Monday, August 15, 2016

Habitat Natural


Capa do disco

Apesar de parecer apenas mais um caça-níquel, o CD duplo Way Down In The Jungle Room, de Elvis Presley, revela mais do que boa parte da sua discografia esconde.

Como se sabe, o cantor norte-americano nunca se notabilizou por sr um artista de álbum, mesmo que tenha lançado vários discos memoráveis, como o Elvis Is Back e o Back to Memphis. Quer dizer, diferente da maioria dos roqueiros daquele tempo, o rei não tinha interesse em gravar o disco — ainda mais quando sua rotina com a gravadora e empresário solapava aos poucos toda a sua ambição como artista.

Elvis era um cantor memorável, e ainda o é, o maior de todos. Porém, por conta dessas relações, sua produção ficou à mercê do seu próprio desinteresse pelo material disponível. Nos anos 70, quando finalmente passou a ter relativa autonomia em suas produções, ele acabava limitando-se à realizar grandes sessões de gravação. Nesses momentos, ele recebia toneladas de acetatos e, de acordo com suas proposições, ia enchendo as latas com canções suficientes para discos futuros.

Somado isso à pressão da RCA para que seus compactos-simples e discos tivessem sempre que pontear as paradas de sucesso — isso num momento em que o hard rock e o progressivo imperavam nas estações de rádio e nas revistas, essas coisas fizeram com que Presley se fechasse em sua bolha, junto com o produtor Felton Jarvis, para o acabamento final dos álbuns que saíam pelos anos 70 afora. O trabalho era sempre contestado pela gravadora que, além de exigir um número 1 a cada lançamento, ainda impunha o regime de dois discos por ano — algo inimaginável hoje em dia, mas que era muito comum, com qualquer ídolo do rock, naquele tempo.

O mais triste olhando em retrospectiva é que Elvis, mesmo aos trancos e barrancos, produzia música de alta qualidade. Seu estilo, mais downtempo e cada vez mais cifrado pelo country, era severamente contestado pela RCA, que várias vezes tentou intervir em seu trabalho. Os executivos tentavam então demitir Jarvis que, no fim das contas, era o seu curador e o único produtor que ele confiava. Como Elvis era a galinha dos ovos de ouro, sua palavra pesava no fim e ele acabava vencendo o cabo de guerra.

Mesmo assim, com cada vez menos vontade de produzir. Se formos ver bem, o papel de Felton esses últimos anos, dado o grau de intimidade em ambos, era conseguir tirar do Rei algo que ele não queria mais dar, que era o seu talento.

Muitas vezes, Jarvis fazia uma maquiagem de defunto para as pós-produções dos discos de Elvis. Ao mesmo tempo, elepês com relançamentos de coisas do tempo da Sun acabavam vendendo mais do que o novo material. Era possível que, mareados numa perspectiva meramente mercadológica, a direção artística da RCA não conseguisse mais entender que seu cantor já tinha o seu público e que, mesmo vendendo bem, não iria mais superar algo como "Suspicious Minds" quase dez anos depois, quando a indústria e o gosto musical havia mudado tanto, e dado tantas voltas.

É difícil entender a "decadência" de um artista sem entender tais circunstâncias — ainda mais se vermos que hoje, qualquer coisa que leve o seu nome, como esse mais novo lançamento, Way Down In The Jungle Room, supere qualquer expectativa negativa logo de largada. Fácil é não entender até que ponto essa "decadência" não era uma entrega total de pontos de um músico frustrado e encoleirado por contratos de trabalho, derramando o resto de sua virtude num trabalho que seria francamente subestimado.

Em Vida na Música", Ernst Jorgesen mostra bem como foram as sessões de Presley com relação aos lançamentos e todo o drama que se seguia a cada pós-produção. No fim, cada novo trabalho do Rei era praticamente uma coletânea de músicas inéditas e, além disso, mais uma rescolta de músicas do que uma produção bem enfeixada. Aliás, era justamente esse o trabalho de Felton. Dar a impressão que aquela colcha de retalhos tinha algum sentido, que fosse um disco com começo, meio e fim.

Alguns desses bolachões dos anos 70, por exemplo, como o Separate Ways, que a rigor vale como disco de carreira, na verdade, é apenas um extended play com o compacto, lados A e B. O resto são sobras de material já conhecido dos fãs. Isso a RCA fazia às catadupas, como Lps da série Camden, como Almost In Love. Para os fãs, era OK, Contudo, com relação à evolução de Elvis como artista, era um passo rumo á lugar nenhum.

Por isso que, ao escutarmos o Way Down In The Jungle Room (como acontece com o lançamento anterior, no mesmo formato, com as sessões da Stax), podemos ouvir Presley dentro de um contexto possível, isto é: todos os temas pertencem à mesma matriz, ou seja, às mesmas sessões de gravação. Por isso que, se analisarmos Presley pelos discos dos 70 por fora, corremos o risco de não entendê-lo em seu habitat — aqui, no caso, com o perdão do trocadilho, a Jungle Room.

Esse era o recinto de Graceland que, depois de muita negociação, a RCA resolveu fincar um estúdio de gravações (que, por sinal, era uma sucata: o motor estava enguiçado e a unidade chegou à mansão dos Presley de guincho) para o Rei. Naquele ponto da vida, ele não tinha mais interesse em virar bicho grilo de estúdio e, depois das malfadadas sessões do Raised On Rock, as dependências da citada Stax estavam fora de cogitação.

Como se pode notar, o material do Way Down In The Jungle Room compreende os últimos trabalhos de Elvis, From Elvis Presley Boulevard, Memphis, Tennessee e o Moody Blues, sendo que, deste, originalmente não havia material suficiente para um long-play — o que obrigou Jarvis a espremer os arquivos e incluir material fresco ao vivo de 77, ainda que carregado de camadas e mais camadas de remixagens de emergência — esta uma das especialidades do falecido produtor do Rei.

enfim, a despeito de caça-níquel, Way Down In The Jungle Room revela mais do que boa parte da sua discografia esconde. Mostra que, dentro de um contexto singular, o desempenho dessa coleção de músicas (conhecidas) de Presley agora, pela primeira vez, juntas, mostra o que ele tinha a mostrar, em sua real dimensão — a real dimensão de um artista singular.


Em tempo: tem no Spotify.

1 comment:

Anonymous said...

Belíssima resenha, sire!