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Detalhe da capa do novo disco de Bob Dylan, Rough and Rowdy Ways |
Eu ouvi de primeira o novo disco do Bob Dylan, Rough
and Rowdy Ways, lançado hoje e, não sei porque, de repente me lembrei do
Togheter Through Life. Sobre esse disco, eu me recordo que um amigo baixou
quando ele saiu, em abril de 2009, e me deu uma cópia em CDA. Na verdade, o
ouvi poucas vezes, embora guarde o regalo com saudade da época quando ouvi o
disco, foi uma época legal e escutá-lo me traz lembranças tristes porém
bonitas, de coisas que eu gostava e lugares que eu ia, e que não retornarei
mais, tanto para essas coisas quanto para esses lugares.
Mas enfim, mudei de assunto. Onde eu estava mesmo?
Ah. Escutei o Rough de cabo a rabo e começo a concordar com Marcelo Nova. Numa
entrevista, quando esteve tocando por aqui, ele disse uma coisa que eu nunca
esqueci mas, a princípio, não dei muita bola. Ele falou que a gente precisa
esquecer todos aqueles discos do começo da carreira do Dylan e aprender a ouvir
esse Dylan de hoje, com essas letras reflexivas, com toda a sua experiência
tanto de vida quanto de músico em mais de cinco décadas de estrada e de mudanças
de modas e de estéticas no tempo e no espaço, e entendê-lo com essa poesia dele
de hoje, com esse jeito de cantar, com essa banda e com essa voz rouca.
Encolhi os ombros na época quando ele falou isso porque
eu tinha para mim que o melhor da obra do Dylan era aquela, dos anos 60, com
alguma coisa dos anos 70. E, de fato, sempre que o compositor lança um novo
álbum, parece irresistível para a crítica tentar comprar o novo trabalho com
alguma coisa do passado. Quem lê suas entrevistas sabe que ele detesta esse
tipo de comparação. É a diferença do ponto-de-vista da pessoa que fez a obra (e
não gosta de falar dela ou contar seus truques) e o fã ou o crítico.
De fato,
eu cada vez mais dou razão a ele, e acho que essas comparações são
desnecessárias. O que importa é o que ele tem a dizer hoje. Por mais
incontornável que seja, é preciso que esqueçamos essas tentativas de associá-lo
aos primeiros discos. Sempre que ele lança um disco, um crítico usa aquelas
expressões-valise, como “Bob Dylan retorna à velha forma”, ou “o novo disco é
quase um Highway 61 nº2”. E na verdade, já diria Demócrito, não é.
Existe muita coisa que ele fez entre oTime Out e o Rough
and Rowdy Ways que é uma nova história. Até mesmo essa “trilogia” de álbuns
onde ele revisita quase todo o repertório das canções do Great American
Songbook, algo que parece absurdo, já que o próprio Dylan, quando surgiu, era
exatamente o contrário dessas canções da Broadway. Quando ele lançou o Shadows
In The Night, ele disse que elas já haviam sido regravadas além da conta, e seu
objetivo era descoverizá-las.
É como se ele precisasse prestar contas com
alguma coisa, ele precisava passar por isso, é preciso que nós entendamos ou
procuremos entender o porquê da sua decisão em revisitá-las. E isso pode entrar
na conta de entender esse Dylan que, se formos pensar, a partir dessa teoria do
Marcelo Nova, estabeleceu uma nova fronteira em sua carreira, ou poderíamos
dizer, um novo cânone. Esse novo cânone, emcapsulado numa nova (?) estética, pelo menos dentro da sua produção, parece residir num formato 'stripped' onde as faixas em geral parecem gravadas sem muito ensaio, sem grandes preocupações com arranjos complexos, tudo gravado ao vivo em estúdio, como naquelas velhas canções produzidas na Sun Records.
Nesse cânone, o seu novo vira antigo e o antigo vira novo. É um rock camerístico, é como naquelas gravações do tempo do Jackie Brenston and his Delta Cats, Roscoe Gordon, é o rock no começo do rock, ainda meio boogie, meio jazzísticotu ves a citação que ele faz do "False Prophet", aquilo é simtomático de que ele abraça essa fase. formalmente é um proto-rock. no campo temático, ele rapsodia à moda daqueles talkin blues do princípio, falando de fatos históricos, hecatombes, enchentes como modernas escatologias.
E isso que estamos falando de 2001-20, depois que ele, e tantos outros de sua geração, tiveram que passar pelo corredor polonês dos anos 80, quando se viram obrigados a demandar novos produtores, com novos arranjos, apenas para agradar a um novo público e satisfazer as exigências dos tubarões da indústria fonográfica. Isso por si só explicaria porque Dylan foi tão peixe fora d'água naqueles tempos e hoje, fazendo essa música de pub e sem maiores pretensões do que a performance em si, ele parece ter se encontrado nessa estética 'americana', e que perpassa seus últimos álbuns. Tô esquecendo os discos do começo. A minha transa é esse Bob Dylan dos últimos anos.
Nesse cânone, o seu novo vira antigo e o antigo vira novo. É um rock camerístico, é como naquelas gravações do tempo do Jackie Brenston and his Delta Cats, Roscoe Gordon, é o rock no começo do rock, ainda meio boogie, meio jazzísticotu ves a citação que ele faz do "False Prophet", aquilo é simtomático de que ele abraça essa fase. formalmente é um proto-rock. no campo temático, ele rapsodia à moda daqueles talkin blues do princípio, falando de fatos históricos, hecatombes, enchentes como modernas escatologias.
É uma rapsódia. Pense no Woody Guthrie de Tom Joad,
por exemplo. o grande evento que ele canta, o Dust Bowl, o Titanic, os
linchamentos de Dulith. Dylan fala no Crônicas, são essas histórias que tem que
serem contadas, esse é a nota trágica, a fala oracular do poeta, o fato
antropológico a ser evocado quando pensamos nessa nova abordagem do Dylan no
disco. A própria vontade de regravar Tim Pan Alley parece ganhar sentido nesse contexto.
Ao regravar aquilo, é como se ele estivesse contando sobre aquilo, a pátina da
história que está naquelas canções. Nesse sentido, a trilogia do Tim Pan Alley
faz todo o sentido nesse contexto.
E isso que estamos falando de 2001-20, depois que ele, e tantos outros de sua geração, tiveram que passar pelo corredor polonês dos anos 80, quando se viram obrigados a demandar novos produtores, com novos arranjos, apenas para agradar a um novo público e satisfazer as exigências dos tubarões da indústria fonográfica. Isso por si só explicaria porque Dylan foi tão peixe fora d'água naqueles tempos e hoje, fazendo essa música de pub e sem maiores pretensões do que a performance em si, ele parece ter se encontrado nessa estética 'americana', e que perpassa seus últimos álbuns. Tô esquecendo os discos do começo. A minha transa é esse Bob Dylan dos últimos anos.
Mais do que falar o óbvio sobre seu novo trabalho, é
importante contextualizá-lo nesse cânone. Elogiar o Rough and Rowdy Ways é o
mínimo e criticá-lo é quase um atestado de burrice. Então que se poupem as
cinco estrelas da Billboard ou qualquer outra publicação musical. Ou esqueçam
esses relançamentos do “Bootleg Series”, isso é coisa para fãs.
O divertido nesse Dylan pós 2001 é a sua tour de force de citações e intertextualiades e paródias, que operam em várias faixas, desde a etiquetas que remetem a medelos musicais, trechos de canções populares ou eruditas ou cifradas na história ou na literatura. Singrar através desas pistas pode ser uma tarefa de gincana um tanto curiosa e pitoresca. Como quando ele invoca Calíope em "Mother od Muses". Talvez ele esteja pagando tributo à deusa de Elouquência em paga pelo Nobel.
Porém, estranho Dylan citar senhores da guerra que teriam pavimentado o caminho para Elvis Presley. Talvez ele os tenha em conta como pacificadores. Mas, quando fala em Calíope e Elvis, penso na duplicidade entre o rei do rock e Orfeu, filho da "mãe das musas", invocada numa ode que também tem certa duplicidade com o bardo italiano Dante, que a invoca logo no primeiro canto do Purgatório. Talvez seja essa a nota original no compositor de "Blowin in the Wind": ostentar um Nobel sem ser propriamente (ostensivamente) um intelectual com bibliotecas às costas.
Mais original ainda é sua capacidade de amalgamar um caudal de alta literatura em estruturas formais tão simples, como a da canção popular, com uma pungência tão sagaz quanto castiça. Importante ressaltar que esse amálgama não é novidade em sua já extensa obra. Por falar nisso, a manchete de um jornal que resenha o Rough and Rowdy Ways: "Bob Dylan reflete sobre humanidade e morte no novo disco". Mas ele não fala sobre isso desde 1962?
O Bob Dylan que
ganhou o (merecido? controverso?) Nobel é um cidadão que transcende isso. Sua obra transcende
a própria fronteira musical. O seu mais recente trabalho não busca as paradas
de sucesso e nem o consenso de críticos e fãs. Mas precisa ser ouvido urgentemente
e com espírito leve. Eu ousaria dizer até que o melhor dele está nesses últimos
discos de carreira, e a trilogia “sinatriana”. E, de fato, meu problema inicial
com esse “novo cânone” é que eu sempre tive a sensação que todos esses discos
mais recentes soam todos iguais, como se um fosse a continuação do outro.
Esse
é um erro que eu acredito que eu cometi, até porque, na verdade, esse não é o
problema. O problema é não me voltar para o ponto de fuga que reside nessa nova
estética que, como diz o Marcelo Nova, exige uma outra compreensão desse
momento de sua obra. Creio que, a partir do Rough and Rowdy Ways, que repito,
escutei enquanto pensava essas linhas e agora volto a ouvir. É preciso aprender
a ouvi-lo, o que naturalmente não impede que não façamos comparações com sua
obra anterior.
Dois elementos são recorrentes aqui (e nos discos recentes), o
retorno ao blues (à sua maneira), como em “False Prophet” e a excelente “Goodbye
Jimmy Reed”, as tais intertextualidades, como "I've Made Up
My Mind to Give Myself to You", que se inspira curiosamente na Barcarola dos Contos de
Hoffmann, do Offenbach (Dylan é campeão nessas citações nos seus temas recentes, como ele fez da batida afro-cubana de "All Your Love" (I Miss Loving) do Otis Rush em "Beyhond Here Lies Nothin'", ou, em "False Prophet, onde Bob pega o riff de "If Lovin' Is Belivin', da gravação de Kid Emerson, dos tempos da Sun, de onde podemos depreender as pistas de onde Dylan vai buscar a moldura da sua estética musical). Ou “Murder Most Foul”, onde ele reencarna uma espécie
de quilométrico aedo do fim dos tempos (como nos 13 minutos de “Tempest”).
Enfim, esse é o velho novo Bob Dylan e podemos notar aqui, já parafraseando
Sinatra à guisa de conclusão, que o melhor ainda está por vir. Porém, não resisto e dou cinco estrelas para o disco. Agora, é com vocês.
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