Sunday, May 31, 2020

No tempo das coletâneas

A mãe de todas as coletâneas As 14 mais, da CBS


Coletânea é uma faca de dois gumes. Por um lado, ela ajuda um ouvinte a entrar em contato com determinado artista ou gênero. Por outro, ela é uma forma fácil das gravadoras darem vazão ao catálogo, ao mesmo tempo que produzem discos baratos e, de quebra, orientam o consumidor a direcionar o seu gosto para determinado gênero ou tendência. Aqui, no Brasil, creio que uma das pioneiras foi a das 14 Mais da CBS, essa da imagem aí, de cima, que vendeu muito e sempre era carreada por alguma faixa de um grande atista do selo que só aparecia ali. Era, pois, um produto valorizado. Mas é importante lembrar que as 14 nasceram no que eu poderia chamar de primeira fase da popularização do vinil no país. Quando a série acabou, nos anos 70, já estávamos no que eu poderia chamar de segunda fase do disco, na década citada acima, quando a produção e consumo de vinil aumentou de forma exponencial.

Ao longo daquela década, a coletânea virou moeda fácil para a indústria fonográfica. Muitas delas entraram fundo nisso. A Som Livre, a partir dos álbuns de novelas, descobriu uma ótimo filão, quando percebeu que era mais fácil negociar fonogramas de outras gravadoras do que apostar em trilhas originais para as novelas da Globo. Algumas empresas demoraram a entrar no esquema, como a Philips. Só depois da saída de André Midani, que ela entrou no esquema. Quando eles perceberam, marcas como a própria Som Livre estava tomando conta do mercado. Seria possível entender que, se ela não nasceu nesse momento, é nos anos 70 que ocorre, junto com a popularização de equipamentos eletrônicos, que esse formato se torna massivo. Os anos 80 assitiram ao paroxismo dessa prática.

Lembro que havia coletâneas de toda a forma, sobre tudo, desde novelas, coletâneas sob  o nome de emissoras de rádio, como a Mundial e a Excelsior, até marcas de refrigerante ou cigarro. Quem não se lembra das da marca Hollywood? Ou então das do selo estrangeito K-Tel responsável por trazer, de certa forma, muitos fonogramas dos anos 50, 60 e 70, e que eram difíceis de achar? Pois, se a coletânea era a salvação para as gravadoras, principalmente em momentos de estagnação do mercado fonofráfico, como no começo dos anos 80 ou dos anos 90, por outro lado, ela ajudava o discófilo a encontrar aquela determinada canção que ele não achava em parte alguma, e só poderia encontrá-la em discos importados ou gravando a partir de programas de rádio (pratica muito comum naqueles tempos, e que a geração de hoje sequer imagina o que era ficar ouvindo rádio de vigília esperando aquela determinada canção tocar?).

Esses discos podiam ser desprezados por colecionadores "sérios" de disco. Mas a verdade é que elas eram responsáveis por boa parte da receita dessas gravadoras. E muitos dos consumidores menos puristas, no fundo, adoravam esse tipo de produto. Não precisaria dizer que, olhando em retrospectiva, muitos daqueles ouvintes de antigamente têm uma inconfessa nostalgia das coletâneas. Lembro de estar vasculhando coleções em um sebo. Nisso, chega uma pessoa. Ela pede ao dono da loja determinada música, "assim, assim".

O dono naturalmente sabia onde encontrá-la, e mostrou o álbum, e a pessoa foi para casa feliz porque havia achado aquele disco com aquela determinada canção. O engraçado nisso é que a música (me lembro bem) que ele queria era "Satisfaction". Ele queria essa mesma, a faixa dos Stones. O vendedor lhe repassou o famoso Big Hits (High Tide and Green Grass), uma seleção já fora de catálogo da banda inglesa, só que era uma cópia importada, norte-americana. O comprador, como deu para perceber, não sabia nada disso, se era disco raro, se era importado, se era mono ou estéreo, se a capa era simples ou dupla, se a foto da capa era sensacional ou não, ele simplesmente queria a música. E levou.

Escrevendo isso eu lembrei que existem as coletâneas de bandas. Acho que poderíamos dividi-las em dois grupos. As de artistas ou grupos que sempre atualizam a sua produção lançando seleções de suas faixas, seja "as melhores" ou "as mais vendidas" (de compactos mais vendidos). E existe o outro grupo, a coletânea que resume um artista ou banda e, mesmo que a gente resolva, como sempre acontece, ir "da coletânea para desbravar a discografia", chega a conclusão de que eles nasceram para serem artistas de coletânea. É um rótulo meio perigoso e polêmico de se dizer, mas a gente sabe que existe artista que tem o seu "one hit wonder" e o resto do disco é uma sublime encheção de linguiça.

