Sunday, May 10, 2020

Eu e Richard



 
A morte do Little Richard me fez voltar no tempo. Lembrei de quando eu li pela primeira vez a autobiografia dele (escrita pelo Charles White), livro que foi lançado aqui na LPM, e que está esgotado há umas três décadas. Eu peguei o livro num sebo, trocando uma pá de gibis. Naquele tempo, final dos anos 80, eu tinha começado a esboçar o que seria uma coleção de discos, e mais precisamente, entrando numa seara que não tinha absolutamente nada a ver com o que tocava no rádio ou era sucesso naquele tempo.

No princípio, eu tinha interesse em light music, coisas como Glenn Miller ou música de cinema de Hollywood dos anos 50. Até que eu assisti ao filme Stand ByMe (“Conta Comigo”) e me apaixonei pela trilha sonora. A trilha, como se sabe, é de pop dos anos50, do wops e rock. Logo, eu virei roqueiro, mas do rock dos anos 50. O problema era achar aqueles discos. No começo, eu ainda não garimpava em sebos de vinil. Mas logo depois, saiu a cinebiografia do Ritchie Valens. Logo, do nada, aconteceu um pequeno surto de nostalgia daquele rock a la American Grafitti, que eu lembro de ter assistido pela primeira vez naqueles corujões da Globo dos anos 80.

O problema que eu logo descobri foi algo que eu havia pensado depois: os anos 80, dentro de sua lógica e potencializado pelos meios tecnológicos da época, pareciam querer impor sua cultura massiva de todas a formas, sem dar brecha para nada. Era como se vivêssemos apenas para o presente. Nunca se viveu uma cultura do presente como naquela década. Se você descobrisse um Jerry Lee Lewis, por exemplo, você ia pesquisar sobre ele em qual fonte? Na Conhecer? No Almanaque Abril? O passado estava fechado para que pudéssemos descobrir o que aconteceu até então em termos história  da cultura pop.

O que podia acontecer eram essas pequenas subversões. Um filme cuja história se passa nos anos 50 e a trilha sonora é composta por canções de época. Aquilo era lançado como soundtrack e, contra toda a lógica da cultura de massa, uma canção antiga de repente virava sucesso.

Lembro que o cinema na época foi pródigo nessas ‘subversões’: “Be My Baby” voltou às paradas com Dirty Dancing;  “Twist And Shout” com Ferris Buller’s Day’s Off, “Unchained Melody” com Ghost e “La Bamba” com o filme demesmo nome. Conta Comigo não chegou a fazer muito sucesso. Aqui ele nem chegou ao circuito comercial (vi ele na Sala Eduardo Hirtz, ou seja, numa cinemateca). A trilha saiu antes aqui pelas lojas.

Hoje parece absurdo, mas era dessa forma que nós descobríamos que existia música pop boa e interessante muito antes dos famigerados anos 80. Era como se fossem pequenos furos que deixavam uma outra luz entrar. Depois de catar esses discos, eu tinha uma amostragem do que era o pop dos anos 50. Então eu passei a procurar mais discos e pesquisar. Naquele tempo, não tinha Wikipedia. Você ouvia um artista como os Coasters sem saber que eram negros. Tirando o Elvis, eu não conhecia a cara dos artistas.

Claro que o mercado da música passou a explorar aquele filão de nostalgia. Aqui no Brasil, essas coletâneas eram, como quase sempre, sinônimo de seleções de capas horríveis e sem pesquisa nenhuma quanto à originalidade dos fonogramas. Entrementes, houve a minissérie da Globo (Anos Dourados), com Maysa, Roberto Yanes, Perez Prado, Billy Eckstine. Lembro que saiu um disco Brasidisc/SBT, O Melhor dos Anos Dourados. O nome surfava no sucesso da novela mas era puro rock anos 50 e 60. Era mais um disco com rock dos anos 50. A diferença é que a extinta Brasidisc investia pesado em catálogo da época, mesmo, com Carl Perkins, Fats Domino, Buddy Holly, essas coisas.

Nessa mesma época, o CD se popularizava. Lojas como A Discoteca tinham uma seção de música digital no subsolo. Lá eu encontrava dezenas de coletâneas de anos 50. O problema é que, além de eu não possuir um player, os discos eram importados e eram caros. Mas dava para ver que, lá fora, aquele material estava sendo relançado, e em edições muito boas: Golden Hits of Fifties, coisas do tipo. Era de enlouquecer, tanto pelo conteúdo quanto pela inacessibilidade.   

Depois eu ia descobrir, na fase sebo, os discos da Brasidisc, gravadora que eu descobri por causa daquela coletânea em parceria com o SBT. Antes, eu tinha catado, em fita, a segunda trilha do filme La Bamba. Diferente da primeira, essa tinha material da época, Skyliners, Chuck Berry, Shirley And Lee, Huey Smith, La Vern Baker, tudo isso se somava ao que catava de outras seleções, o que aumentava a minha coleção de figurinhas de músicas dos anos 50.

Sempre lembrando que, ouvindo direto esses fonogramas, eu não tinha lá conhecimento de quase nada sobre eles, só sabia que eram canções legais e era uma coisa muito mais bacana do que tocava no rádio naquele tempo para mim. Os discos mais legais eram os da Brasidisc, que lançava álbuns de época, como o Dance Album, do Carl Perkins, que era um original da Sun Records, e o Georgia Peach.

Esse não consistia do material do Little Richard da fase inicial, da Speciality (embora a Brasidisc tivesse lançado aqui um elepê do Lloyd Price da Speciality). O Richard regravou os seus sucessos várias vezes, e o Peach era seleção da fase dele na Vee Jay, que misturava regravações com material inédito no lado B, até com coisas feitas junto com o jovem Jimi Hendrix, faixas que eu não curtia na época, mas hoje acho o lado B até mais interessante que o A.

Foi quando eu achei o livro do Richard no sebo, li e reli e fiquei abismado. Era a primeira vez que eu com, sei lá,13 anos, entrava em contato com o que era a vida de um roqueiro: era uma loucura de histrionismo, influências, a barra do começo, racismo nas rádios brancas na América, sempre do lado dos cantores brancos, como Pat Boone e Elvis. 

Talvez por isso, pela leitura do livro, por muitos anos eu fosse totalmente refratário aos discos do Presley, que só fui ouvir mesmo de fato depois de velho, já na época do mp3. E orgias, mais racismo, cenas de bastidores do mercado da música dos anos 50, grandes momentos do rock, altos e baixos do Richard em sua carreira, drogas, injustiças, os momentos de sucesso, os momentos dramáticos quando ele largou o posto de maior artista de seu tempo no auge, a dificuldade de voltar, de readaptar-se com novos cenários no rock, etc.

Perdido, no fim, num oceano de Angel dust e devendo grana para o Larry Williams, o compositor de “Bad Boy” cobrava a dívida ao amigo metendo uma arma na cabeça de Richard, que pagou a grana mas depois ficou bolado, ainda mais depois da morte do cara que, de compositor, virou um mafioso de merda e morreu por causa disso. Então Richard voltou para o tabernáculo e tornou-se o pastor Penniman. Em sua trajetória, Little Richard parecia perfazer o percurso de Agostinho, porém sempre indo e voltando, a conversão nunca era definitiva. O artista e o pastor, eles viviam na mesma mente, como o apolíneo e o dionisíaco enterrados nele, feito sapo em macumba.

O engraçado foi que a primeira vez que eu lembro de ter ouvido Little Richard foi naquele disco, o La Bamba (o volume 2). A primeira faixa era “Ready Teddy”. Eu achava, by far, o que eu havia ouvido de mais quente em matéria de rock até então (ainda não conhecia os Beatles). E eu reouvia aquela faixa pensando quem era aquele cara. E, muito tempo depois foi que eu descobri que ele era negro. E, qual não foi a minha surpresa ao ler a introdução da biografia do Little Richard. Num depoimento, John Lennon conta de quando ele fez escambo com marinheiros no porto de  Liverpool e trouxe para casa singles do Little Richard. E, ao escutá-lo pela primeira vez, teve a mesma impressão que eu tive: aquilo era muito melhor do que o resto, melhor até que, Deus me livre, melhor que Elvis. Mas quem era ele?

Qual foi a surpresa dele, como a minha, ao descobrir que Little Richard era negro. E qual não foi a surpresa de tanta gente ao ter aquela epifania, de ver como havia tanto da cultura negra no rock. Assim como é possível vislumbrar tanto de hillibily e influências de Hank Williams e Ray Price em Carl Perkins, são só elementos para que possamos concluir que é impossível saber quais são as fronteiras do rock. 

O que pode-se perceber é que, naquele momento, no final dos anos 50, ele já estava quase pronto.Tanto que a geração logo posterior à ela é totalmente tributária daqueles experimentos e maluquices dos anos 50, e Little Richard, mesmo com sua produção curta, é amplamente fecundo para tudo o que veio depois, e que está aí até hoje.  Tanto que  tudo o que podemos pensar em matéria de performance nasce com ele. Muitos artistas que nem nasceram ainda, vão fazer coisas no palco que eles nem sonham que são influência da influência da influência, e tudo isso se tem uma fonte, ela está em Elvis, em Chuck Berry e em Little Richard e tantos outros pioneiros do rock.

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