Friday, May 08, 2020

Nosso homem em Surubim

Chacrinha em seu programa de retorno à Globo, em 82


Li finalmente a biografia que Denílson Monteiro escreveu sobre o Chacrinha. O que motivou a ler o livro, além do fato de que já o devia ter lido, foi porque assisti a algumas reprises do Cassino, com o homem de Surubim já de volta à Globo,  nos anos 80. Fazia muito tempo que eu não assistia a um programa completo dele. Sou do tempo que essa atração passava na tevê toda semana. E a gente execrava, fazendo coro a centenas de milhares de pessoas que odiavam amar o programa, e ficavam diante da televisão apenas para criticar o baixo nível do que representava aquilo.

Hoje eu comparo a atração com o que existe em rede aberta, e vejo que, como dizia Dom Abelardo, “tudo se copia”. Em matéria de “baixo nível”, como o cassino e a Buzina eram chamados, isso nunca mudou e nem vai mudar. Esse “baixo nível” é, na verdade, um projeto da televisão, não um desvio a ser, digamos, corrigido, em favor de uma programação com cultura e qualidade, etc, ideais que todos vocês sabem que, em última análise, não vende programa.

E naturalmente Chacrinha sabia disso. E era por causa dessa cláusula pétrea em suas visões sobre comunicação. A diferença é que hoje isso é instituído, e em moldes estabelecidos pela ordem da indústria cultural: a modernização da sociedade brasileira de lá (época do Chacrinha) implicou, como bem observa Renato Ortiz, numa mudança de mentalidade empresarial, tanto no setor industrial e empresarial como nos meios de comunicação.

Acontece que esse processo de modernização nos meios de comunicação aqui só se deu nos anos 70, com a consolidação das indústrias culturais no Brasil. Antes, vigorava algo que apontava para isso, mas essa mentalidade empresarial ainda não estava plenamente consolidada como cultura. Na televisão, isso só se deu a partir da primeira experiência das organizações Globo como rede, a partir da utilização do satélite. Enquanto outras emissoras ou faziam água, a partir do Jornal Nacional, a Globo deu o salto. Se hoje existe tevê com mentalidade empresarial, quem deu o primeiro passo foi a Globo.

Ao ler tanto a biografia do Chacrinha quanto a autobiografia do Boni, é possível pegar Chacrinha como um objeto a ser estudado. Oriundo do rádio antigo, sua passagem para a tevê foi natural, como a de muitos outros comunicadores que, como se sabe, no caso brasileiro, migraram do rádio para a televisão. A questão é que esse período, no âmbito da migração desses profissionais, representaria um momento de transição.Isso não foi diferente para Chacrinha. Ele é o mais perfeito exemplo desse profissional de transição. 

O problema é que ele trouxe usos e costumes do rádio antigo para a tevê. Mas não qualquer uma: justamente a Globo de Boni, José Ulisses Arce, Walter Clark, Pipa Amaral e Joe Wallach, homens oriundos do marketing e da publicidade, que conheciam muito bem esses vícios e atavismos e, ao planejar a Globo, queriam tudo menos esses vícios e atavismos.

Porém, nos anos 60, o tipo de profissional que eles tinham que lidar ainda eram tributários dessa cultura. Nesse sentido, o conflito de gerações entre os produtores da TV Globo com uma atração com Abelardo Barbosa, com suas três décadas de carreira como comunicador e atração com capital simbólico capaz de levantar a audiência de uma emissora emergente, é um episódio interessante. Era o conflito dos jovens, querendo fazer um novo produto, com uma nova filosofia na área comercial e de programação, e o “velho guerreiro” com os seus modos, seus anunciantes, sua forma de cooptar artistas e pagá-los.

A Globo precisava dele e ele precisava deles. O problema residia no fato de que a Globo não ia abrir mão do projeto de reformulação de grades, de tabelas, racionalização do uso do tempo (algo criado pela Excelsior, mas consolidado pela Globo). E Chacrinha, com sua experiência e sua trupe, era um feudo dentro de qualquer emissora de rádio e tevê. Nesse ponto, ele representava o antigo e eles o novo. O grande desafio residia em contrabalançar ou negociar esse jogo de vontade individual (Chacrinha) com a racionalidade da empresa (Globo).  Problema é que, daquele momento em diante, o que era para ser negociação virou cabo de guerra.

Para se ter uma idéia, a TV nos anos 50, como lembra Walter Clark, era uma bagunça. O espaço dos “reclames” podia se acumular à medida que as atrações demoravam no palco. Para compensar, não era raro as tevês, para compensar, porem no ar blocos comerciais de uma hora. Agora, a partir dos anos 60, e passando pela mentalidade desses novos profissionais da telinha, a regra era obedecer horários: a programação é horizontal, com programas fixos e em sequência na respectiva grade, de forma a prender o telespectador.

O mais importante, e que se dá a partir da Excelsior, como observa Renato Ortiz: existe uma identidade entre tempo e espaço comercial. Hoje, parece estranho explicar o óbvio ululante, mas a verdade é que houve um tempo onde isso simplesmente não era observado.  Um programa agora não é mais vendido para um patrocinador.

