Thursday, August 25, 2016

Vidas Paralelas


Jânio Quadros


Dia 25 é o Dia do Soldado é é também, para quem ainda se lembra, o fatídico dia da renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961. Sempre eu passo por esta data e recordo dessa efeméride, me vem à mente um capítulo da autobiografia do Samuel Wainer* (que, aliás, recomendo tanto para quem faz jornalismo quanto para quem não faz jornalismo). Nunca esqueci deste livro porque meu professor de História no 2º grau, na antiga Escola Mauá (de quando ela ficava na Dr. Flores, em cima do prédio da Hudersfield, lá no começo dos anos 90. No curso, ele nos passou o xerox do capítulo 31 (mais tarde, eu leria o 32 e, mais tarde, o livro inteiro).

Os dois episódios narrados aqui — um com Jânio e o outro com o seu vice, João Goulart, mais do que subsídios para explicar a crise de 1961, servem um pouco para mostrar um retrato sem retoques da personalidade de ambos. Os dois personagens falam por si. O resto é só relacionar com os fatos.


...............................


No começo do capítulo 31, Wainer discorre sobre como os empreiteiros começaram a tomar conta do Brasil, a partir da construção de Brasília e da relação de Juscelino Kubistchek com Marco Paulo Rabello. Em seguida, ele conta que, nas eleições de 1960, como seria natural, a Última Hora iria investir agressivamente contra o candidato da UDN. Porém, como Samuel salienta que Lott era um partido fraco, e que perdia-se em gafes — enfim, era um grande nome, porém potencialmente ruim de votos.

Quando Jânio venceu, Wainer viu-se obrigado a colocar trincheiras diante de si; afinal, Jânio iria certamente pôr Carlos Lacerda (que, por sua vez, havia sido eleito para o novíssimo Estado da Guanabara) como seu factorum. O efeito, contudo, foi nulo. Durante aqueles sete meses para ele seriam de bonança. De acordo com o diretor da Última Hora, Quadros tinha um certo 'fascínio' por ele, dos tempos em que fora prefeito de São Paulo.

Certo dia, Samuel recebeu uma ligação do secretário particular de Jânio, José Aparecido de Oliveira. Ele queria uma reunião com o dono da Última Hora, a fim de discutir a questão cambial no Brasil. O Presidente queria fazer restrições à importação de vários insumos, entre eles, o papel de jornal e, por fim, queria a opinião dele a respeito do assunto.

Pegou o primeiro voo para Brasília. Foi recebido pelo motorista oficial de Jânio, que o conduziu até a biblioteca do Palácio. Quando entrou na sala, viu o recinto vazio e uma garrafa de vinho do Porto, quase que pela metade. Wainer achou estranho: sabia que Quadros era um copioso bebedor de uísque.

Eis que, de repente, irrompe o presidente,. de slacks e robe de chambre.

— Que bom que vieste, Wainer. Estás fadado a apoiar-me — falou.

Depois de comentar sobre o apoio da Última Hora à candidatura Lott, reclamar do alto custo das importações brasileiras, entre goles e mais goles do vinho do Porto — que, por sinal, não ofereceu ao convidado ** — Jânio agarrou o braço de Samuel e disse:

— Vamos combater com essa plutocracia!

Wainer entendia o recado em parte: o presidente reclamava e acusava donos de jornais de, na opinião dele, torravam milhões de dólares em papel importado. "Ele achava que meu apoio ao governo era essencial, tanto pela influência [do jornal] quanto pelo fato de que eu sempre lhe fizera oposição", diz Samuel, em suas memórias. "Ponderei que, se aderisse incondicionalmente ao governo, meu jornal perderia peso político. Parecia mais sensato permanecer na oposição e apoiar o governo sempre que adotasse medidas corretas".

Jânio pareceu estar satisfeito com a tese. De repente — segundo Wainer — o presidente bateu na testa e, com um olhar enlouquecido, disse que contava com três forças:

— É a Santa Trindade — bradou. — Conto com a Santa Trindade para me apoiar nessa luta pela salvação da pátria!

