Saturday, March 25, 2017

Geração


Batida (no mau sentido) na Lancheria Redenção

Acabaram com o Baile de Porto Alegre. esse ano não vai ter aquele evento que era o ponto máximo da comemoração da Semana da Cidade.

Acho que todas as coisas boas se foram cedo demais. Cedo demais até para que a gente possa falar em nostalgia. Nostalgia parece coisa por demais avoenga, daquelas que a gente tenta recordar não sem um pouco de imaginação. Afinal de contas, se a gente lebra de tudo, então é porque a gente não viveu tudo aquilo.

Mas Porto Alegre parece uma cidade que envelheceu cedo demais.

Digo isso e retorno à Cristóvão Colombo. Quando a gente descia a Ramiro, dobrava à direita e começava a rotina dos bares. Havia o Grilo, com aquele toldo grande, lembra? do lado, havia uma brechó, o Pé da Múmia — que tinha inclusive uma gata gorda que ficava sentada em cima dos livros e discos e ai de quem ousasse mexer com ela ali.

Mais adiante, tinha o Bar do Walter. Verdadeiro pé sujo, mas com m cardápio proustiano. Quem não lembra do filé de porco á milanesa, com aquela travessa de arroz fumegante junto? Ou então, a gente variava o cardápio, e ia no Xuvisco, que fica embaixo, até hoje. O Walter se mudou — foi para a Dr. Vale, e vocês sabem o que eu penso a respeito de bares que mudam de endereço.

Havia muitos outros, como a Cantina Roma, ali, defronte á Brahama, muito antes daquilo virar shopping. Eu morava no Edelweiss e aspirava todas as madrugadas aquele sarro de cerveja sendo preparada.

Hoje, o único bar da Cristóvão que ainda insiste em existir é o Vassouras, na esquina da Câncio Gomes. Passei na frente sexta de noite. Havia um público interessante. Claro que temos ainda o Alfredo, mas ele não conta. Não é propriamente um bar como era o Grilo ou o Walter.

Mas mudei de assunto: estava falando do Baile da Cidade. ele ocorria sempre no sábado da Semana. Não recordo da última edição no parque. Mas lembro que, até os anos 80, havia ainda a vida noturna da Oswaldo Aranha à noite, já naquela fase entre meados dos 80 até 1998.

Por que 1998? Explico. Depois daqueles incidentes que foram chamados de Berlim-Bonfim, a vida noturna na Oswaldo até que durou bastante. A verdade é que, aos fins de semana, aquela parte do Bonfim atraía um número considerável de gente. Às vezes, inconsíderável. Aos domingos, era um negócio weird. lembro de ficar depois do Brique por ali. Até ali pelas cinco da tarde, começava a festa. Era tanta gente que as pessoas conversavam no meio da rua, na frente do Araújo. No Mercado, havia o Luar Luar, com suas mesas que iam calçada afora. Nos fins de tarde, já não havia mesas. A Lancheria também lotava, assim como o João e o Bar Redenção.

Quem chegava atrasado não tinha nem onde ficar para beber. Mas isso não era problema, dada a quantidade de ambulantes vendendo toda a sorte de bebidas possível.

Um domingo comum na Oswaldo era encontrar algum conhecido na Oswaldo, cercado de grupos — muitos punks de verdade, com cabelo moicano e roupas cheias de pregos e penduricalhos. Dali a pouco, rolava aquela vontade de beber algo. A grana era pouca, até que a gente juntava uns morlacos e regateava com algum tio ou tia ambulante a vende rum copo de batida. De repente, você encontrava outro conhecido, rolava um crowdfunding dos brothers e a gente arrecadava mais um copo de trago.

Mais adiante, aparece algum amigo endinheirado com um outro amigo idem e dava para encarar uma Lancheria do Parque. Encarar em termos. Ali pelas seis, sete (ainda hoje), o espaço é disputado. Não existem mesas. Como a lanchera disponibilizava copos de plástico, isso aumentava o consumo mesmo que a gente tivesse que ficar na rua. E, com o balcão do lado, a calçada se comprimia de tanta gente — gente na via, gente na calçada, gente no canteiro, gente por toda Oswaldo. Naquela altura, os ônibus e carros tinham que debriar para poder passar no meio da multidão. Era como se fosse um desses be-ins tão na moda hoje, porém nada combinado. As pessoas simplesmente iam.