Isso era para acabar com um atavismo do rádio e que permaneceu na televisão brasileira. Até os anos 60, os mais velhos irão se lembrar, era mais do que comum programa do produto tal, como “Teleteatro Gessy Lever”, “Repórter Esso”, e outros bichos. Isso veio do rádio para a tevê. A transação podia, às vezes, ser entre o núcleo que produzia o programa ou o estafe ou o apresentador e a empresa. Como cada programa era um feudo, havia uma negociação entre os dois lados, onde o produto final, o programa, saía perdendo.

Agora, a partir da mudança, um programa deixava de ser vendido ao patrocinador para ser veículo do produto a ser anunciado, dentro de um tempo comercializável a ser adquirido por um cliente em potencial. O cliente comprava o espaço na TV como se comprasse um espaço na página do jornal. O tempo era um buraco abstrato a ser preenchido.

Na Globo,  Chacrinha seria carro-chefe da programação. No entanto, sendo da velha guarda, seria resistente a essas mudanças. Por mais amizade que tivesse ao estafe da Globo, sempre quis impor a sua palavra final. Ele era do tempo do vale, da amizade com o empresário que historicamente anunciava no seu programa (caso das antigas Casas da Banha),assinava cheques, pagava cachê, enfim, era o pequeno senhor feudal do seu espaço, seja no rádio para a tevê.

Chacrinha foi o caso digno de estudo. Era o senhor feudal, do acordo de cavalheiros,  contra a mentalidade capitalista moderna, num momento em que essa nova filosofia de missão weberiana de mercado se impunha como uma questão de sobrevivência, de vida ou morte. Sua estréia no Canal 4 se deu em 1967. Até 1972, quando se deu o ruidoso desenlace, foram cinco anos de queda de braço entre os executivos da Globo com o Conde de Surubim.

Mais do que isso: como se sabe, sua bússola eram as pesquisas de audiência. Tudo o que ele fazia ou deixava de fazer em seus programas estava vinculado ao desempenho no Ibope, para o bem ou para o mal. Esse era outro traço pessoal de Chacrinha como senhor feudal: para manter ou aumentar sua audiência, não havia limites, nem que fosse preciso apresentações como “o cachorro mais pulguento do Rio de Janeiro” (fato real).

Tudo fazia parte do circo freak do Velho Guerreiro. Sua escola, ainda no tempo do rádio, era fazer das tripas coração. Se sustentar com anunciantes de forma a manter o programa no ar. E, a fim de angariar ouvintes numa época em que ele era comunicador em rádios menores em comparação às grandes Nacional e Mayrink Veiga, que mantinham grandes orquestras, cast de atores, artistas e programas líderes de audiência. 

Chacrinha sempre foi o radialista marginal, mantendo espaços na Tupi ou Rádio Clube Fluminense e se virava com o que podia. Para apresentar algum diferencial, era preciso ser freak. Por exemplo, na Fluminense, ele bolou um programa à moda da época, com transmissões ao vivo dentro de algum baile. 

A diferença é que, ao contrário das outras rádios, a “transmissão” do “baile” era fictícia: tudo era feito de mentira, com uso de sonoplastia. Essa era a sua guerrilha, correr por fora do jeito que fosse possível. Aliás, programas “ao vivo de mentira”, não era invenção sua: outro disk-jockey, Martin Block, em Nova Iorque, tinha um programa chamado “Make Believe Ballroom” nos anos 30. Mas como dizia Chacrinha: nada se cria, tudo se copia...

Quando Chacrinha chega à Globo, essa nova mentalidade em televisão não estava aplicada de todo: a Excelsior revolucionava a questão do uso racional de tempo, mas ainda era uma empresa com mentalidade à antiga. A TV Rio, de onde viera Walter Clark, fazia largo uso de venda de espaço da programação para anunciantes.  Chacrinha, com o Festival da Canção, eram a bola da vez para levar ao Canal 4. Se o Festival era unanimidade, havia resistência de muita gente da Globo quanto ao Velho Guerreiro. Esse grupo resistente sabia que o Conde de Surubim só confiava nele mesmo.

Mais do que isso, dizia a Boni algo como: “a Globo quer melhorar o nível, mas precisa cair na boca do povo”.  Mesmo assim, o produtor insistia no nível dos artistas, visando também o mercado paulista. Afinal, dois anos depois, o recurso de micro-ondas já permitia transmissões ao vivo para as duas capitais. Porém, fiel a seus princípios, Chacrinha apelava, desde concursos como “mais pulguento” (e que botou toda a produção e espectadores do Fênix para se coçar, literalmente) ate atrações freak, como Seu Sete da Lira, entidade recebida pela famosa suposta médium Cacilda.

A atração, que era alvo de disputa entre ele e seu concorrente, Flávio Cavalcanti, na Tupi, fazia seus ritos, como fumar charutos e beber cachaça, ao vivo para Rio e São Paulo  -  era a guerra quente da audiência. Boni reclamava do baixo nível para Chacrinha, enquanto este criticava a Walter Clark da interferência de seu colega nos negócios do pernambucano, acusando Boni de querer transformar a Buzina e o Cassino em shows americanos.

