Friday, May 15, 2020

Divina Lama

Capa da trilha do filme Woodstock




Tava pesquisando jornais de 1969 a fim de ver a repercussão de Woodstock por aqui. O Globo do dia 19 de agosto (matéria escrita através de agências) chama o evento (no título) de “festival das drogas” e destaca as três mortes ocorridas no Festival. Tanto o filme quanto a trilha sonora, um álbum triplo, comemoram esse mês 50 anos de lançamento. 

Independente de criticar a ótica do jornal (a grande imprensa em geral mesmo a americana, tinha uma visão parecida), é interessante confrontar a imagem que o acontecimento teve em seu tempo e a forma como Woodstock foi plenamente mitificada no decorrer do tempo.  No dia 14 de agosto, o mesmo O Globo relembrou no Segundo caderno os 40 anos do Festival, sob o título de “Divina Lama”.

A ótica do evento, depois de quatro décadas, já está decantada sob o manto do mito. Ou, como diz Rodrigo Mehreb, em O Som da Revolução, é a celebração da “Nação Woodstock”: uma convergência de gente que acreditava na sedimentação de uma nova mentalidade “guiada pelo pacifismo, pelo amor à música e pelo desprezo a qualquer sintoma da sociabilidade decadente formulada por seus pais”. Segundo ele, o discurso vinha se fortalecendo ao longo dos anos1960, mas agora o mundo via uma demonstração maciça dessa unidade criativa como uma utopia possível – em Woodstock.

Aliás, o livro, chamado O Som da Revolução, tem como tese fundamental a dicotomia entre o devaneio da utopia hippie e os achaques da mesma revolução sendo progresivamente enquadrada e engarrafada como empreendimento capitalista. No caso de Woodstock, muito além da “apoteose das drogas” ou da “sedimentação de uma nova mentalidade”, não teria acontecido se não tivesse sido concebido como um empreendimento.

Tudo começou com um tubarão da indústria da música, Miles Lourie, que investiu quatro manarins de criar o festival. Antes de mais nada, mesmo que em começo de carreira, todos queriam alavancar seus respectivos nomes no mundo dos negócios. Os mandarins eram John Roberts e Joel Rosenman, Artie Kornfeld e Michael Lang. Lourie deu corda na pipa de Roberts e Ronseman, que pensaram numa transa em Woodstock, algo como uma firma e um estúdio de gravações. Enquanto Joel e John buscavam onde aplicar capital, Artie e Lang estavam cheios de idéias, mas não tinham dinheiro algum. Juntou-se a fome a vontade de comer.

Estes, por sua vez, foram designados a apresentar seu projeto com um planejamento estruturado. Então veio a idéia de uma bureau musical. Para amortizar alguns gastos iniciais, alguém sugeriu um show de inauguração do empreendimento, com grandes artistas do pop. Com o tempo, começaram a dourar a pílula do tal show. Por que não transformá-lo num festival (não competitivo) e tentar lucrar ao máximo com ele? Lang já tinha alguma experiência com um evento do tipo em Miami, embora em menores proporções.  Ou seja, prá começo de conversa, nunca foi um evento beneficente (como muitos ainda o concebem hoje).

Ficou combinado uma divisão meio a meio entre os quatro mandarins numa venture para exploração da marca Woodstock. Foi aberta uma linha de crédito no Bank of North America de cerca de meio milhão de dólares para o começo. O segundo passo era achar um lugar para o festival. Para elaborar as questiúnculas de logística, Lang convidou gente ligada ao Miami Pop Festival e a Bill Graham, o experiente executivo de espetáculos do Fillmore East, em San Francisco.

O dualismo entre movimento hippie e capitalismo porém começava no grupo de mandarins, sendo a turma de Lang a primeira e John e Joel a segunda. Claro que a relação entre essas duas forças não se deu de forma pacífica. Lange temia que os engravatados espantassem o pessoal da música. Por outro lado, John e Joel, com medo que o grupo “hippie” assustasse os potenciais fazendeiros de Woodstock dispostos a alugar seus terrenos, preferiu fazer as negociações eles mesmos.

Problema é que logo os fazendeiros do local perceberam que Woodstock seria um “festival das drogas”. A possibilidade de represália e mesmo de sabotagem em caso de fixação do evento no local provocaram uma célula de crise no grupo. Outro problema vinha da frente dos yippies: o líder político Abbie Hoffmann, por exemplo, queria dinheiro para que seu politiburo não provocasse piquetes durante o festival.  

