Wednesday, March 29, 2017

Porto Alegre Noir

Terminei de ler o 20 Relatos Insólitos de Porto Alegre, do Raphael Guimarens (Libretos, 2017). Li e lembrei dos antigos cronistas de Porto Alegre, desde o Antônio Álvares Coruja, lá do começo do século XIX até o Nilo Ruschel, nos anos 70, e o Renato Maciel de Sá Júnior.

Não procuro fazer comparações entre eles, embora isso seja inevitável. Até porque, ao contrário do Coruja e do Ruschel, que realmente viveram aquelas histórias que contaram, o que é surpreendente, porque eles falam de uma cidade que não existe mais, Renato e o Raphael recontam histórias do passado.

O Renato Maciel descobriu o filão do memorialismo sobre Porto Alegre saindo daquela coisa formal, que existia com o Ary Sanhudo ou o próprio Ruschel, no seu inesquecível Rua da Praia. Tanto que seu trabalho rendeu uma inesperada trilogia — que foi um best-seller (hoje pouco lembrado) nas feiras do livro de Porto Alegre nos anos 80.

Eu particularmente descobri a bibliografia a respeito da história (no viés "histórias) de Porto Alegre com o seu Anedotário da Rua da Praia. Os livros são excelentes. Infelizmente, Renato coletou depoimentos históricos, mas não teve interesse em emprestar uma perspectiva "histórica" na sua obra, optando por uma abordagem pitoresca, para não dizer obviamente humorística. Por sinal, é notável perceber que muito dos livros do Sá Júnior têm o volume de Nilo Ruschel como ponto de partida.

Já Raphael Guimarães têm desenvolvido uma obra singular que tem esse atavismo da perspectiva do memorialismo sobre a capital, numa série de livros que têm Porto Alegre como cenário. Desde o Tragédia da Rua da Praia a até o livro sobre a enchente de 42, o 20 Relatos Insólitos de Porto Alegre se caracteriza por ser uma rescolta de histórias, o que o aproxima do panteão dos grandes cronistas da cidade.



Mas interessante em 20 Relatos Insólitos de Porto Alegre é o tom a la New Journalism das histórias. O texto não quer o mero relato formal nem explorar o lado humorístico de histórias um tanto sombrias e que, por mais incrível que possa parecer, realmente aconteceram.

O tom, do livro é de quem está assistindo a um filme de curtas, e é impossível não ler os relatos sem imaginá-los como pequenos romancetes com um tom meio noir, tão bem contados que parecem pura ficção. Muitas delas tem um lado noir mesmo, e em preto-e-branco, de jornalismo antigo, romance policial, com histórias divertidamente folhetinescas, casos de amor e morte.

Arthur Elsner, um dos grandes maestros de Porto Alegre, cego e regente da antiga rádio Difusora torna-se uma espécie de compositor torturado por uma paixão fulminante por uma garçonete da Confeitaria Central (que ficava no Largo dos Medeiros que, por si só, valeria um livro), e o caso de amor também trágico, de Araújo Vianna por Olintha Braga. Um grupo de prostitutas que, com a ajuda do intrépido repórter e rábula Mário Cinco-Paus, consegue uma habeas para pode voltar a fazer o lenocínio de cada dia; uma fuga impossível da Ilha do Presídio; o triste fim de d Honorina, viúva de Júlio de Castilhos. Um caso policial em pleno bairro Navegantes dos anos 20 e sua surpreendente reviravolta; ou o extravagante caso do Professor Hindu que, de noite, virava o transformista Danúbio Azul.

Raphael soube recontar de forma sucinta e original duas histórias que, por muito tempo, viviam na memória da população como lendas urbanas: o assassinato de Maria Francelina, de amásia a santa do bairro Partenon (que Raphael transforma o algoz em tema de um debate absurdamente dostoievskiano a respeito das razões do crime) ; e o sumiço do delegado responsável pelo famoso inquérito envolvendo as mortes na rua do Arvoredo, ocorrido no longínquo ano de 1864. o caso foi tão escandaloso para a época (segundo reinado) que ela só sobreviveu como lenda — inclusive, por muitos anos, muita gente achou que era lenda mesmo.

em 20 relatos, a história ganha nova abordagem, num contexto de texto jornalístico, agora sob um novo contexto. Olhado em retrospectiva, o Crime da rua do Arvoredo hoje parece banal. A lenda só transformou um duplo assassinato num caso de canibalismo por parte de toda a população de Porto Alegre. (a história só seria recontada em seu devido contexto mais um século depois, com o O Maior Crime da Terra, de Décio Freitas).

Mesmo que as histórias não sigam um padrão, é curioso observar, em 20 relatos, que algumas delas, mais curtas e mais leves, sirvam como 'vinhetas' entre as crônicas mais dramáticos. Mas é importante notar tanto o apuro na hora de contar os tais relatos ( em alguns casos, elas ganham foros quase de auto-ficção, onde a primeira pessoa se confunde com o repórter-narrador (o elemento recorrente na obra é o trânsito entre a reportagem de jornal e a história policial, como se fossem complementares, e típicos desse voyeurismo literário do fait-divers e suas possibilidades poéticas, do folhetim ao jornalismo literário), tornando assim o leitor cúmplice do desdobramento do drama, o que empresta ao livro esse clima noir, de pequenos roteiros 'ligeiros'. O 20 Relatos Insólitos de Porto Alegre pegar e não largar. Já estamos esperando outros 20.

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