A briga entre os dois aumentava de forma progressiva. Boni pedia para que Chacrinha observasse o limite de tempo, enquanto este fazia o contrário. O ápice foi em dezembro de 72. O Velho Guerreiro estendeu o programa além das 22h. Boni tirou o Cassino do ar e colocou a próxima atração. Os dois brigaram feio. Chacrinha demitiu-se e foi para a Tupi e a querela foi parar na Justiça.

Por sua vez, a Globo colocaria Só o Amor Constroi, apresentado por Marisa Raja Gabaglia, um piloto aos domingos, preparando o Fantástico, cinco meses depois. Às quartas, punha no ar o Globo de Ouro, a “sua parada musical”, precursor dos programas musicais gravados da emissora, e que permaneceria na programação por 18 anos. Nesse sentido, Boni diz queos dois programas serviriam como formas de reconfigurar o nível da programação e, segundo ele, “qualificar a audiência”. De certa forma, o primeiro ciclo de Chacrinha na Globo foi importante para fidelizar o público.

A parte mais interessante da biografia de Chacrinha foi a vida de filho pródigo do Velho Guerreiro nos anos 70: passou pela Tupi num momento de lenta decadência. A emissora dos Diários Associados era o oposto da Globo, ainda com a mesma filosofia antiga, como a TV Rio. Enquanto este sai do ar em 1977, a Tupi sofre toda a sorte de perrengues até o fechamento, em 1980. Pouco antes, O Conde de Surubim tentou a sorte na Bandeirantes, onde, por problemas de infra-estrutura. Chacrinha, que permaneceu um período fora das telas, pós-Globo, quando apresentou uma série de shows na boate Sucata (de Ricardo Amaral), com a ameaça de voltar a ficar longe da telinha o obrigou a pedir socorro à Boni.

O homem da Globo pensou que, naquele momento, o Velho Guerreiro seria o nome ideal para estrelar nas tardes de sábado. Já era o tempo quando ele pontificava aos domingos, agora ocupados pelo Fantástico. Seu programa de volta,em março de 1982, está no Youtube na íntegra. Por sinal, essa derradeira fase “global” do Conde de Surubim está bem documentada e acessível na internet.
Chacrinha teria dito que voltara para a emissora de onde não deveria ter saído. 

De fato, só o tempo seria capaz de falar, venceu o novo modelo de televisão sobre Chacrinha, comunicador que representou uma figura de transição entre um momento e outra da tevê brasileira. Quando ele retorna ao 4, já está docilizado aos ditames da programação em detrimento do “feudo”. Não que ele tenha se rendido de todo: seu programa sempre foi um feudo, se não diante das telas, pelo menos fora delas.

Ao rever seus programas, vemos muita coisa que ainda existe hoje. Mas, ao mesmo tempo, há muita coisa de datado. O Cassino, ainda nos anos 80, tem muito de rádio, tudo muito óbvio, muito esquemático, fundeado em frases feitas, reações de jurados bem calculadas, falas de Chacrinha como reclames de seu tempo de comunicador nas ondas hertzianas. E tudo emoldurado numa atmosfera autenticamente circense. Esse ambiente de circo, por sua vez, parece único e intransferível. Nenhum programa depois dele foi capaz de reproduzir isso. 

Em outubro de 1987, pouco antes de sua morte, veio o reconhecimento acadêmico a nosso homem em Surubim. A Faculdade da Cidade concedeu a ele o título de professor honoris causa. Boni discurou em homenagem ao amigo, num encômio que parece também parece falar um pouco do próprio orador:

“ O que nós precisamos para a TV é de pessoas com formação generalista, que tenham um amplo conhecimento. Me dê uma pessoa inteligente que, em quatro dias, eu a torno um iluminador, um operador de câmera, um cenógrafo. Agora, eu não formo atores da noite para o dia, nem escritores e, nem que eu quisesse na minha vida inteira, um Chacrinha.  Então, eu quero dizer a vocês, alunos, que não percam tempo estudando iluminação, que isso é irrelevante. Tenham cultura, para quando chegarem à TV encontrarem um caminho compatível com o talento de vocês: quem tiver aptidão para a fotografia, vai ser um operador de câmera, um editor de vídeo; quem tiver vocação para escrever, que vá ser escritor. Mas preocupem-se com uma formação de base forte em conhecimentos gerais, pois a TV precisa de generalistas, não de especialistas. E o maior exemplo disso está aqui, diante de nós: o Chacrinha. Um comunicador quando ainda não se falava em comunicação. Um tropicalista antes da Tropicália, que, às custas de seu grande talento, tornou-se um profissional inigualável”.

Referências

Walter Clark, O Campeão de Audiência, Ed. Best Seller, 1991.
José Bonifácio de Oliveira Sobrinho. O Livro do Boni. Ed. Casa da Palavra, 2012.
Denílson Monteiro. Chacrinha. Ed.Casa da Palavra, 2014.
Renato Ortiz, A Moderna Tradição Brasileira – Cultura brasileira e Indústria Cultural. Brasiliense, 1988.

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