Ou tem aquela banda (não citarei nomes, mas você imagine) que a coletânea tem 12 faixas, e aquelas 12 são o melhor mesmo. A gente ouve os álbuns e chega a conclusão que o "the best of" é mais do que suficiente. Tenta, tenta embalde ouvir, reouvir os discos, mas não tem jeito. Ainda sobre coletâneas, podemos dizer que existe aquela coisa dos afetos. A cultura do disco, com esse expediente da coletânea, fez com que os ouvintes se apegassem à esses discos que, com o tempo, acabaram granjeando um status de culto. É o caso dos discos de novela da Globo. Muitos daqueles discos, que sempre eram desprezados por discófilos como coisa de "povão",  hoje são relançados, como se fossem clássicos em vinil.

Por exemplo, lá por 74, a música "La Chanson Pour Anna", com o Free Sound Orchestra, trilha da novela Fogo sobre Terra, fez um sucesso gigantesco. Tanto que os autores da faixa vieram ao Brasil, impressionados com o sucesso da canção, que acabou saindo tanto na trilha da novela quanto em outra, também da Som Livre, a Super Parada Mundial, volume 2. Isso é uma loucura, porque quem era da época hoje tem como referências esses discos. Não diria todo mundo, mas sempre tem alguém que guarda saudade dessas coletâneas. Essas pessoas são como o cidadão que comprou aquele disco dos Stones por causa de uma faixa. Também pesquisando em sebos, lembro de um casal. Eles estavam procurando o Beatles Ballads, uma coletânea ordinária, mas eles queriam aquela, por causa de alguma canção dali, algo como "Something".

A nota engraçada é que o balconista não encontrou o elepê no estoque. Mas encontrou outros discos onde havia a tal música. Contudo, o casal bateu pé. Queria o Ballads. Então pediram desculpas e foram procurar o álbum em outro sebo. Eu, claro, estava me deliciando com isso. É uma coisa que fala muito do afeto das pessoas com essas materialidades. Não era uma questão de querer o disco raro, o disco importado, o disco em estéreo verdadeiro, o disco com a versão tal. Eles queriam a coletânea tal, imagino que porque aquilo falava muito a respeito ou deles, que de repente tiveram esse disco e resolveram readiquiri-lo. Ou então, o que pode ser mais lógico, era um presente para alguém que pediu justamente esse disco. Porém, mesmo assim, eu interpretaria como um ato desassombrado mais associado a afetos e nostalgia do que essa coisa da cultura discófila, ou seja, do colecionador chato.

A gente imagina que a maioria esmagadora são desses consumidores mais desassombrados com relação ao produto, é algo mais de coração do que de cérebro. E esse era o tipo de consumidor potencial dessas coletâneas. Lembro de incontáveis vezes de estar em lojas de discos e o vendedor estar sempre naquela tarefa de gincana de descobrir qual era a canção que o cliente desajava. Não sabendo o nome dela, recorria para o solfejo, dizia, é uma assim, "lálálálálá". E o vendedor tinha que descobrir qual era a música. Ou a pessoa que chegava determinado a comprar "aquela faixa", que as gravadoras e eles sabiam, era a "carro-chefe" do disco. Lembro, falando em coletâneas de novela, da Sol de Verão Internacional. Aliás, da nacional também.

Era sempre uma faixa que acabava puxando a venda do disco. Em determinado momento, as gravadoras preferiam apostar em esquema com esses discos de novela do que lançar em compacto. O disco de novela, aqui, era o "single", fincionava a guisa de. Então volto ao caso desses discos da novela Sol de Verão (1982). Não tenho números quantitativos para afirmar, mas creio que a versão nacional foi impulsionada por "Você não soube me amar", da Blitz que, na época, tocava sem parar. Já a "internacional" foi também um fato curioso. A novela estourou a faixa "I Don't Wanna Dance", do Eddy Grant. Por causa dessa canção, que tocava na novela e teve clipe no Fantástico, ela foi praticamente responsável por carrear as vendas do vinil que, no fim daquele ano, havia desaparecido das prateleiras das lojas. Digo isso de cátedra porque eu fui um dos que queria o elepê por causa dessa faixa e não pude comprá-lo.

Essas coletâneas, se formos pensar, elas tiveram um ciclo, e que culminou com o próprio fim das trilhas das novelas da Globo. Porém, houve um rebote. No final dos anos 80, na mesma medida que surgia o CD no Brasil com realmente força foi outra época de recessão. O resultado é que as vendas não deslanchavam, as pessoas ainda estavam presas a cultura do vinil enquanto descobriam perplexas as promessas do novo som digital. O CD era inquebrável, não tinha chiado, dirava para sempre, etc. O problema é que era caro, e o player também era. Naquele tempo, ainda não existiam aquelas portáteis que a gente tanto levava para a praia no final dos anos 90.

Enfim, CD era um grande investimento mas ainda era inviável, um sonho de consumo para depois. Muita gente comprava um ou outro mas não tinha previsão de ter o aparelho nem de ter condições financeiras de deslanchar uma coleção digital. As gravadoras também sentiram que isso era uma barreira para deslanchar o próprio catálogo em compact disc. Havia ainda a dor de cabeça de trocar todos os elepês por similares em versão digitalizada. Discos que alguns colecionadores levaram décadas a procurar, e que agora existiam em qualidade superior? Teve gente que se desfez dos discos e hoje se arrepende, com certeza. Ou não.

