Thursday, March 19, 2020

Um certo Nestor Verissimo





O Tempo e o Vento, mais precisamente no Arquipélago, que fala da última geração dos Terra Cambará e suas relações com o contexto cultural e político entre as décadas de 1920 e 1940, tem um motivo condutor que vai desde o começo da trilogia. No livro, erico Verissimo aborda as contradições entre tradição e modernidade. Isso está plasmado nas falas dos personagens, desde Bibiana e Dr. Winter até Babalo, sogro de Rodrigo Cambará e Tia Maria Amélia. Rodrigo, uma pessoa refinada, que estudou na capital, por exemplo, defende a tecnologia, o avião, o trem, o fonógrafo, o rádio; Aderbal acha um ultraje, e defende os modos antigos. Maria Valéria também.   

Esse tema, na verdade, segundo o escritor, foi o fator que o motivou a escrever os três livros. Ele conta de um tio, Nestor que, não vendo uma pilha de discos num canapé, senta sobre eles, quebrando-os. Essa foi a epifania que fez com que Verissimo passasse a olhar como coisas novas como discos eram algo totalmente fora da cultura daquele povo perdido no sul do continente.

Nestor, diz Verissimo, nas suas memórias, foi o modelo para um dos principais personagens das segunda e terceira parte da obra, Toríbio, o irmão de Rodrigo na história. ele, Toríbio, é o modelo desse gaúcho, forte como um touro, que tem uma cultura das lides campeiras, mas que gostava de ler. Aqui, para mim, uma licença poética do autor, já que, assim como a imagem de latin lover do Capitão Rodrigo, vão além das fronteiras da verossimilhança. Nestor Verissimo também pode ser encontrado no marido de Bibiana: um homem corajoso, que divida a vida entre o campo e nutre uma nostalgia dos tempos de guerra.

Fato é que o contexto ajuda na urdidura desses personagens. Por exemplo, tanto o Rodrigo, Toríbio bisavô quanto o bisneto cruzaram mais de um século de história do Rio Grande do sul entre guerras. Curiosamente, as guerras do século XIX em O Continente não estão presentes de fato nas páginas do primeiro volume da trilogia. Isso ao contrário do Arquipélago, onde o próprio Erico teve a experiência vivida nos tempos das revoltas de 1923 e 1928, como prático de farmácia, atendendo guerrilheiros feridos.

Talvez por isso, e justamente por isso, a experiência narrativa da história desses episódios seja tão forte e tão bem documentada em O Arquipélago. Muitos daqueles eventos que ocorrerem entre a região da Campanha e a fronteira norte do Rio Grande do sul estivessem tão presentes no livro. A dramática tomada da intendência, as mortes, a tensão do clima político de um grupo de combatentes se batendo contra forças federais e contra o presidente do Estado, Borges de Madeiros, estão nas conversas e diálogos dos personagens.

Porém, o mais interessante na terceira parte do O Tempo e o Vento é sua estrutura narrativa, tão cheia de detalhes e pesquisa histórica. O próprio Erico dizia que, saindo do universo míticodo primeiro tomo, ele precisava agora "entrar na história".

Outro fator importante: se pegarmos os capítulos Lenço Encarnado e Um Certo major Toríbio (cujo título dialoga naturalmente com Capitão Rodrigo de o Continente). poderiam ser considerados, respectivamente, como a Ilíada e a Odisseia na obra de Erico. 

Enquanto ele narra a guerra e evoca lembranças de juventude, recriando o passado, ele estrutura o Lenço como um episódio de guerra, enquanto o capítulo seguinte narra, de forma um tanto rocambolesca, a trajetória de Toríbio na Coluna Prestes, e toda a aflição de sua família, pelo fato de que as informações sobre a Coluna estavam censuradas, como diz José Augusto Drummond e, durante todo o processo da marcha, muito pouca informação chegava ao público. No próprio Arquipélago, Rodrigo fica sabendo da suposta morte de Toríbio através de um relato de um tropeiro.

Mas a questão é que Nestor, o alter-ego de Toríbio, sobreviveu à toda a marcha, quando foi preso na Bahia numa emboscada da PM. No cadafalso, um tenente o interpelou, perguntando quem ele era. ele diz que era um Verissimo de Cruz Alta. O tenente respondeu que havia estado por lá na caça à Coluna. Aí vem a pergunta: você conhece fulana de tal? Nestor não conhecia mas, cidade pequena, era quase como se conhecesse. Como Odisseu, ardilosamente disse que eram primos. Foi quando o tenente o libertou e o convidou para cear em sua barraca. Posteriormente ele foi preso no Rio e libertado, meses depois. 

A cena foi recriada em O Arquipélago; contudo, Erico trocou o nome da "prima" pelo de Rodrigo. O oficial disse que havia estado no Sobrado, e ambos ficaram amigos para sempre da hora para a outra. quando finalmente voltou á sua terra, Nestor quis conhecer quem era a sua "salvadora"...
Acho que Toríbio, pelos relatos de Verissimo, está tanto no Capitão Rodrigo quanto até no jeito engraçadamente grotesco de Aderbal, um personagem bastante subestimado na trilogia. No final do capítulo Um Certo major Toríbio, também como Odisseu, na terra dos Feácios, o irmão de Rodrigo em casa narra a sua história, com as escaramuças, as cenas de batalha, o sofrimento da marcha, a vida famélica no dia-a-dia da Coluna e, por fim, descreve os personagens importantes da cruzada e os "desconhecidos".

Se o seu relato parece pitoresco e um pouco nostálgico, é como se ele narrasse a história da sua vida, ainda com um certo orgulho do gaúcho guerrilheiro. Mas Rodrigo, ao analisar a postura de muitos em querer insistir na luta contra Borges e Bernardes, depois da experiência de 1923, com tantas mortes, já começa a achar que aquele orgulho campeiro, de estar em guerra, era algo que não tinha mais razão de ser. Aqui entra a própria crítica do autor, e que também permeia toda a obra: O Tempo e o Vento não é um épico, não é um livro de exaltação à vida, às tradições gaúchos. Ao contrário, é um livro que, enfim, é regionalista, embora não-tradicionalista. essa é uma leitura que ele mesmo explica em Solo de Clarineta, mas que muitas outras leituras e visões sobre a trilogia não conseguem ver: o "anti-tradicionalismo" e o embate entre o antigo e o moderno na tradições gaúchas.




Referências:

Solo de Clarineta, Globo, 1974.
O Arquipélago, Globo, 1973.
José Augusto Drummond, Coluna Prestes, Rebeldes errantes, Brasiliense, 1985.

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