialistas, que representavam, com freqüência, uma geração jovem em vias de ascensão, seus sonhos e protestos contra o gosto e a ordem estabelecidos pelas gerações mais velhas (p.41).

Um desses grupos, o chamado círculo da Rue du Doyenné, foi concebido por Gérard de Nerval. Como era comum entre esse tipo de politiburo cultural, era um grupo de jovens artistas eque, segundo Elias, procurava uma contraimagem, um sonho, para compensar a rotina cinzenta e sóbria da sociedade burguesa.

Por fim, acabaram eles procurando, á sua maneira, mas com uma visão estética singular, o seu próprio caminho para Citera — talvez, “sem pensar, em uma restauração política, em um passado, particularmente na França pré-revolucionária do século XVIII”, diz o autor. No fim das contas, o manifesto desprezo ao rococó cedeu lugar à admiração. “O pêndulo oscilou para o outro lado”(p.42).

Com a redescoberta de Citera, Watteau virou um ídolo para eles. Mais do que isso, o pintor belga tornou-se o símbolo de um paraíso perdido, a regência de Luís XV, quando a vida então viagens de amor e festas galantes. Dessa forma, eles procuravam reviver aquela época, promovendo elegantes bailes. Pèlerinage à l'île de Cythère então era, justamente, a “representação de uma festa do prazer”.

“Mais uma vez”, diz Elias, “mais uma vez via-se o quadro, seletivamente, de maneira a relacioná-lo a ideais particulares, como representação
pictórica de uma utopia coletiva”.

Julie-Anne Plax (2006) parte de todo imaginário social e utopia em torno do revival do rococó na segunda metade do século XIX. Para a autora, assim como observa Elias, estetas como Nerval, os Goncourt, Baudelaire e Verlaine faziam parte de um grupo que buscava um status aristocrático, contra o status típico da burguesia que, ao contrário deles, era uma elite de origem mercantil e, portanto, com relação a eles, culturalmente “inferior”.

Insatisfeitos com os rumos da arte francesa no período — alegando que o rococó estava sendo subjulgado pelo ultra-romantismo de Delacroix, por exemplo — eles criaram a república da rua Doyenné, junto com outros jovens intelectuais, como Wattier, Calille e Devéria, entre outros.

Segundo Julie, foi a experiência dos boêmios de Doyenne que lançou a moda da transposição da poesia das pinturas de Watteau para o terreno da literatura.



Verlaine e as Fêtes Galantes


Publicado em 1869, é obra da primeira fase de Paul Verlaine, que havia se iniciado na poesia três anos antes, com Poèmes Saturniens.

Onestado de Pennafort (1945) considera que o ciclo é, a um só tempo, a transposição poética da pintura e o espírito da pintura do século 18 assim como transplantação para a poesia lírica das fantasias cênicas de Shakespeare (ao relacionar os temas bergamascos — a terra de Arlequim e Briguela — ao Sonho de Uma Noite de Verão).

Inspirando-se em Watteau e seus discípulos Lencret e Pater, bem como em Fragonard e Boucher a partir dos trabalhos estéticos dos Goncourt (o autor salienta que o poeta pode ter bebido da fonte dos irmãos Goncourt em L’ Art du XVIII Sciecle) onde eles já haviam narrado a vida e as aventuras de Du Barry e das atrizes e cortesãs da época, exumaram a arte esquecida e desprezada daquela grande escola da pintura francesa rococó.

Para Pennafort, Verlaine quis reviver, no domínio da literatura, com palavras e ritmos, o mundo encantado, as paisagens, os cenários, a poesia ornamental, a graça, a elegância, o espírito e as personagens criadas por aqueles mesteres em suas telas, toda essa arte a um só tempo féerica e intimista, realista e poética (p.72).

E o que eram propriamente as festas galantes? Segundo Kleiner (2011) elas eram reuniões de diversão ao ar livre organizados por aristocratas parisienses, presumivelmente entre 1715 e 1770. Na maioria das vezes, o termo foi usado dentro do contexto da pintura francesa.

Com a morte de Luiz XIV, em 1715, a aristocracia francesa foi abandonando o esplendor da corte de Versalhes em favor de Paris, onde finalmente eles podiam integrar-se à vida mundana. Na cidade, eles conhecem a commedia dell’arte italiana, já em seus estertores, quando em retorno á França, após serem banidas por Luix XIV.