Por isso que aquela música do Frank Jorge faz todo o sentido. O "Amigo Punk" nada mais é que uma crônica daqueles dias: punks atravessando a Oswaldo para lá e para cá. Muitas vezes, aquele populacho ficava por ali até a madrugada. O povo arrefecia, mas os bares continuavam, muitos ficavam madrugada adentro. Às vezes, era comum você chegar de noite na Lancheria, e ficar só no vinho (quando beber era barato no Bonfim), e dê-lhe conversa. Sempre tinha alguém para conversar e alguém para juntar os morlacos para a próxima taça de vinho.

De repente, a noite morria na Lancheria. Aí, a gente, já transformado em Mr Hyde, ia procurar mais algum conhecido para pagar uma cerveja no Bar do Beto ou arredores. Ou aproveitava o mundaréu de gente na Lancheria e ficava no balcão, roubando cerveja de alguém que saiu e deixou munição no copo. Lembro de tardes malucas com gente até dependurada do lustre na Lancheria. de repente, aquele blend de maconha do banheiro. E lá ia o Adelar com algum garçom buscar os malucos.

Em 1998, eu lembro do Baile da Cidade. Acho que nunca, antes, nem depois, foi tanta gente. Naquele ano, o grande sucesso aqui era a Hard Working Band. Eles tocavam em todas as partes, no Opinião eram figurinhas batidas. estavam lançando um disco gravado ao vivo no Salão de Atos da PUCRS (a gente tava lá!) e iam ser o piece de resistance do Baile.

A gente conhecia os caras. e juntou um pessoal do estágio em jornalismo para assistir ao show. Parecia que tava toda Porto Alegre dentro da Redenção. eu cheguei cedo, com a grana contada. fiquei tomando umas latinhas de Antárctica no Zé do Passaporte (o antigo, ainda no tempo do Zé, no trailer). Depois, fiquei assistindo ao um casamento (prá matar tempo) na Santa Terezinha, depois fui para o parque. O pessoal começou a chegar. E dê-lhe cerveja, cerveja, até a hora do show. Apareceu um professor nosso, e ele tava com uma garrafa de uísque. e aquilo rodou, literalmente. Depois da Hard Working, ia tocar uma banda de baile, mesmo. No intervalo, já embalados, a gente foi esticar na Lancheria. E dali, aquela coisa. Amigo vai, amigo vem, garrafa de cerveja vai, garrafa de cerveja vem, eu já tava com a tampa cheia, mas positivo operante.

Isso até quando eu realmente fiquei trêbado. subi numa árvore e fiquei gritando que eu era o Billy Shears. Depois, recordo de ver meu chefe passando com a esposa e me vendo pagando vexame ali. O resto eu esqueci. Uma amiga depois me explicou que ela me levou até em casa, e que eu não conseguia andar sem me escorar pela grade. O que eu lembro foi que eu acordei no capacho do 802 (eu morava no 702) na manhã seguinte.

Aquele foi o último baile. No fim do ano, o Olívio ganhou a eleição e o Bonfim foi uma festa. Acho que foi a última vez que eu vi a Oswaldo cheia de gente — e foi certamente a última vez que eu fui no Luar Luar. Um ano depois, como num vendaval, tudo mudou: o Mercado fechou e os bares foram juntos. Luar, Escaler.

O Redenção fechou, o João começou sua lenta agonia, junto com o Bristol e Baltimore. O Araújo resistiu por mais alguns tempos, até 2001. Depois, fechou por quase uma década. E todos aqueles bares que viviam em função desse público, como o Vermelho 27 ou outros, efêmeros, pela volta do HPS, foram sumindo. O que restou, como o Bar do Beto, acabou sofrendo o lógico processo de gentrificação (e que também mudou de lugar).

Acho que toda aquela época acabou numa vomitada épica com a cara enfiada na privada do Bar do João depois de uma noite misturando vinho com cachaça e cerveja. Daquelas que a ânsia continua e não tem mais nada para sair.

E, como no poema do John Updike, a gente nem desconfiava que era uma geração.





No comments: