Tuesday, August 22, 2017

O Circo: a Commedia dell’ arte em Chaplin



Terceira produção de Charlie Chaplin para a United Artists, O Circo (1928) é um dos mais conhecidos clássicos do ator e diretor inglês.

O filme marca pelo menos dois momentos importantes em sua carreira: o primeiro, o momento em que ele passa a sofrer a concorrência do cinema falado (O Cantor de Jazz, de Al Jolson, talvez o primeiro grande sucesso do novo gênero, havia sido estrelado quando o inventor de Carlitos terminava a produção de seu novo trabalho).

O segundo: Chaplin deixara há muito o puro e simples slapstick — ou pastelão — em favor de enredos mais complexos, transformando o seu insigne herói menos cômico e mais melodramático, característica que já se observava em A Dog’s Life (de 1918) e em The Kid (1921).

A história, ainda que cifrada no estilo do pastelão, e bastante influenciada em Max Linder, cineasta francês que possuía pontos de contato com o estilo do autor de Luzes de Ribalta, permite outras leituras. Uma, mais propícia ao universo que evoca — o mundo circense, parece a moldura perfeita para uma história que tenha vários elementos típicos da commedia dell’arte.

A Commedia

Surgida como companhia de teatro com características atávicas das antigas corporações de ofício, do final da Idade Média, a commedia dell’ arte surge em 1545, em Pádua, já com prospecto de empresa (como diz Benedeto Croce, o conceito de “arte” na idade Média aludia não à concepção moderna, mas a de arte como ofício, mister, profissão). Se no palco, tudo era improviso, nos bastidores, havia toda uma estrutura profissional implícita, tanto quanto á remuneração quanto à assistência médica.

De acordo com Angela Materno (1994), a designação commedia dell’ arte indica, portanto, um tipo de teatro realizado por atores profissionais que viviam do ofício de representar, contrapondo-se, assim, à tradição do amadorismo, predominante até então” (p.52).
Saindo dessa acepção e, ao mesmo tempo, entrando mais nela, Allardyce nicoll estende o conceito de arte dentro do ofício dos comediantes como a possuírem uma ‘habilidade especial’: além de representar, eles também eram acrobatas, bailarinos, cantores e músicos.

Em geral, as trupes tinham média de oito a doze atores (ao contrário do teatro elisabetano, as academias contavam com atrizes) e que, respectivamente, já se ajustavam aos seus papéis (com o tempo, essa mesma convenção que tematizava a atuação no palco seria fator de estagnação da commedia dell’arte, por causa do engessamento da forma teatral em si mesma).

Com a crise econômica do século XVI, companhias e academias teatrais da península abrigariam uma eclética e riquíssima mão-de-obra.

Desde resquícios atávicos de festas carnavalescas medievais até cômicos solitários (como bufões, que como todos, traziam um pouco do seu repertório, suas canções e pantomimas), o estilo entrecruza vários elementos então dispersos na Europa. Essa interpenetração de tendências e heranças sociais diversas seria importante para a sedimentação da commedia dell’arte, tanto na elaboração dos enredos das peças quanto na caracterização dos personagens.

Ao mesmo tempo em que atores vindos do povo traziam seus trejeitos típicos de classe, atores especializados na comédia clássica (Plauto, Terêncio), acrescentavam uma bagagem erudita aos textos. Foi dessa forma que, nessa pororoca cultural, segundo Ciro Ferrone, esses novos comediantes empreenderam uma reforma na base do teatro italiano, em pleno Renascimento, influenciando muitos dos grandes dramaturgos europeus entre os séculos XVI e XVIII.

Como explica Angela Materno, muito do conteúdo daquela produção teatral provinha da experiência e do cotidiano desse imenso e caudaloso coletivo, com o objetivo de uma “fixação de uma memória”. No entanto, mesmo diante de copioso legado, a commedia dell’arte buscava um princípio, baseado num roteiro, o chamado scenario ou canovaccio. A partir desse esqueleto, os atores então podiam improvisar.

O chefe da companhia era um factorum: escrevia, encenava, dirigia, ensaiava e poderia até indicar a música. No scenario, a história era quase sempre a mesma: uma história de amor — um casal que busca ficar junto mas, para tal arte, necessita superar vários obstáculos, entre eles, como quase sempre, um superior, a oposição dos pais, por exemplo.

Para correm em seu auxílio, sempre aparece algum criado — uma ama, um pajem que, com engenho e arte, tentam ajudar o jovem casal a conseguir o seu final feliz.

Nas companhias, como dissemos acima, eram marcadamente distribuídos: os velhos (pais ou patrões), os servos (os zanni), os jovens protagonistas (que não usavam máscaras quando protagonizavam comédias de amor. As mulheres, por sinal, nunca a usavam, em hipótese alguma).

O arlequim sempre era o servo (o segundo “zanni”, antecedido por Brighela) e a Colombina (junto com Esmeraldina ou Franceschina) era a serva. Havia, ainda, o elemento farsesco, o “Capitão”, personagem que dissimulava sempre algo que não era.

Dentro dessa diferenciação, as histórias eram variações desses papéis, com nomes idem. E além de conhecimentos cênicos, os atores deviam possuir uma singular bagagem linguística.

