Sunday, May 17, 2020

A Banda da Galera

Creedence Clearwater Revival


Creedence é a banda da galera. Não tem quem não goste, não tem som melhor para se escutar na estrada, não existe coisa melhor para tocar em banda de garagem – ou até mesmo em violão solo, conhecendo os acordes básicos de rockabilly.  É possível brincar desde com os gavetões básicos até os complexos porém simplificados arranjos de John Fogerty.  Não tem bandeca de garagem que não tenha pelo menos “Bad Moon Rising” em sua set list. É a feira básica: bateria, guitarra, base acústica, sem trucagens de estúdio, sem orquestrações de fundo – é rock de buteco. Ali está o começo do gênero, passado a limpo e num corpus de álbuns capaz de ombrear com os grandes nomes do rock.

E pensar que eles levaram anos para fazer sucesso da noite para o dia. Porém, enquanto eles eram os Golliwogs, a banda teve uma carreira, mas se formos ouvir aquelas gravações, eles na verdade pareciam como todos aqueles conjuntos americanos que queriam imitar as bandas britânicas e, no fim, se passavam apenas como mais uma. O compacto “Brown Eyed Girl” (nada a ver com a canção do Van Morrison), parece o mais puro decalque do Them, mais precisamente, de “Gloria”. Como Golliwogs, eles eram um quarteto fadado a ser mais outro daqueles que iria durar por um compacto ou outro, e ser esquecido com o tempo.

O mais curioso na história deles foi a inusitada mudança no estado das coisas. Em 1967,  a Fantasy Records topou que eles gravassem um disco. Era a época em que selos de rock investiam em bandas que investissem em álbuns de rock. O CCR ia se apresentar com uma banda atrás de um disco, não uma banda de garagem com um single obscuro, disposto a focar somente num público local, como uma Chocolate Watchband, Nazz, Premiers, etc. Bandas enfim que chegaram a chartear nas paradas, mas morriam em um ou outro compacto.

No primeiro disco, já com o nome de Creedence Crearwater Revival (Golliwogs soava racial demais, por referir-se à uma personagem de quadrinhos tipo blackface). Como novo nome, no entanto, o CCR não quis se firmar como as bandas ianques que pontificavam na época,  com trucagens de estúdio, mistura com ragas indianos e cítaras nem faixas experimentais, como o Dead ou o Love. A transa deveria ser rock básico, mas num approach mais autêntico: fazer canções de três minutos, mas não à moda bubblegum que se insurgia no final dos anos 60. Era rock básico mas para um público pretensamente cabeça.

Outra questão fundamental para a identidade do CCR foi, a despeito de ser uma banda da região de San Francisco, então em alta a partir de 1966, mas com uma persona diferente: queriam ser como uma banda do sul, tanto que foram rotuladas como de swamp rock: um misto de country caipira com Bakersfield Sound e jugbands mas numa moldura de rock. E misturando com um pouco de R&B e soul.

E fazendo rock de três minutos, de fácil deglutição. O resultado foi uma forte e intensa identificação por parte do público, comparável aos Beatles. Como banda de álbum, o CCR acertou quase sempre na mosca, e principalmente no começo, o que para a fixação de sua imagem na mídia, foi algo fundamental.

E tudo isso sendo da cena californiana, e totalmente distante dela. Doug Clifford fala que eles assistiam à maioria das bandas da região, quando se apresentavam no Fillmore. Eles viam aqueles conjuntos tocando desafinado, afundados em ácido e perdidos em solos malucos de vinte, trinta minutos (a alusão à “Dark Star” do Grateful Dead é inevitável aqui). O som deles poderia ser comparado a pares, como os Byrds ou a The Band, por exemplo. Contudo, no caso do Creedence, parece que o som deles era bem menos pretencioso, vendido em larga escala sem parecer comercial demais, e extremamente acessível.

E dentro do espírito da época. Enquanto muitas bandas pareciam reticentes ou pouco à vontade para falar de política ou do Vietnã em suas músicas (como no caso das britânicas), o CCR ia direto na medula. Falava de desigualdade social, de alienação, da realidade da guerra, do medo dos jovens perante os alistamentos à força, numa época em que a maioria da opinião pública estadunidense rejeitava a intervenção na Indochina, após o horror da ofensiva do Tet em 1968, apresentada aos perplexos telespectadores norte-americanos, que viam seus receptores de tevê derramando sangue ao vivo e a cores pela primeira vez.

Mesmo que falando para freaks, doidões e loucos de pedra, eles não tinham a menor intenção de posar de desbundados: o próprio Clifford, na entrevista, fala que o seu quarteto queria ser o oposto daquela viagem típica das bandas californianas da época. Tanto que eles não transavam drogas e álcool, pelo menos na escala industrial que a maioria delas costumava consumir.

Esse fator é curioso: mesmo surfando na onda da contracultura, o Creedence tinha momentos de convergência com o movimento e, em outros, de estranhamento. Um episódio que ilustra bem isso, e que sempre é relembrada por John Fogerty foi a participação deles em Woodstock. O CCR foi inicialmente escolhido como headliner do evento, já que era a banda mais darling da galera em 1969, com três discos estourados nas paradas e escolhida justamente para puxar outras para o festival que, no seu começo de divulgação, não era nada ainda.

Porém, na hora H, o Creedence se viu no meio de um público freak e cercado de bandas, de certa forma, idem. 

E nesse paradoxo de ser uma banda careta tocando para doidões, eles estavam no meio do circo que eles começaram mas que, no fim das contas não se identificavam de todo.  Para piorar a situação, eles foram escalados para tocar depois do Gratetul Dead, num dia de shows onde tudo se atrasou por causa da demora das demais bandas escaladas em chegar no local ou por causa da chuva intermitente desde o começo da tarde de sábado. No fim, subiram no palco na madrugada, depois que, segundo Fogerty, o Dead colocou todo mundo para dormir com seus números soporíferos. O resultado não agradou à ele quando eles ouviram o tape da performance. John implicou tanto com a gravação que pediu para que eles fossem limados tanto do documentário quanto do disco. E isso que o CCR fora, no começo, os artistas que puxaram Woodstock. Escutando o show deles hoje, fica, pelo menos para mim, a impressão que foi besteira dele.

Afinal, quem não estava chapado no palco de Woodstock, estava nervoso. Se fôssemos usar o critério má performance como critério para limar, pouca coisa serviria para ser usado. E sabemos que em vários casos, como nos registros do Crosby, Stills e Nash ou John Sebastian, muita coisa foi refeita depois para o disco ou o filme. Então, seria mais fácil entender a negaça do Fogerty como implicância e cabeça dura mesmo, algo que era típico dele, e que desaguaria no fim da banda, três anos depois. Implicância essa que, por sua vez, se voltou contra seus ex-bandmates. Ele nunca mais quis tocar com eles, nem em pesadelos.  

Enfim, a despeito de diferenças e convergências com seus pares e público, eles souberam, como poucas, falar a linguagem dos jovens da época e, mesmo pertencendo àquele zeitgeist, os valores e a estética de suas canções não embarangaram com o tempo. Muito pelo contrário, o CRR nunca saiu de moda e é sempre a melhor pedida.

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