Friday, June 19, 2020

Rough and Rowdy Ways

Detalhe da capa do novo disco de Bob Dylan, Rough and Rowdy Ways


Eu ouvi de primeira o novo disco do Bob Dylan, Rough and Rowdy Ways, lançado hoje e, não sei porque, de repente me lembrei do Togheter Through Life. Sobre esse disco, eu me recordo que um amigo baixou quando ele saiu, em abril de 2009, e me deu uma cópia em CDA. Na verdade, o ouvi poucas vezes, embora guarde o regalo com saudade da época quando ouvi o disco, foi uma época legal e escutá-lo me traz lembranças tristes porém bonitas, de coisas que eu gostava e lugares que eu ia, e que não retornarei mais, tanto para essas coisas quanto para esses lugares.

Mas enfim, mudei de assunto. Onde eu estava mesmo? Ah. Escutei o Rough de cabo a rabo e começo a concordar com Marcelo Nova. Numa entrevista, quando esteve tocando por aqui, ele disse uma coisa que eu nunca esqueci mas, a princípio, não dei muita bola. Ele falou que a gente precisa esquecer todos aqueles discos do começo da carreira do Dylan e aprender a ouvir esse Dylan de hoje, com essas letras reflexivas, com toda a sua experiência tanto de vida quanto de músico em mais de cinco décadas de estrada e de mudanças de modas e de estéticas no tempo e no espaço, e entendê-lo com essa poesia dele de hoje, com esse jeito de cantar, com essa banda e com essa voz rouca.

Encolhi os ombros na época quando ele falou isso porque eu tinha para mim que o melhor da obra do Dylan era aquela, dos anos 60, com alguma coisa dos anos 70. E, de fato, sempre que o compositor lança um novo álbum, parece irresistível para a crítica tentar comprar o novo trabalho com alguma coisa do passado. Quem lê suas entrevistas sabe que ele detesta esse tipo de comparação. É a diferença do ponto-de-vista da pessoa que fez a obra (e não gosta de falar dela ou contar seus truques) e o fã ou o crítico. 

De fato, eu cada vez mais dou razão a ele, e acho que essas comparações são desnecessárias. O que importa é o que ele tem a dizer hoje. Por mais incontornável que seja, é preciso que esqueçamos essas tentativas de associá-lo aos primeiros discos. Sempre que ele lança um disco, um crítico usa aquelas expressões-valise, como “Bob Dylan retorna à velha forma”, ou “o novo disco é quase um Highway 61 nº2”. E na verdade, já diria Demócrito, não é.

Existe muita coisa que ele fez entre oTime Out e o Rough and Rowdy Ways que é uma nova história. Até mesmo essa “trilogia” de álbuns onde ele revisita quase todo o repertório das canções do Great American Songbook, algo que parece absurdo, já que o próprio Dylan, quando surgiu, era exatamente o contrário dessas canções da Broadway. Quando ele lançou o Shadows In The Night, ele disse que elas já haviam sido regravadas além da conta, e seu objetivo era descoverizá-las. 

É como se ele precisasse prestar contas com alguma coisa, ele precisava passar por isso, é preciso que nós entendamos ou procuremos entender o porquê da sua decisão em revisitá-las. E isso pode entrar na conta de entender esse Dylan que, se formos pensar, a partir dessa teoria do Marcelo Nova, estabeleceu uma nova fronteira em sua carreira, ou poderíamos dizer, um novo cânone. Esse novo cânone, emcapsulado numa nova (?) estética, pelo menos dentro da sua produção, parece residir num formato 'stripped' onde as faixas em geral parecem gravadas sem muito ensaio, sem grandes preocupações com arranjos complexos, tudo gravado ao vivo em estúdio, como naquelas velhas canções produzidas na Sun Records. 

Nesse cânone, o seu novo vira antigo e o antigo vira novo. É um rock camerístico, é como naquelas gravações do tempo do Jackie Brenston and his Delta Cats, Roscoe Gordon, é o rock no começo do rock, ainda meio boogie, meio jazzísticotu ves a citação que ele faz do "False Prophet", aquilo é simtomático de que ele abraça essa fase. formalmente é um proto-rock. no campo temático, ele rapsodia à moda daqueles talkin blues do princípio, falando de fatos históricos, hecatombes, enchentes como modernas escatologias.


É uma rapsódia. Pense no Woody Guthrie de Tom Joad, por exemplo. o grande evento que ele canta, o Dust Bowl, o Titanic, os linchamentos de Dulith. Dylan fala no Crônicas, são essas histórias que tem que serem contadas, esse é a nota trágica, a fala oracular do poeta, o fato antropológico a ser evocado quando pensamos nessa nova abordagem do Dylan no disco. A própria vontade de regravar Tim Pan Alley parece ganhar sentido nesse contexto. Ao regravar aquilo, é como se ele estivesse contando sobre aquilo, a pátina da história que está naquelas canções. Nesse sentido, a trilogia do Tim Pan Alley faz todo o sentido nesse contexto.

E isso que estamos falando de 2001-20, depois que ele, e tantos outros de sua geração, tiveram que passar pelo corredor polonês dos anos 80, quando se viram obrigados a demandar novos produtores, com novos arranjos, apenas para agradar a um novo público e satisfazer as exigências dos tubarões da  indústria fonográfica. Isso por si só explicaria porque Dylan foi tão peixe fora d'água naqueles tempos e hoje, fazendo essa música de pub e sem maiores pretensões do que a performance em si, ele parece ter se encontrado nessa estética 'americana', e que perpassa seus últimos álbuns. Tô esquecendo os discos do começo. A minha transa é esse Bob Dylan dos últimos anos. 

Mais do que falar o óbvio sobre seu novo trabalho, é importante contextualizá-lo nesse cânone. Elogiar o Rough and Rowdy Ways é o mínimo e criticá-lo é quase um atestado de burrice. Então que se poupem as cinco estrelas da Billboard ou qualquer outra publicação musical. Ou esqueçam esses relançamentos do “Bootleg Series”, isso é coisa para fãs. 

O divertido nesse Dylan pós 2001 é a sua tour de force de citações e intertextualiades e paródias, que operam em várias faixas, desde a etiquetas que remetem a medelos musicais, trechos de canções populares ou eruditas ou cifradas na história ou na literatura. Singrar através desas pistas pode ser uma tarefa de gincana um tanto curiosa e pitoresca. Como quando ele invoca Calíope em "Mother od Muses". Talvez ele esteja pagando tributo à deusa de Elouquência em paga pelo Nobel. 

Porém, estranho Dylan citar senhores da guerra que teriam pavimentado o caminho para Elvis Presley. Talvez ele os tenha em conta como pacificadores. Mas, quando fala em Calíope e Elvis, penso na duplicidade entre o rei do rock e Orfeu, filho da "mãe das musas", invocada numa ode que também tem certa duplicidade com o bardo italiano Dante, que a invoca logo no primeiro canto do Purgatório. Talvez seja essa a nota original no compositor de "Blowin in the Wind": ostentar um Nobel sem ser propriamente (ostensivamente) um intelectual com bibliotecas às costas. 

Mais original ainda é sua capacidade de amalgamar um caudal de alta literatura em estruturas formais tão simples, como a da canção popular, com uma pungência tão sagaz quanto castiça. Importante ressaltar que esse amálgama não é novidade em sua já extensa obra. Por falar nisso, a manchete de um jornal que resenha o Rough and Rowdy Ways: "Bob Dylan reflete sobre humanidade e morte no novo disco". Mas ele não fala sobre isso desde 1962?

O Bob Dylan que ganhou o (merecido? controverso?) Nobel é um cidadão que transcende isso. Sua obra transcende a própria fronteira musical. O seu mais recente trabalho não busca as paradas de sucesso e nem o consenso de críticos e fãs. Mas precisa ser ouvido urgentemente e com espírito leve. Eu ousaria dizer até que o melhor dele está nesses últimos discos de carreira, e a trilogia “sinatriana”. E, de fato, meu problema inicial com esse “novo cânone” é que eu sempre tive a sensação que todos esses discos mais recentes soam todos iguais, como se um fosse a continuação do outro. 

Esse é um erro que eu acredito que eu cometi, até porque, na verdade, esse não é o problema. O problema é não me voltar para o ponto de fuga que reside nessa nova estética que, como diz o Marcelo Nova, exige uma outra compreensão desse momento de sua obra. Creio que, a partir do Rough and Rowdy Ways, que repito, escutei enquanto pensava essas linhas e agora volto a ouvir. É preciso aprender a ouvi-lo, o que naturalmente não impede que não façamos comparações com sua obra anterior. 

Dois elementos são recorrentes aqui (e nos discos recentes), o retorno ao blues (à sua maneira), como em “False Prophet” e a excelente “Goodbye Jimmy Reed”, as tais intertextualidades, como "I've Made Up My Mind to Give Myself to You", que se inspira curiosamente na Barcarola dos Contos de Hoffmann, do Offenbach (Dylan é campeão nessas citações nos seus temas recentes, como ele fez da batida afro-cubana de "All Your Love" (I Miss Loving) do Otis Rush em "Beyhond Here Lies Nothin'", ou, em "False Prophet, onde Bob pega o riff de "If Lovin' Is Belivin', da gravação de Kid Emerson, dos tempos da Sun, de onde podemos depreender as pistas de onde Dylan vai buscar a moldura da sua estética musical). Ou “Murder Most Foul”, onde ele reencarna uma espécie de quilométrico aedo do fim dos tempos (como nos 13 minutos de “Tempest”). Enfim, esse é o velho novo Bob Dylan e podemos notar aqui, já parafraseando Sinatra à guisa de conclusão, que o melhor ainda está por vir. Porém, não resisto e dou cinco estrelas para o disco. Agora, é com vocês.  

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