A verdade é que o mercado precisava dar vazão á nova tecnologia. E acredito que é por isso (é a minha hipótese) que os anos 90 a popularização do CD no Brasil ocorreu através de outro boom de coletâneas. Foi uma profusão de seleções de toda a forma. Desde a Gold Collection, da EMI, passando pela Nossa História e Personalidade (de MPB da Polygram), e muitas outras. Os originais não eram lançados em CD. Na Europa ou Estados Unidos, por exemplo, as majors acabavam confiando o lançamento de catálogo antigo a subsidiárias, como a See For Miles ou a Rhino. Aqui, com a necessidade de aguentar a crise, os selos vendiam coletânea. No começo, eram meio caras.

Mas havia a possibilidade de ouvir som limpo, etc. Então essa chantegam do digital funcionou como uma bolha para que esse formato pontificasse novamente no mercado fonográfico. O efeito coleteral é que, no final dos anos 90, a oferta de coletâneas nas lojas era pornográfica. Havia de toda a sorte, para todos os bolsos e gostos. Muita porcaria, inclusive. O lado bom é que, como muitas delas sobravam nos balaios, essas coletâneas serviam de solução para dar de presente ou para amigo secreto, enfim, esas coisas. Resolveu a dor de cabeça de saber o que regalar alguém e as gravadoras sempre encontravam um escoadouro para um tipo de produto que, sem que eles soubessem, já estava meio que chegando ao fim do seu ciclo.

Como vocês sabem, nessa mesma época, surgiu o Mp3. No final dos anos 2000, esse novo formato foi responsável pela exumação de praticamente todo o catálogo possível de todas as majors e muito mais. Ao mesmo tempo, o novo ouvinte, ele mesmo podia fazer a "sua" coletânea. Quer dizer, o novo formato mudou a forma de ouvir e criou um novo tipo de consumidor (que, na verdade, não consumia, já que os downloads eram, via de regra, ilegais, mas isso é outra história). As gravadoras sentiram o baque.

As coletâneas, que eram o cavalo de batalha delas em matéria de receita fácil, não tinham mais razão de ser. A ordem agora era a de fidelizar o consumidor com um produto mais diferenciado, caprichar nos encartes, investir em projetos como caixas. Houve uma depuração. Na história do disco, a coletânea terminou o seu caminho. Na verdade, se formos pensar, ela nasce com o vinil. Afinal de contas, os primeiros lançamentos em long-play não deixavam de ser coletâneas, como o The Voice of Frank Sinatra, da Columbia, lá de 1949, claro que numa época onde o que se vendia era ainda o 78 rotações.

O compacto, por sinal, havia nascido naquele mesmo ano. Com o passar dos anos, passou-se a investir no álbum do artista, como eram os discos de jazz. A coletânea era uma forma de requentar a discografia do artista, já que, na Europa, por exemplo, a música destinada ao compacto não saía no long-play. A coletânea servia, pois, de complemento, quando ela fornecia ao consumidor canções que não haviam sido lançadas em vinil. É o caso da primeira dos Beatles, de 1966 e que, naturalmente, está fora de catálogo há décadas. Lembro do Greatest do Bob Dylan, foi a primeira vez que eu pus ele na agulha do meu DDS 99 da Gradiente. Ou da do duo Simon and Garfunkel.

Ambas eram e são fáceis de achar em sebos por aí afora. Muitas delas formaram o caráter de tanta gente. Lembro de uma, chamada Yeah, Yeah, Yeah, da EMI, de 1983. Era praticamente toda dedicada a Invasão Britânica dos anos 60. Naqueles tempos muito pré-internet, um disco como aquelas era uma mina de ouro. Muitas daquelas faixas você só as encontrava ali se fosse procurar em lojas de disco. Por isso elas foram tão importantes. Hoje, todos aqueles fonogramas estão disponíveis na Internet, em streaming. Inclusive, se o ilustre leitor jogar no Google, é capaz de achar o próprio disco para download. A gente comprava coletânea como aposta. Será que essa banda é boa? Gostava, depois, nós compramos toda a discografia de muita gente, ouviu, reouviu, mas sempre voltou para aquela lembrança da primeira vez, a primeira vez foi numa coletânea.

O que dizer mais? Qe as coletâneas não existem mais. Elas eram uma forma de atualizar o repertório do artista, de oferecer uma oportunidade de um primeiro contato com ele, esses são fatores importantes e que demonstram a sua importância no tempo. Existe ainda a questão levantada aqui, referente a materialidade e aos afetos. Todo mundo tem a sua lembrança das que teve em sua coleção. Elas falam de nós, representam uma curva na vida de todas as pessoas que gostam de música.


No comments: