O Tempo e o
Vento, mais precisamente no Arquipélago, que fala da última geração dos Terra
Cambará e suas relações com o contexto cultural e político entre as décadas de
1920 e 1940, tem um motivo condutor que vai desde o começo da trilogia. No
livro, erico Verissimo aborda as contradições entre tradição e modernidade.
Isso está plasmado nas falas dos personagens, desde Bibiana e Dr. Winter até
Babalo, sogro de Rodrigo Cambará e Tia Maria Amélia. Rodrigo, uma pessoa
refinada, que estudou na capital, por exemplo, defende a tecnologia, o avião, o
trem, o fonógrafo, o rádio; Aderbal acha um ultraje, e defende os modos
antigos. Maria Valéria também.
Esse tema, na
verdade, segundo o escritor, foi o fator que o motivou a escrever os três
livros. Ele conta de um tio, Nestor que, não vendo uma pilha de discos num
canapé, senta sobre eles, quebrando-os. Essa foi a epifania que fez com que
Verissimo passasse a olhar como coisas novas como discos eram algo totalmente
fora da cultura daquele povo perdido no sul do continente.
Nestor, diz
Verissimo, nas suas memórias, foi o modelo para um dos principais personagens
das segunda e terceira parte da obra, Toríbio, o irmão de Rodrigo na história.
ele, Toríbio, é o modelo desse gaúcho, forte como um touro, que tem uma cultura
das lides campeiras, mas que gostava de ler. Aqui, para mim, uma licença
poética do autor, já que, assim como a imagem de latin lover do Capitão
Rodrigo, vão além das fronteiras da verossimilhança. Nestor Verissimo também
pode ser encontrado no marido de Bibiana: um homem corajoso, que divida a vida
entre o campo e nutre uma nostalgia dos tempos de guerra.
Fato é que o
contexto ajuda na urdidura desses personagens. Por exemplo, tanto o Rodrigo,
Toríbio bisavô quanto o bisneto cruzaram mais de um século de história do Rio
Grande do sul entre guerras. Curiosamente, as guerras do século XIX em O
Continente não estão presentes de fato nas páginas do primeiro volume da
trilogia. Isso ao contrário do Arquipélago, onde o próprio Erico teve a
experiência vivida nos tempos das revoltas de 1923 e 1928, como prático de
farmácia, atendendo guerrilheiros feridos.
Talvez por isso,
e justamente por isso, a experiência narrativa da história desses episódios
seja tão forte e tão bem documentada em O Arquipélago. Muitos daqueles eventos
que ocorrerem entre a região da Campanha e a fronteira norte do Rio Grande do
sul estivessem tão presentes no livro. A dramática tomada da intendência, as mortes, a
tensão do clima político de um grupo de combatentes se batendo contra forças
federais e contra o presidente do Estado, Borges de Madeiros, estão nas
conversas e diálogos dos personagens.
Porém, o mais
interessante na terceira parte do O Tempo e o Vento é sua estrutura narrativa,
tão cheia de detalhes e pesquisa histórica. O próprio Erico dizia que, saindo
do universo míticodo primeiro tomo, ele precisava agora "entrar na história".
Outro fator
importante: se pegarmos os capítulos Lenço Encarnado e Um Certo major Toríbio
(cujo título dialoga naturalmente com Capitão Rodrigo de o Continente).
poderiam ser considerados, respectivamente, como a Ilíada e a Odisseia na obra
de Erico.
Enquanto ele narra a guerra e evoca lembranças de juventude, recriando
o passado, ele estrutura o Lenço como um episódio de guerra, enquanto o
capítulo seguinte narra, de forma um tanto rocambolesca, a trajetória de
Toríbio na Coluna Prestes, e toda a aflição de sua família, pelo fato de que as
informações sobre a Coluna estavam censuradas, como diz José Augusto Drummond e, durante todo o processo da marcha, muito pouca informação chegava ao
público. No próprio Arquipélago, Rodrigo fica sabendo da suposta morte de
Toríbio através de um relato de um tropeiro.
Mas a questão é
que Nestor, o alter-ego de Toríbio, sobreviveu à toda a marcha, quando foi
preso na Bahia numa emboscada da PM. No cadafalso, um tenente o interpelou,
perguntando quem ele era. ele diz que era um Verissimo de Cruz Alta. O tenente
respondeu que havia estado por lá na caça à Coluna. Aí vem a pergunta: você
conhece fulana de tal? Nestor não conhecia mas, cidade pequena, era quase como
se conhecesse. Como Odisseu, ardilosamente disse que eram primos. Foi quando o
tenente o libertou e o convidou para cear em sua barraca. Posteriormente ele foi preso no Rio e libertado, meses depois.
A cena foi
recriada em O Arquipélago; contudo, Erico trocou o nome da "prima"
pelo de Rodrigo. O oficial disse que havia estado no Sobrado, e ambos ficaram
amigos para sempre da hora para a outra. quando finalmente voltou á sua terra,
Nestor quis conhecer quem era a sua "salvadora"...
Acho que
Toríbio, pelos relatos de Verissimo, está tanto no Capitão Rodrigo quanto até
no jeito engraçadamente grotesco de Aderbal, um personagem bastante subestimado
na trilogia. No final do capítulo Um Certo major Toríbio, também como Odisseu,
na terra dos Feácios, o irmão de Rodrigo em casa narra a sua história, com as
escaramuças, as cenas de batalha, o sofrimento da marcha, a vida famélica no dia-a-dia da Coluna e, por fim, descreve os personagens importantes da cruzada e os
"desconhecidos".
Se o seu relato
parece pitoresco e um pouco nostálgico, é como se ele narrasse a história da
sua vida, ainda com um certo orgulho do gaúcho guerrilheiro. Mas Rodrigo, ao
analisar a postura de muitos em querer insistir na luta contra Borges e
Bernardes, depois da experiência de 1923, com tantas mortes, já começa a achar
que aquele orgulho campeiro, de estar em guerra, era algo que não tinha mais razão
de ser. Aqui entra a própria crítica do autor, e que também permeia toda a
obra: O Tempo e o Vento não é um épico, não é um livro de exaltação à vida, às
tradições gaúchos. Ao contrário, é um livro que, enfim, é regionalista, embora
não-tradicionalista. essa é uma leitura que ele mesmo explica em Solo de
Clarineta, mas que muitas outras leituras e visões sobre a trilogia não
conseguem ver: o "anti-tradicionalismo" e o embate entre o antigo e o
moderno na tradições gaúchas.
Referências:
Solo de Clarineta, Globo, 1974.
O Arquipélago, Globo, 1973.
José Augusto Drummond, Coluna Prestes, Rebeldes errantes, Brasiliense, 1985.
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