Thursday, April 06, 2017

Uma Manhã na Rádio da Universidade


O castelinho do Campus Centro



Esses dias, fui convidado como ouvinte a dar um depoimento sobre a rádio da Universidade, que vai fazer aniversário dia 1º de julho. Eles vão juntar vários depoimentos gravados de ouvintes, professores, ex-funcionários, e lembraram-se de mim. Fiquei um tanto lisonjeado, e ainda por cima feliz em voltar ao castelinho onde fica a emissora, no Campus Centro da UFRGS.

Me pediram para falar algo como uns dois minutos sobre minha história com a rádio. Passei o dia mirabolando alguma coisa. Lembrei de várias. Até porque o rádio é uma companhia constante e, numa época em que as opções na onda média estão cada vez menores, a gente vai se prendendo a poca coisa. Mas a Rádio d-a Universidade sempre será uma constante para mim.

Quando chegou o momento de gravar, numa terça de manhã, cheguei mais cedo, sentei-me nas mesas do Antônio, ali mesmo no Campus, e pus-me a escrever copiosamente o que me viesse à mente. Não tinha computador á mão, logo apelei para meu caderno.

A primeira coisa que eu me lembro da rádio da Universidade é aquele disco arranhado do Roberto Szidon interpretando as polcas e os tangos do Ernesto Nazareth. Lembro que eu achava bonito ficar ouvindo música clássica. Deixava o rádio alto para que todo mundo notasse o maluco que estava escutando clássico. Mas, na verdade, quando eu ouvia aquilo, eu não tinha lá muita ideia do que se tratava. Só que era algo muito distante daquilo que a gente se acostuma a ouvir.

Também me chamava a atenção o som do AM da rádio. Tinha um reverber, algo que é sempre típico do som de cada emissora. Mesmo no AM, a gente percebe uma sensível diferença no áudio de cada canal. o som da 1080 é bem peculiar, o som do estúdio, na hora da locução, ainda mais quando a gente escuta em equipamento antigo.

Ao mesmo tempo, sempre fiquei intrigado. Como uma rádio consegue manter-se no ar tocando coisas que a maioria das pessoas não procura em rádio. Além disso, eu não gostava de música clássica ainda. Achava aquilo exótico, mas ficava pensando nas pessoas que tinham o hábito de ficar ao pé do rádio ouvindo aquilo.

Um dia, tempos depois, eu perguntei ao professor (já aposentado) Sérgio Stosch, que era meu professor na Famecos quando fiz minha primeira graduação, em Jornalismo, lá por 95. Ele ministrava o curso de rádio na faculdade da PUCRS, e me convidou. Foi então a primeira vez que eu estive nas dependências do castelinho.

Achei maravilhosa a concepção daquele prédio avoengo abrigando um estúdio gigantesco, com piano de cauda e tudo. e, no andar do rés do chão, uma sala enorme com discos. Naquele tempo, a rádio ainda tocava disco na maior parte da programação. Eles estavam começando a formar uma cedeteca, e ainda era difícil montar um acervo digital (logo depois, as coisas iriam mudar) mas, mesmo assim, a discoteca da emissora, além de histórica, tinha tudo o que se pudesse imaginar em matéria de música. Por sinal, hoje que todas as rádios deletaram sues respectivos acervos, a 1080 deve ser a única em Porto Alegre que ainda mantém uma discoteca.

Naquele dia, indaguei justamente isso ao Stosch: como uma college radio ainda se mantinha como quer parada no tempo, com uma programação de erudito 24 horas? E justamente focando num tipo de programação que não devia interessar muito aos estudantes da UFRGS. Além do mais, outras universidades tinham uma programação jovem, a Unisinos e a Ulbra (pelo menos, em 95, ainda era uma college radio, até aderir ao pop comercial anos depois, e ainda mais agora, que virou enlatada).

Ele concordou que havia resistência de ouvintes. E era uma marca registrada deles. E a rádio tinha muitos ouvintes de fora, de outros estados e outras cidades, que apreciavam a programação. Ele disse que muitos ouvintes achavam que, devido ao tamanho de muitas peças, alguns reclamavam que achavam que a rádio "esquecia" os seus ouvintes no ar.

