Saturday, March 04, 2017

URSS no Divã


Capa do livro

Terminei o livro da Svetilana Aleskevich, Vozes de Tchérnobyl (ou Chernobyl, como prefiro usar aqui). Que coisa impressionante você ouvir a voz interior do povo russo da forma como ela fez. Não sei o que dizer. ela colocou a URSS no divã. A história da viúva do liquidador eu chorei acho que uns 40 minutos. é muita coisa para dizer e para se pensar.

Mas, como ela disse no discurso do Nobel, na verdade os livros dela no fim das contas, pelo método que ela emprega e o tema, são discursos sobre o mesmo tema. A relação do povo com o estado, com o passado soviético, o homem soviético, esse sentimento fatalista, essa coisa de ter que esconder essas histórias em favor do estado, do orgulho russo.

A loucura da forma como as pessoas foram tratadas como lixo na evacuação, aquilo é um quadro apocalítico. Antes de tudo eram pessoas, pessoas enterradas vivas, uma nação de seres humanos jogado na vala.

Uma história de guerra, da enfermeira que arrastou um soldado alemão, pôs o homem numa tala, e salvou um russo, eis que os dois acordam e, mesmo mortalmente feridos, começaram a matar-se, ela afastava os dois, no chão, se esvaindo em sangue, e o sangue deles se misturava e cobria a enfermeira que, em desespero queria apartar aquela briga absurda.

Os russos encaram a II Guerra como a Guerra Patriótica. Aquilo para eles é tudo, é mais que o 7 de setembro. Mas Chernobyl foi uma guerra que eles não entenderam. Na II Guerra, as pessoas queriam ir para o front, queriam defender de peito aberto a Rússia. Em Chernobyl eles foram tratados como gado.

Foi criminoso: ainda mais porque politizaram o episódio. Quem expusesse as contradições da forma como o Estado tratava o assunto era inimigo infiltrado. E queriam, como disse alguém, usar pás para lutar contra o átomo. Outro diz: o problema é que os russos sabiam conpreender o que era uma luta patriótica contra o inimigo. Eles souberam lutar contra Napoleão, contra Hitler, mas não estavam preparados para Chernobyl.

Não queriam dar máscaras antigás para "não causar pânico". Medo do pânico, desinformação, mentiras de que estava tudo bem, que era coisa da CIA fez com que a tragédia fosse muito maior. Hoje, na Ucrânia na Bielorússusia, de 14 homens que morrem só um morre de velho.

O resto são hibakushas russos, como no Japão. são os filhos de Chernobyl. Como eles, por décadas os hibakushas foram segregados. Viviam como em colônias penais agrícolas.. São pequenos reatores ambulantes. Até os mortos 'sadios' não queriam saber dos mortos radioativos, fala uma mulher, quando foi enterrar o marido. A chaga exposta, a angústia, o desespero daquelas pessoas marcadas para sempre é uma coisa que, para ver! Eu via aquelas fotos absurdas de Prípat e não entendia nada.

O que aconteceu. Uma imagem vale por mais de mil palavras. Mas aquelas fotos não são nada comparado com os relatos. Os relatos explicam tudo. É avassalador, desesperador. Assim como eu via aquelas meninas bonitas em fotos do front russo, como aquela atiradora de elite, Roza Chanina. Uma menina linda. O que ela estava fazendo no front? O que aquelas mulheres fizeram na II Guerra é inacreditável.

A História Oral que ela faz é banido da academia soviética. Era como no 1984. Quem controla o passado, controla o futuro. Não queriam saber de história oral. Queriam apenas propagar a versão oficial. Achavam que ela queria ser um Erich Remarque da vida. Não tem como não lembrar o John Hershey, Ele chocou o mundo quando deu voz àquelas pessoas e recontou a história delas no Hiroshima. Aquele livro já é desesperador, imagine o Vozes de Chernobyl. Quem paga o preço dessas famílias partidas e destruídas?

O fim de Vozes de Chernobyl prepara-nos para o seu mais recente lançamento no Brasil: o Fim do Homem Soviético. Como Svetilana Aleskevich fala, por conta da técnica e dos temas, os três livros se completam. Em algum momento, um homem fala: nós, diferentemente de outros povos, como o alemão, não aprendeu a lidar com a técnica, com a tecnologia. Nós sempre tratamo o trator como se fosse um cavalo empacado ou coisa parecida. Outros vão mais longe. Apontam o atavismo rural medieval de um país que se fez potência sem passar por um processo histórico como os demais. É der se pensar: esse é só o começo do degelo da União Soviética.

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