A origem do termo “festa galante” vem da forma pela qual a Academia Real de Pintura e Escultura passou a designar as variações de Watteau sobre o tema da festa de jardim, representando personagens à fantasia brincando em parques e jardins. Como a Academia no começo não pôde encontrar uma categoria correspondente às obras do pintor francês quando ele pediu a aprovação da entidade, em 1717, optou-se por criar um ‘rótulo’ ou caracterização específica, dentro da hierarquia de gêneros, na fronteira entre a pintura histórica e o retrato.

O estilo de ‘festival galante’ nasce da conjunção de imperativos a que fora submetido Watteau. Para a Academia, suas cenas da vida cotidiana seriam consideradas ‘inferiores’ aos temas históricos e mitológicos – esses tão caros ao estilo rococó. Ao mesmo tempo, o autor buscava o mecenato daqueles a quem ele buscava retratar.

A escolha do tema como forma singular de pintura, geralmente caracterizada ao ar livre, tomando emprestado elementos da escola veneziana do Século XVII, tipicamente impregnado pelos temas míticos da ou Citera, uma época imemorial onde o acreditava-se que todos viviam em harmonia com a natureza.

Glosando elementos pastorais com a alegoria da commedia, Watteau logrou tanto agradar aos seus mecenas quanto à Academia, a fim de obter o estatuto de ‘pintura histórica’ à sua obra. E dessa pororoca cultural, onde a arte cênica influencia a pintura que, por sua vez, influenciaria a literatura, personagens da comédia italiana e francesa encontram-se.

Marqueses e marquesas, abades, atrizes e cortesãs, pantomimas e farsas, as fanchon e as escarpolettes de Fragonard, as Camargô, as lições de música, os repastos italianos, de Lancret, as festas campestres, os donneurs de serenades, os embarques e retornos para Citera, de Watteau, as confidentes e os prazeres do outono no estio, de Boucher. Como diz Pennafort: tudo o que forma o encantamento mágico, o sorriso misterioso da pintura desse tempo fascinante se reflete nas Fêtes assim como num espelho mágico que guardasse as imagens furtivas que por ele houvesse passado (p.73).

Para o autor, sua poesia latente se sobrepõe a qualquer consideração de época, escola e latitude, porque o seu tipo de mensagem poética atende a um desejo de poesia específica latente no espírito humano: o da “lírica evasão da realidade”. Essa “lírica evasão” nos faz retornar ao célebre artigo de Elias sobre Watteau — e que pode nos explicar esteticamente a gênese das Fêtes.

Ao referir-se à mudança da relação entre autor e público do fim do Antigo Regime para a Restauração, Elias diz que a produção poética, que na época da supremacia da sociedade de corte havia sido sempre uma questão interna da sociedade passa a ser uma ocupação de grupos de outsiders (o “galente boêmio, como ele destaca) e uma questão de indivíduos “singulares, auto-constituídos.

Elias lembra, ao citar o caso trágico Gerard de Nerval, da mesma geração romântica de Dumas Filho. Em sua juventude, idealizou o mundo de Watteau e pagou com a vida por esse impulso para a individualização contribuiu para tornar as desgraças desse mundo pelo “contraste entre desejo e realidade”.

Partindo de Nerval, e de uma linhagem posterior — até chagarmos nos poetas malditos, como Verlaine — podemos passar por Baudelaire, cujo tema de Citera não passou desapercebido por ele. Em As Flores do Mal, ele publicou um poema sobre o assunto. Baudelaire escreveu "Voyage à 1'isle de Cythère", que, segundo Elias, é a sua contribuição ao debate, em conexão com o relato de Nerval — que esteve na ilha grega retratada em Watteau, quando ele descobre, pálido de espanto, que não havia nada de árcade e de galante no local.



A Commedia dell’ arte em Fêtes


Julie-Anne Plax salienta que, a partir de Watteau, os boêmios de Doyenne glosaram especialmente o tema recorrente da commedia dell’arte para justapor alegria e tristeza (p.36). Para exemplificar, ela destaca a pintura Pierrot (1718-1719) , que influenciou Banville em suas Odes Funanbulescas (nome tirado do palco dos artistas do gênero faziam pantomimas).

Outro “galante boêmio”, Victor Hugo também glosou o tema, escrevendo, como contribuição ao debate literário “sonho versus realidade”, o poema "Cérigo", e, por fim, Verlaine, o ciclo Fêtes Galantes.

Verlaine — diz a autora — foi largamente influenciado pelos estetas de Nerval e começou a compôr imagens sonambulescas de personagens destacados da realidade. Dada a largada, ele passou a revisitar muitos dos temas de Watteau em sua poesia (ainda da primeira fase).

Julie-Anne salienta que o poeta, dentro do espírito romântico, faz uma leitura mais “dionisíaca” ou “demoníaca” aos mitos de Watteau onde, o que na pintura soa como onírico, na pena de Verlaine parece “aterrador”: (“Seus olhos são de um halo de luz fosforescente/e o pó lhe parece apavorante/E o palor da face é daquele que irá morrer”).

Julie-Anne Plax recorda que Verlaine não foi o primeiro a usar de imagens macabras ao referir-se à Watteau. Ela enumera ainda o citado Baudelaire e Gauthier que, além de estetas, como o poeta das Fêtes, eram colecionadores de arte do século XVIII.

No entanto, Baudelaire teria uma veia mais irônica ao abordar os temas (Nas Fleurs) e foi além nas imagens de morbidez e loucura, como em “Un Voyage à Cythère” (de 1853, publicado em 1857).

Aqui, ele subverte as expectativas de Watteau em seu clássico: ao invés de encontrar amor, felicidade e beleza, o peregrino de Baudelaire encontra um “pesadelo de dor, morte e de queda” (deusa do amor, eu não encontrei nada/ a não ser uma forca/com uma bruxa segurando a minha imagem/ Oh, deusa do amor, dai-me forças no coração/para contemplar meu corpo e minha alma enquanto sem sofrimentos”).

À guisa de conclusão, Julie-Anne compara (quase corroborando a desilusão de Nerval ao deparar-se com a ilha real) o ambiente de sonho de Citera é, ao contrário de ser um desembarque do mundo burguês, soa mais como um naufrágio atroz, 'como o Titanic'.



Verlaine e Watteau


Onestaldo de Pennafort revela que Verlaine concentrou-se em poucas obras de Watteau, salientando que “não era preciso que ele visse todos os quadros da escola rococó para se inspirar em sua pintura, para sentir a fina sugestão poética, o sentido ideal que emana dessa arte delicada e sutil, e transportá-la para a poesia (p.24). Para o autor, “dois ou três quadros lhe bastariam”.

“A intuição, o dom divinatório da poesia unido às informações e à crítica dos Goncourt”, diz Pennafort, “em cujos estudos, publicados dez anos antes de Verlaine começar a escrever as poesias do Fêtes, é curioso notar que já aparecem as expressões bergamasques, e fete galante, [ele] completaria o resto”.

Do ponto de vista literário, Lepelletier acredita que La Fete Chez Therese, de Hugo, possa ter influenciado o poeta, acreditando haver uma semelhança de tom entre as duas obras. Essa poesia de Hugo era a única que Verlaine sabia de cor”, diz ele. Pennafort complementa a observação, entendendo que os dois trabalhos têm em cognato apenas a escolha dos cenários e a indumentária colorida da commedia dell’ arte.

“Nada que se assemelhe ao principal encanto e à principal novidade das Fêtes Galantes de Verlaine”, explica, “à sua característica lá atrás salientada: a maravilhosa fusão dos mundos objetivo e subjetivo – e, mais, a inconsistência do assunto propriamente, que se dilui na expressão poética, a ausência de todo esplendor verbal e mesmo como que a fragilidade gramatical das palavras, que, ainda mal acabam de preencher a sua função no discurso, logo se esvaem, levadas na onda do inefável que banha todo o livro e que é a sua atmosfera natural” (p.25).

Pennafort também lembra que, antes de Verlaine, Banville já havia transposto o rococó da pintura para a poesia. Porém, ressaltando, segundo ele, mais o brilho carnavalesco, exterior, enfim, o ar “meramente pictórico das obras”.

Já o poeta das Fêtes, diz ele, infundiu ao ciclo “imensas clareiras de sonho”, diversidade de planos, identificação profunda das personagens com a piasagem e o que ele entende como “humanização do imponderável”

Pennafort, não se sabe se as personagens existem ou não em função apenas dos seus sentimentos, ou se são elas, com a misteriosa vida dos seus gestos e das suas vestimentas, que nos fazem pensar em sentimentos. É um dos segredos sutis do livro (p.30).


Pierrô — diz o autor — é o do quadro de Watteau no Louvre. Pennafort entende que a geração romântica do século XIX deu conotação diversa aos personagens da commedia que, como se sabe, tinham função cênica arbitrariamente convencional e marcada: “românticos e simbolistas o estropiaram, tornando-o a figura puramente sentimental e apaixonada, como é geralmente mais conhecido” diz.

Diverso de Pierrô, a vítima de Arlequim, de colombina, de Clitandro, o galã das velhas comédias francesas que, segundo ele, é recorrente em Moliere. “Personagem da comédia italiana, tipo de velho imbecil e crédulo, sempre apoiado no bastão, Cassandro era sempre vítima dos embustes de Arlequim, pierrot ou colombina. Seu nome passou à linguagem comum como “velho toleirão”. Em Verlaine, ele “deserda o sobrinho”, e depois se arrepende (p.164).

Já em “Sobre a Relva”, diz Onestaldo de Pennafort, reproduz a festa campestre típica, com seus serões musicais, tacões do “marquesinho frívolo”, a concupiscência do abade e o decote de Camargô, tudo tem um espírito do século que era a um tempo delicado e licencioso (p.165).


Sobre a relva


Divaga o padre – ri o marquês
Colocaste mal a peruca
Chipre raro, menos, bem vês
Camargô do que a tua nuca

Meu amor... do mi sol lá si
Tua intenção padre, está-se a vê-la!

Pios que eu morra, senhoras, se
Não vou trouxer aquela estrela!

Se eu fosse um pequenino cão!
Que cada qual abreca a sua
Pastora – oh senhores, então?

Do mi, sol, boa noite, lua!


Já “Luar” (“Clair de Lune”), por sua vez, seria a inspiração para o terceiro e mais conhecido movimento da Suite Bergamasque, de Debussy (1890) e que também inspiraria Fauré (traduções de Onestaldo de Pennafort, da edição da Globo, de 1945):



Luar

Tua alma é uma paisagem de outros dias
Por onde, ao som de alaúdes, vão passando,
Quase tristes nas suas fantasias
Bergamascos e máscaras dançando

E cantando em surdina a vida bela,

E o amor vitorioso eles tem o ar
De quem de tudo e de si duvida
E o que eles cantam vai se o no luar
No claro luar cheio de encanto e mágoa
Que faz sonhar os pássaros nas árvores
E soluçar de êxtase os jorros d’ água
Os grandes jorros d’água esbeltos entre os mármores



“Pantomima” parece ser o poema que melhor sintetiza Verlaine nas Fêtes Galantes com relação á forma como ele alegoriza a commedia dell’arte, fazendo uso de humor e descritivismo. Ele escolheu "pantomima", arte típica da commedia, como assevera Angela Materno (1994) cujo significado pode ser arte para expressar sentimentos, idéias de atitudes, gestos ou parte imitou.

O poema é como um quadro descritivo em vários planos. Há quatro personagens da commedia dell'arte, três homens e uma mulher com uma progressão. Pierrô é um ser que tem preocupações muito materiais.

Cassandra tem preocupações emocionais: ele está preocupado com o destino de seu sobrinho e parece ser isento de paixões; Arlequim parece ter preocupações afetivas sentimentais: ele pensa abordar esta preocupação pelo rapto mas não mede consequências; Colombina é a que realmente soa ter alguma preocupação amorosa.

A primeira estrofe descreve pierrô. A segunda mostra outro personagem do mesmo estilo (Cassandro) mas independente. Já na terceira, arlequim é mostrado como servo, como na sua representação original, no teatro.



Pantomina


Pierro não é um clitandro em nada
Previdente, cai numa empada
E esvazia um frasco de vinho

Cassandro ao fundo da avenida
Verte uma lágrima sentida
Por ter deserdado o sobrinho

O astucioso arlequim combina
O rapto audaz de colombina
E faz quatro piruetas no ar

Colombina sente, indecisa
Um coração bater na brisa
E ouve seu coração falar



Em “Colombina”, Pennafort diz que, além da parada de fantoches, o poema descreve a ronda dos leandros, cassandros, pierrôs e arlequins, sempre às voltas com o eterno feminino, com a imortal, a amorosa, a cruel e a um só tempo generosa colombina, que os conduz para o éter, parábola dos sexos (p.167). Leandro, personagem da commedia italiana que personifica o Belo, terror dos maridos, é transportado para o teatro francês de tal modo que ele passou a ser o “tolo Leandro”. “Nas comédias de Molière, ele é o filho de família, ingênuo e incauto, que se deixa levar pelo primeiro que passa”.

Colombina

O tolo Leandro
De capuz cassandro
Pierrot

Que o sarçal com um salto de pulga bem alto pulou

Também arlequim
Esse malandrim
Fantástico
Louco em seu trajar
De máscara o olhar
Sarcástico

Do mi sol mi fá
Todos eles à porfia
Dançam rindo diante
De uma linda infante
Sombria
De olhar esverdeado
Das gatas
Que oculta o seu dom
E abaixo diz com as patas
E eles vão em bando girando, girando
Ó astrais
Fatídicos signos
Para que destinos fatais
A infante em zumbaias
Lesta e erguendo as saias
Curtíssimas
De flor no chapéu
Conduz seu tropel de vítimas?





Conclusão

Lembro de ter lido as Fêtes Galantes há vinte anos, no mesmo volume que pesquisei sobre Verlaine pela primeira vez, a edição da Biblioteca dos Séculos, da Globo. Sempre me despertou a curiosidade a forma como um pintor fosse transposto para a literatura. Quando tive o interesse em discorrer sobre o tema, pensei imediatamente em analisar a obra de Watteau e reler o livro.

No entanto, quando fui colocar as ideias no papel, me dei conta de algo que não tinha se passado pela minha cabeça: por que Verlaine decidiu transcriar os temas das festas galantes do século XVIII?

Foi quando descobri o pequeno volume do Norbert Elias sobre o pintor. Na segunda parte do ensaio, ele se debruça sobre a questão da geração de nerval, certamente antecipando o simbolismo de Baudelaire em diante, e a questão do imaginário social, ou seja, todo o conjunto de práticas simbólicas que correspondem ao universo de uma cultura ou subcultura, o que se verifica no que foi aquele renascimento do interesse pelo rococó em pleno Romantismo.

Ao verificar a gênese das Fêtes, Pennafort listou as possíveis influências de Verlaine na construção do ciclo de poemas sem, no entanto, referir-se à questão do imaginário social dos boêmios da geração de Nerval e a construção da utopia, a orientação ideal de viver deles, contra o estabilishment e a cultura e valores burgueses em favor de uma nova visão do que é o esteta em pleno século XIX, ressignificando aqueles valores artísticos do Antigo Regime.

A utopia dos boêmios podemos entender não como algo inexequível, mas, como uma proposta de organização do cotidiano de um determinado grupo ou subgrupo, no sentido de exteriorizar uma visão de mundo, de certa forma, revolucionária para a época. Citando o próprio caso de Nerval, em seu caminho ao cadafalso da loucura.

Elias entende que essa utopia cobrou um preço alto: no caso de Verlaine, ainda tratando-se de uma juvenília, mas ainda empunhando a bandeira dos “boêmios galantes”, no caso deles, desse projeto de mundo, o que restou foi a imagem de outsiders.

Enquanto outros de sua geração, como Mallarmé, foram considerados expoentes do modernismo, parece que a história guardou ao autor das Fêtes a pecha de autor maldito, não transcendendo a esfera do simbolismo e do fim de século que a sua poesia simbolizou. Fato esse que não diminui em nada o valor da obra de Paul Verlaine.

Ao mesmo tempo, transitando no campo fértil da interdisciplinaridade, a permanência de Watteau em Verlaine mostra um caminho singular: um gênero específico de teatro influenciou a cultura francesa no começo do século XVIII no terreno das artes plásticas.

Mais tarde, o pintor belga influenciaria uma plêidade de poetas em pleno Romantismo para as fronteiras da literatura, chegando em Verlaine, cuja sugestão musical (que reside, antes de tudo, em sua profissão de fé “antes de tudo, a música”) para, a partir dele, chegar à música propriamente dita, com as Suites Bergamesques, de Debussy, traçando um percurso que amalgamou, a um só tempo, tão diversos universos das artes em geral.

Referências:


ELIAS, Norbert. A peregrinação de Watteau à Ilha do Amor. Zahar, 2005.
GOMBRICH, Ernst. História da Arte. LTD, 1999.
MATERNO, Angela In: BRANDÃO, Tânia (org). O Teatro Através de História. Entourage, 1994, vol. 1
PENNAFORT, Onestaldo. In VERLAINE, Paul. Poesias Escolhidas. Globo, 1945.
PENNAFORT, Onestaldo. Advertência. In: Festas Galantes, Civilização Brasileira, 1983.
PLAX, Julie-Anne. Antoine Watteau : perspectives on the artist and the culture of his time. Newark : University of Delaware, 2006.
KLEINER, Fred. Gardner's Art Through the Ages: A global history. Wadsworth Publishing, 2012

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