Thursday, September 22, 2016

A Grande Risada dos Beatles


Cartaz de Eight Days a Week

"Cultura?", responde Paul McCartney a uma repórter, com relação ao que o público iria assistir na apresentação dos Beatles naquela noite. "Não, será apenas uma grande risada". De fato, talvez o show de uma banda de jovens tocando rock não era mais do que isso. Além do mais, eles sabiam que eles eram apenas grandes entreteineurs. Isso, de certa forma, o quarteto de Liverpool sabia — e sabia muito bem. Isso é o que podemos ver no mais novo documentário do conjunto inglês, Eight Days a Week — The Touring Years, lançado no último dia 15.

Ao contrário do que se esperava, o filme não se debruça nos anos de formação do grupo — algo que já foi por demais esmiuçado na série Anthology, e que foi inclusive televisionada, há mais de duas décadas atrás (nossa, faz tanto tempo assim?).

Aliás, o grande obstáculo de Eight Days a Week é, com efeito, mostrar que tem mais a dizer além daquilo tudo o que já foi dito sobre os Fab Four. Por outro lado, ele tem a finalidade de colocar John, Paul, George e Ringo novamente na mídia.

Ou, de ponto-de-vista mercadológico, havia uma pendência no rol da discografia dos Quatro Cavaleiros de Sua Majestade Britânica: era o álbum Live at the Hollywood Bowl. Lançado em 1977 como único registro oficial dos Beatles ao vivo, o disco, mixado pelo falecido George Martin (à duras penas) partir de tapes gravados pela Capitol, subsidiária da extinta EMI nos Estados Unidos, estava fora de catálogo há quase quarenta anos.

Como a Apple não prega sem estopa, a ideia de casar um documentário com a reedição do disco, agora pela primeira vez em formato digital (embora existam dezenas de edições apócrifas dizendo-se oficiais por aí, a maioria editados a partir de países livres de perseguição contra a pirataria musical) foi o componente irresistível. Por sinal, foi assim que a empresa conseguiu desencavar todo o material da série Anthology, enfeixando numa trilogia o melhor do bootleg que corria solto pelo mundo afora.

Contudo, se havia realmente muito a dizer no citado Anthology, a dificuldade de Eight Days a Week é a de apresentar-se como algo novo — a não ser pela nova geração de fãs (já na era do streaming) que, pálida de espanto, como no soneto, descobre no novo documentário dos Beatles que, ao contrário da grande risada de Paul McCartney, o quarteto britânico realmente inventou — mesmo que à revelia — a cultura rock que preexiste (?) até hoje.

De fato, como atestam os doutores em Indústria Cultural, o rock era música de nicho até a efeméride dos baby boomers: a partir dali, o gênero deixou de representar um nicho já propriamente enquadrado pelas gravadoras, para tornar-se um movimento de massas cujas bases estabeleceram-se a partir do advento da Beatlemania — disseminando um tipo de música que iria basear toda a indústria do disco e do entretenimento nas décadas seguintes.

A tal cultura da grande risada foi um maremoto tão infame que influenciou até aqueles que negariam a música dos Beatles — se não como paradigma musical, como agente instaurador (e perdoem-me por proclamar o óbvio aqui) de uma nova ordem entre os jovens e até perante ao estabilishment norte-americano, até então, a vanguarda cultural do planeta.

Pois é justamente por dar o devido protagonismo não aos Beatles, mas às testemunhas do que foram aqueles anos das turnês ianques (1964, 65 e 66, do show de Washington DC até o Candelstick Park, em San Francisco) que Eight Days a Week vale o ingresso (ou o download, seja o que for, enfim) — além da música, é claro.

Uma das vozes do documentário é Larry Kane. Hoje âncora de programas da The Comcast Network, no começo da carreira, ele cobriu as duas primeiras turnês dos Beatles na America. Como ele próprio diz, foi comissionado e não pôde voltar atrás.

À princípio, relutante — e, como ele diz, à época, contra seus próprios princípios, contra a Beatlemania, acabou seduzido pelo canto de sereia daquele quarteto que assombrava os Estados Unidos que viviam o anticlímax da morte de John Kennedy e o surgimento dos movimentos sociais. Como seria de se esperar, tratando-se de um documentário "oficial", Kane não iria explicar aquilo que John Lennon comentou a Jann Wenner, na famosa entrevista á Rolling Stone, de que as turnês dos Beatles assemelhavam-se ao "Sathyricon do Fellini".

Ao contrário, porém, ele revela um episódio interessante, quando a banda foi tocar em Jacksonville, na Flórida. A cidade, como na maioria dos estados do sul, ainda em 1964, era ampla e agressivamwente segregacionista: até os bebedouros eram divididos ou para brancos ou para "coloured". Foi nesse ambiente que John, Paul George e Ringo chegaram. Porém, ao descobrir que a plateia do show também seria dividida, eles ameaçaram vetar a apresentação. Brian Epistein, temendo uma fronda da parte branca da opinião pública, ficou perplexo ao ouvir Paul dizer numa coletiva sobre o assunto que aquilo era um absurdo.

Ao contrário do esperado, o show aconteceu e, pela primeira vez na história, Jacksonville assistiu a um show de uma banda de rock com uma plateia de brancos e negros. Por conta disso, logo a separação de plateias cairia para sempre na cidade.

O documentário, dirigido por Ron Howard, também prima pelas imagens de arquivo: muitas cenas de palco eram desconhecidas inclusive dos fãs mais roxos dos Beatles. Além disso, apresentações como a de Washington foi colorizada; a do Shea Stadium aparece num HD nunca antes visto. E o histórico show no Hollywood Bowl foi praticamente recriado. A filmagem original não possui áudio — que foi posteriormente adicionado aos tapes remasterizados da Capitol.

Já a reedição digital do álbum de 1977 (que já pode ser escutada nos sites de streaming) compreende as 13 canções do elepê original, mais quatro bônus, sendo que um deles ("Baby's In Black") já havia saído nos singles do Anthology. O material é uma seleção de quatro shows (dois de 64 e dois de 65), com setlist ligeiramente diverso. Como numa das noites de 65, o microfone de Paul falhou, optou-se por uma salada de todos as gravações, ao invés de lançar um show completo — que são conhecidos dos bootlegers, porém, com qualidade inferior.

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