O curioso é que, com o tempo, eu refiz o erro de cálculo: eu é que deveria aprender a ouvir a programação da rádio.

Pois, de tanto ouvir aquele disco arranhado do Szidon, eu decidi comprar um disco de música clássica. Então, peguei um fascículo da Abril com peças do Chopin. Aconteceu comigo como aconteceu com relação a ouvir tango: depois que eu comprei o disco e ouvi, minha atenção se voltou para aquele tipo de música.

Ou seja, eu comprei meu primeiro disco de música clássica por causa da rádio da Universidade. Como naquele tempo voc~e comprava vinil de clássico quase de graça em sebos, eu acabei formando uma discoteca gigantesca (sobre ela já aludi em post anterior, chamado "Desapegos", que conta o trágico fim dessa mesma discoteca).

acabei comprando todos aqueles fascículos de música clássica da Abril. Achava legal que, nessa época, a 1080 sempre fazia um breve histórico de algumas peças que eram executadas. Foi uma época de aprendizado, de guiar-me pela programação deles e de aprender sobre a história dos compositores pelos fascículos, e isso numa época em que não havia internet. Hoje, eu me guio pela programação do site, jogo no Google alguma coisa que está tocando. Sempre tem alguma coisa de algum compositor que eu ou ainda não conheço ou que não ouvia há tempos.

Com o tempo, eu acabei virando ouvinte fiel da rádio, depois me desfiz do meu acervo, então, a rádio da Universidade é hoje a minha memória afetiva. Afinal, da minha gigantesca coleção de discos, todos comprados a dedo, sobrou apenas um disco do Bach Edition, com duas cantatas, e a caixa do Nabucco, do Verdi, com o Tito Gobbi. Para mim, o que ficou é o que eles tocam. Meu espólio é a música que anda pelo éter e é transmitida pela rádio da UFRGS. Hoje eu tenho um outro entendimento, e a música que eles tocam é a minha música, o que eu gosto de ouvir.

Num mar de esquisitices, ainda mais hoje, na era do pós-rádio, onde todas as práticas e segmentações foram eliminadas em favor de convergência de mídias e horizontalização com produção de conteúdo virtual por canais da internet, rádio como a da Universidade parecem anacrônicas, como eu a achava, quando jovem, mas vejo que elas são vitais, mas vivem o paradoxo de serem um patrimônio cultural à disposição das pessoas e que é totalmente negligenciada, como em tudo o que se refere a práticas culturais em geral: ninguém mais quer aferrar-se ao que é difícil. Ninguém quem empreender uma jornada em busca de conhecimento. Quer um dispositivo que diga o que eles querem ouvir. Parece ranhetice da minha parte, mas eu digo isso simplesmente porque eu era assim.

Comentei, a guisa de mero improviso, antes de ligarem o microfone para mim, que eu conhecia o espírito da programação musical. Claro que referi-me aos programas institucionais, de professores, de alunos, da associação de professores e a de funcionários, programas que existem ainda, como o Literatura, A Voz do Docente, Sexta Lírica etc. E outros que acabaram, como o Tangos en La Noche. E que sabia que de manhã, eles sempre começam com uma cantata do Bach, depois é um desfile de barroco e clássico, Haydn, Haendel, até ali pela metade da manhã, quando entram os românticos, Liszt, Czerny, Mendelsohn. De tarde, já aparece um Chabrier, Satie, Stravinski, Saint-Saens, Glazunov, Rameau, Respighi, por aí. E, já entrando madrugada adentro, depois do boletim astronômico, aí, como não há as interrupções nas horas cheias, com os boletins de notícia, a programação é copiosa em peças longas, Réquem alemão do Brahms, sinfonias do Mahler, poemas sinfônicos do Strauss, etc.

Acho divertido, e até comentei essas coisas na hora de gravar o spot na rádio. Não havia tempo para falar muito, e acho que falei coisas que não escrevi aqui, da mesma forma que escrevo agora lembrando de coisas que esqueci de falar. Não dei a sugestão á eles, mas a verdade é que daria para fazer um programa com ouvintes falando sobre suas peculiaridades. Um ouvinte de rádio que toca musica clássica é algo como um dodô, uma espécie em vias de extinção. Eu sou um dodô.

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