Sem entender o rumo da conversa, o jornalista indagou:

— E com quantos generais o senhor conta?

— Não conheço sequer o nome do Chefe da Casa Militar — confessou. — Se um prelado com mandato parlamentar entra aqui como prelado, ajoelho-me e beijo-lhe o anel. Mas se me vem como político, eu o expulso porta afora — disse.

Na saída, Jânio voltou a saudar o virtual apoio da Última Hora ao seu governo e prometeu um novo convite — que não aconteceu.


.............................


Com a renúncia (Já no capítulo 32), Wainer preferiu entrincheirar-se em São Paulo, novamente temendo qualquer represália de Lacerda. Como se sabe, quando Quadros renunciou, em 25 de agosto daquele ano, João Goulart estava na China e, enquanto fazia várias escalas em sua viagem de retorno, tentava aos poucos tomar parte da situação. Quando chegou em Paris, Goulart ligou para Samuel:

— Tu achas que devo voltar? — indagou.

Conhecendo Jango, ele preferiu despistar. Deu de ombros e respondeu:

— Não estou em condições de responder. Aliás, não sei nem o que é que vai acontecer comigo.

— Mas como? — insistiu o vice. — Então tu achas que eu não devo voltar?

O jornalista bateu na mesma tecla. Não sabia nem qual seria o seu futuro dali por diante.

— Então...tu és contra a minha volta?

— Não é nada disso — protestou Wainer. — Acho que devemos interromper essa conversa por aqui. Só que, antes, eu gostaria de lembrar ao senhor que um líder decide por si, a até mesmo contra os seus próprios impulsos, muitas vezes até contra os seus aliados. Você é o líder. Portanto, decida.

Mais adiante, Wainer revelou emocionar-se com a decisão (ou "decisão") de Jango. Com Goulart no governo, Getúlio ainda permanecia no poder. Contudo, ao traçar um paralelo entre os dois presidentes, ele esboçou uma imagem curiosa do herdeiro político do PTB: "João Goulart era um típico moço da fronteira, que adorava cabarés e bailarinas, que divertia-se com boêmios e prostitutas, que passvaa noites inteiras conversando em mesas de bares. Não tinha prazer algum em conviver com grã-finos, detestava enfiar-se numa casaca para comparecer a alguma solenidade (...) como líder populista, jango exibia uma evidente inapetência para certas exigências do poder. Getúlio sempre demonstrou enorme prazer pelo fato de ser o número um da República; Jango, não".

Certa feita, Samuel conta que foi procurar Goulart em seu apartamento, no edifício Chopin, ao lado do Copacabana Palace. encontrou-o rodeado de capangas e bebendo uísque, todos com os pés "confortavelmente colocados sobre mesas".

— Quero cumprimentá-lo pelo dia de hoje.

Ao saber que era 6 de janeiro, sorriu:

— Ah, o aniversário do João Vicente!

Wainer confessou que não sabia que era aniversário do filho de Jango. O presidente então coçou a cabeça. Pensou:

— Hoje é Dia de Reis!

Samuel explicou que, como judeu, não conhecia muito bem o calendário cristão.

— Ué, então o que temos para comemorar hoje, afinal?

— Presidente, hoje faz um ano do Plebiscito do presidencialismo! Não é possível que você tenha esquecido dessa data em apenas um ano!

— Pois é, me esqueci — respondeu Goulart.

Meses depois desse encontro, Wainer assistiria a mais uma crise política, está alijando o herdeiro político de Vargas definitivamente do poder. Para o jornalista, não havia muito a lamentar: "eu sabia que a perspectiva de ser deposto nunca afligira Goulart da mesma forma que inquietara, por exemplo, Getúlio [...]. Não seria preciso, portanto, chorar por ele".


* Samuel Wainer, Minha Razão de Viver. Editora Record, 1987. pp 224-236.

** No Depoimento (que inspirou o Minha Razão de Viver), Carlos Lacerda, por sua vez, conta o último encontro dele com Jânio, na véspera da renúncia. Essa história eu conto da próxima vez. Mas para quem quiser ler, é só procurar o livro.

No comments: