Friday, August 12, 2016

Século do Samba *


Selo do disco



No princípio era a batucada. Como era comum no cotidiano dos morros da Zona Norte do Rio de Janeiro, no começo do século passado, era comum o hábito informal de criar serões musicais, ou rodas de samba. Volta e meia, essas rodas ganhavam o Centro, ou ocorriam na

Festa da Penha ou no Centro, na rua da Alfândega.
No entanto, essas rodas eram duramente reprimidas pela polícia da época. As autoridades reprovavam o que entendiam tratar-se de “prática de candomblé”.

Como forma de resistência, eles encontravam-se, às escondidas, nos quintais das casas de baianas na Cidade Nova — em geral, mais abastadas, ou donas de casas de pensão.

Uma delas, Tia Ciata, entrou para a história, não só por manter uma das primitivas casas de samba, na antiga Visconde de Itaúna, nº 119, nos arredores da Praça Onze.

Mais do que isso: foi a partir desses e de tantos outros encontros informais de bambas e filhos de baianas ali que surgiria o gênero musical mais popular no Brasil: o samba.

Se a origem e a etimologia do samba até hoje são motivos de disputa entre pesquisadores e músicos, a história da gravação do primeiro tema do gênero é fonte de discussões intermináveis.

Contudo, se o ritmo foi gestado quase como anônimo basicamente e fruto de criação coletiva, o samba teve a sua certidão de nascimento com “Pelo Telefone”, em novembro de 1916.

Gravado por Baiano e a banda da Casa Edison, em 1916, “Pelo Telefone” não foi o primeiro samba gravado na história.

Antes de ser registrada na Biblioteca Nacional, naquele ano, por Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga (um dos frequentadores da casa da Tia Ciata) com o nome de "samba", pelo menos dois discos do estilo já haviam sido prensados: um é "Em Casa de Baiana" (1913) e "A Viola Está Magoada" (Baiano, 1914).

"Pelo Telefone", porém, trazia duas novidades: a primeira é que, ao contrário das gravações anteriores, era cantada (os registros anteriores eram instrumentais); a segunda é que, gravada para o Carnaval de 1917, a música se tornaria o sucesso dos festejos de Momo daquele ano na Capital Federal. Todos os clubes carnavalescos, cordões e sociedades cariocas pela primeira vez entoavam os mesmos versos: "o chefe da folia/pelo telefone/mandou me avisar/que com alegria não se questione para se brincar".

“Pelo Telefone foi a certidão de nascimento do samba”, diz Paulo Joeli Ramos, musicólogo e jornalista. Para ele, mesmo que de forma inconsciente ou meramente mercantil, o que também é um passo importante para a época, Donga foi pioneiro em registrar uma canção. “enquanto criação coletiva, o samba era anônimo. “Pelo Telefone” institui pela primeira vez a figura do compositor popular, já com um caráter eminentemente urbano, até pelo próprio nome”, salienta.

Fábio Gomes, também pesquisador e mantenedor do site Brasileirinho, entende que Donga tinha a intenção de registrá-la sem propriamente a intenção de roubo, já que o samba era, na verdade, uma variação sobre outro tema pernambucano, chamado “Roceiro”.
— O registro possivelmente se devesse à questão de direitos autorais (afinal, é para este fim que o registro na Biblioteca Nacional existe), mas não lembro de uma declaração específica do Donga a respeito.

A partir dali, como explica Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano no livro A Canção no Tempo, o samba, já como um gênero urbano, iria fixar-se no imaginário social.

Além de Donga, outros compositores surgiriam, entre eles, J. B da Silva, o Sinhô, nos anos 20, e Noel Rosa, nos anos 30. Jairo e Zuza entendem que o caso de Noel, por sua vez, libertaria o samba de seu passado ligado ao velho maxixe e emprestaria maior densidade poética às letras, até então muito presas à temática das primitivas cantigas de roda.

Na década de 30, o samba ganharia o rádio e ganharia projeção nacional”, diz Ramos. Ele explica que o gênero iria se subdividir: enquanto ele dividia o reinado de Momo com a marcinha, toda a produção chamada de “meio-de-ano” passou a ser chamada de samba-canção”, revela.

Para Paulo Ramos, à medida que se massificava, o samba-canção foi se misturando com outros estilos, como o bolero, em favor de uma temática de dor-de-cotovelo. “enquanto era criticado por pesquisadores ‘nacionalistas’, como José Ramos Tinhorão, o samba se renovava com a Bossa Nova, nos anos 50” diz. Ele explica que, após um ostracismo de décadas, o estilo voltou à baila com iniciativas, como as edições da Bienal do Samba, já na época dos festivais da Record, nos anos 60, e o Clube do Samba, nos anos 70.
Protagonizado por João Nogueira, o Clube aproximou velhos expoentes, como Nelson Sargento, Cartola, Nelson Cavaquinho e outros para uma geração de intérpretes, como Alcione, Beth Carvalho e Roberto Ribeiro. “Ao mesmo tempo em que busca das raízes, o samba ganha novos ouvintes e, num sopro de renovação, chega novamente às paradas de sucesso, como “Todo Menino é um Rei”, em plena era da discoteca”, ressalta Ramos.

Os anos 70 foram cruciais para essa renascença do samba: enquanto velhos bambas vinham pela primeira vez ao disco, como Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça, Cartola e Nelson Sargento, de Ramos aparecia o Fundo de Quintal.
“Numa abordagem mais ‘camerística’, quase como que como influência do choro, com a criação de novos instrumentos de percussão, como o repique, eles amalgamavam a Velha Guarda numa visão, ao mesmo tempo antiga, moderna e atemporal do samba”, diz Paulo Ramos. De acordo com o pesquisador, esse modelo de conjunto espalhou-se e serve de modelo até hoje.


Os quatro minutos que mudaram tudo

“Pelo Telefone, samba carnavalesco, gravado por Baiano e Corpo de Coro, para a Casa Edison, Rio de Janeiro”. Quem ouvir o disco hoje, ficará confuso. A qualidade da gravação é precária — embora de enorme valor histórico. Ao mesmo tempo, perceberá que o tal samba mais parece uma toada amaxixada, sem nenhuma percussão.

A verdade é que estamos falando de um século atrás: naquele tempo, não existe a tecnologia de hoje. O processo de gravação era rudimentar: todos cantavam espremidos diante do microfone. Seria impossível colocar um pandeiro ou prato-e-faca e arriscar cobrir todo o resto, por exemplo.

Apesar de aparentemente simples, a gravação de “Pelo Telefone” não apenas mais um disco. Seu intérprete, Baiano (nome artístico de Manuel Pedro dos Santos), era um dos maiores dos primeiros tempos da música no Brasil.

Basta lembrar que foi ele mesmo quem registrou, em 1902, a primeira gravação no Brasil, com o lundu “Isto é Bom”, de Xisto Bahia.
Baiano também era parceiro musical de Donga. Eles escreveram juntos o clássico “Seu Mané Luiz”, que foi sucesso no tempo do teatro de revista, que era a opereta fluminense.

Falando em Donga, “Pelo Telefone” lhe rendeu muita dor de cabeça. Ao mesmo tempo em que assinou a certidão de nascimento do samba, foi acusado de plágio. Sinhô reclamou a autoria. Mesmo tendo adaptado versos do cronista Mauro de Almeida (o tal “Peru” que aparece na letra), não o citou no selo do disco.

Pesquisadores como Jota Efegê descobriram uma nota sobre a execução de "Pelo Telefone" num artigo de fundo do Jornal do Brasil de 1917, indicando a co-autoria de João da Mata, Germano, Tia Ciata e Hilário Jovino. Outro deles, Almirante) defendia a tese de que Donga era, no máximo, co-autor do tema, e que Sinhô havia criado o estribilho. Já ele, por sua vez, respondeu dizendo que Almirante apenas queria acusá-lo de usurpador ao invés de esclarecer a questão.

Outros musicólogos preferem salientar a importância de Mauro de Almeida na composição tanto da letra quanto da música, explicando que o resto era inspirado nas históricas rodas de samba.





* Matéria que escrevi para a revista Passaredo mês passado (adaptada).

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