A escolha de um lugar Ideal para o evento parecia naufragar na mesma medida que os grandes grupos idealizados por Lang pareciam se desinteressar por Woodstock. Ele não contaria com os Doors, Stones, Beatles ou Bob Dylan. Byrds não quiseram interromper sua turnê e não viam nada de bom naquilo. Iron Butterfly queria um helicóptero somente para eles, a fim ir, tocar e voltar incontinenti, o que não foi oferecido. Jeff Beck tinha recém acabado sua banda, e não teria tempo de montar outra e ensaiar a tempo. 

Lang ainda tinha que ser político com Bill Graham, que era um grande mecenas nesse sentido, muito embora não tivesse ilusões quanto ao sucesso dos shows do ponto de vista comercial. Mais do que isso,Bill interferia na escolha dos artistas, impondo nomes que tocavam no Fillmore mas que não tinham qualquer visibilidade, como o Santana.

O projeto quase se liquefez quando, em fins de junho, o lugar escolhido foi vetado. Naquele momento, o palco estava sendo montado e ingressos vendidos. Foram salvos em cima da hora por Max Yasgur, um produtor deleite que se interessou pelo evento.  Ele queria dinheiro, muito dinheiro, mas também estava disposto realmente a bancar o sonho de Woodstock, no meio daquele oceano de conservadorismo ululante na hora de arrendar um espaço para o evento. O local agora fora todo deslocado para as terras  de Max, em Bethel, muito embora o nome “Woodstock”  tenha permanecido – afinal, era a marca em questão, antes de tudo.

A despeito de todo o imaginário que surgiu nos anos seguintes, para o staff que ergueu Woodstock – com armações de ferro, pregos e martelos, não havia a menor perspectiva de estar fazendo história viva. Havia apenas a certeza de que pelo menos 60 mil pessoas apareceriam, à medida em que os ingressos iam sendo vendidos.  Nas vésperas do evento, problemas pareciam se avolumar em maior quantidade do que nos registrados ao longo do projeto, desde janeiro de 1969.

Os gastos já chegavam na lua onde a Apolo 11 havia chegado, na mesma época. A previsão de gastos era cada vez maior, isso sem contar a facada que eles levavam de terceirizadas como a Food For Love, responsável pelos snacks e que não queria dividir o lucro com a venture. Fora isso, a quantidade de penetras extrapolava qualquer expectativa de público, para o bem ou para o mal.

O que os salvaria era o contrato com a Warner no sentido de trabalhar a marca com vistas a lucrar a longo prazo com produtos oriundos do projeto. A perspectiva em curto prazo e prevendo a grana dos ingressos já havia virado vinagre. Agora, o problema era o de infra-estrutura para um mar bíblico de gente e a ameaça estatal, por parte do governador de Nova Iorque, Nelson Rockfeller, de intervenção em Bethel. E torcer para que nada saísse muito de controle.  

Era necessário equipes médicas no local, por conta de gente com problemas de insolação, desnutrição e intoxicação (pelos cálculos dos organizadores, houve uma média de sete overdoses por hora), ou tudo ao mesmo tempo. Isso além da questão dos banheiros químicos no local e a construção de uma fossa dada a quantidade exorbitante de lixo produzido naqueles três dias.  

Nos bastidores, bandas como o Who ou Grateful Dead queriam pagamento em cash enquanto as ameaças de intervenção em Woodstock continuavam. Um ensaio de boicote de músicos foi contornado no sábado quando John Morris conseguiu que uma agência de banco abrisse de forma a que eles pudessem sacar a grana para pagá-los. Se isso era contornável, havia o incontornável: trânsito fechado, chuva intermitente, lama, LSD na água e horas intermináveis de espera para tocar e/ou entre um show e outro.  A própria empresa de fast-food contratada para abastecer os 400 mil hippies não deu conta da demanda. Foi preciso uma operação de guerra em plano evento para que helicópteros aterrisassem em Bethel com suprimentos para durarem até segunda.

A ressaca dos organizadores não foi diferente da do público, embora fosse de outra ordem: a documentação do Bank of North America fora mal ajambrada, havia um campo de abacaxis a serem descascados, não havia grana para pagar os funcionáriose o rombo no banco ia além do milhão de dólares. 

O acordo de cavalheiros ruía em propostas quanto à venda de suas partes para o conglomerado Time Warner em troco de adiantamentos em dinheiro.  Lang vendeu seus direitos sobre a marca Woodstock por 30 mil dólares, sem suspeitar o que ela se tornaria nos próximos 50 anos. No momento, era o jeito de se livrar da expectativa de avalanche de processos legais sobre eles. John e Joel seguiram descascando abacaxis, tentando salvar sua imagem perante o mundo financeiro. 

Dez anos depois, essa marca começava a virar sinônimo de lucro. Entrementes, nesse processo, a Warner já faturava com o documentário e a série de álbuns lançados a partir de1970. “O maior festival hippie da história lançava também o garrote soberano das corporações sobre essa etapa de rebelião cultural nos Estados Unidos”, anota Merheb.

Joe Boyd, que esteve em Bethel, disse depois que Woodstock não deixava de ser um microcosmo do problema do cotidiano da contracultura: uma colisão do ideário dos hippies com a realidade da vida a olhos vistos. Bill Graham, que era veterano em cotejar essas duas vertentes, no sentido deque ele era produtor cultural que tinha por conta eles como seu público-alvo sem no entanto se desviar do fato de que tudo aquilo era um negócio e que deveria ser bem administrado,  viveu naqueles dias para ver Santana, um de seus protegidos, ser guindado para o sucesso no Festival.

Com as defecções de vários artistas consagrados, a hora era dos neófitos. Que o diga Melanie, que tocou debaixo de chuva no primeiro dia, aberto por Ritchie Havens, dos botecos do Village para o estrelato. Enquanto muitos temiam abrir o festival, ele encarou o desafio e foi recompensado por isso: virou símbolo de Woodstock.

Na falta de grandes nomes e, paradoxalmente, pelo fato de que muitos das grandes atrações terem virtualmente flopado em meio ao caos e a lama de Woodstock, essa foi o inesperado plot twist do evento: Who, Creedence (que foi a banda de primeira hora), The Band passaram discretamente pelos shows, enquanto Tem Years After, Santana, Joe Cocker, Mountain e Crosby, Stills e Nash pontificaram tanto nos três dias quanto no disco e no documentário.

O famoso e conhecido documentário, dirigido por Michael Waldleigh e vencedor de um Oscar, por sinal, salientou essas e outras tantas coisas, como as boas vibrações e o espírito hippie, como um zeitgeist que transcendia o próprio fato de que Woodstock era, na verdade, o último ato da contracultura dos anos 60. Paradoxalmente, ele entronizou tudo o que havia de positivo no meio de tantas coisas negativas em disputa. 

A tensão entre capitalismo versus revolução passa longe do filme que, por sua vez, foi responsável pela disseminação em escala mundial do “espírito” do histórico festival. De fato, para quem viu Woodstock de longe, tanto no tempo quanto no espaço, o evento seguiu um outro rumo próprio, perenizando sua intocável mensagem de paz.

E ambos, filme e música, seguiram conquistando platéias e ouvintes, e provocando catarses na medida em que o documentário era reprisado em sessões ao longo dos anos 70, tanto em circuito comercial quanto em cinematecas. No caso brasileiro, festivais como o malfadado Festival de Guarapari (1971) o esquecido primeiro Hollywood Rock (1975) e até mesmo o Rock In Rio (1985) representavam o desejo de experimentar algo como Woodstock no país, como diz Nelson Motta no livro Noites Tropicais.

Sobre o rescaldo dos eventos, Merheb salienta que Woodstock foi a consolidação de um fenômeno que afetaria os quatro cantos do planeta, influenciando e subvertendo culturas e comportamentos em escala mundial: “O que aconteceu naqueles três dias rapidamente saiu da esfera da realidade rumo ao reino das lendas, algo impossível de ser repetido, imune às contradições e portanto quase intocável”.  A diferença da abordagem do assunto, nas edições de O Globo em 1969 e depois, em 2009, é notável nesse sentido: em quarenta anos, o “festival das drogas” se transformou em “divina lama”.


Referências:

Rodrigo Merheb. O som da revolução: Uma história cultural do rock 1965-1969. Civilização Brasileira, 2012. 




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