À título de caracterização, o douto falava latim; o mercador, veneziano e o falso sábio bolonhês (porque em Bolonha ficava a mais antiga universidade italiana). Já o par romântico, nesse carrossel de convenções, falavam o toscano — a língua da divina Comédia, língua de Dante, o dialeto considerado mais nobre entre os da península.

Aliás, desses, os amantes deviam ter erudição, já que estes deviam usar e abusar de frases de efeito, figuras de estilo e linguagem. Por conta disso, muitos atores obtiveram enorme sucesso: Isabela Andreine, Flamínio Scala e Diana Ponti, por exemplo, antes de atores, eram considerados grande literatos em seu tempo.

A commedia dell’arte sempre foi explicada como um teatro baseado na arte do improviso. No entanto, improvisar para eles, explica Angela Materno, significava reelaborar um infindável repertório de falas e trejeitos que eram emolduradas por uma rigorosa organização interna. Ou, por outras palavras: para ser investido da capacidade de improvisar, o ator devia antes internalizar todo um processo rígido e bem esquematizado.

“A improvisação na commedia dell’arte diz respeito, muito mais, à utilização de uma espécie de ‘técnica de montagem’.
Figura antológica e que, dentre o elenco de apoio, foi o que mais se consagrou através do tempo como o zanni mais desastrado, ingênuo e tolo mas que, no fim das contas, conseguia dar a volta por cima por conta de alguma façanha.

Angela diz que sua roupa típica remonta às festas carnavalescas da Idade Média que, por sua vez, remontam á celebrações ancestrais, como as bacanais, quando invocava-se espíritos subterrâneos. Daí a etimologia de máscara (‘espírito ignóbil’).
Por isso, o arlequim era uma espécie de entidade que mediava o mundo interior e o exterior, como um exu. Ou, por outra, era o próprio demônio. Daí vem sua máscara negra (que virou tema da famosa marcha-rancho de Zé Keti).

O filme

É sabido a influência do teatro na formação do jovem Chaplin. Tanto seu pai quanto sua mãe e irmão trabalharam em números de dança e no vaudeville.

Os primeiros anos no teatro cantado, principalmente em Drury Lane, permitiram que ele aprendesse os maneirismos dos palhaços de cena, como Dan Leno. Segundo Robinson (1986), quem o influenciou de forma decisiva foi Fred Karno, quando ele esteve comissionado em sua Companhia.

O autor explica que a habilidade em amalgamar pathos e pastelão veio a partir das produções com Karno — que também fazia uso de gags que explorado o absurdo em situações cômicas, elemento que seria recorrente nos filmes de Chaplin.
Da fase do cinema, Robinson lista em Chaplin a influência do diretor francês Max Linder — de quem ele, entre conceitos diversos, tirou justamente a ideia de roteirizar um filme sobre o mundo do circo.

Carlitos e o pathos

Carlitos, de acordo com Robinson, inventou o vagabundo do próprio teatro cantado norte-americano. Segundo ele, esse tipo de personagem era muito comum nos palcos de então.
Nos seus primeiros filmes, principalmente os da Keystone, Carlitos era um personagem típico do pastelão, extremamente grosseiro e agressivo, sempre em esquetes simples. Afinal de contas, o espírito do slapstick era a violência gratuita, ainda que cômica.

Por exemplo, em Easy Street (1917), o filme tem todos os ingredientes do slapstick, desde a violência mais do que gratuita até o paroxismo de cenas de uso de drogas (isso antes do Código Heyes, que provocaria uma onde de puritanismo em Hollywood pelas décadas seguintes).

Sobre a persona do vagabundo, Jérome Larcher (2011) salienta que, ao aperfeiçoá-lo, Chaplin passou a investir Carlitos com elementos de melodrama, preparando-o para tornar-se como um dos personagens mais marcantes da história do cinema, justamente nas suas derradeiras produções: ao invés do agressivo, um herói burlesco e quixotesco — misturando, como salienta David Robinson, pathos (ou seja, sentimento de dó, compaixão ou empatia) e comédia.

A partir de Dog’s Life (de 1918), o enredo dos filmes de Carlitos ganha foros de drama. Aqui, ele tenta ajudar uma moça que é explorada por um dono de bar. Em The Kid (1921), o vagabundo vira a ama seca de um menino abandonado. Na segunda parte de The Gold Rush (1925, já na United Artists), ele ingenuamente tenta cortejar uma dama de cabaré no Klondike. Essa dialética atingiria o seu paroxismo nas derradeiras produções com Carlitos, City Lights (1931), Modern Times (1936) e The Great Dictator (1940)

O Circo e a Commedia dell’arte

Em O Circo, baseado em Linder (The King of the Circus, de 1925)
além de explorar o melodrama no roteiro, Chaplin utilizou muitos elementos na caracterização dos personagens que possuem muitos pontos de contato com a própria dinâmica da commedia dell’arte.

No filme, Carlitos é confundido com um batedor de carteiras porque o verdadeiro facínora havia escondido o produto do roubo em seu bolso para evitar flagrante. Perseguido pela polícia e pelo verdadeiro ladrão, ele adentra o palco do circo de uma feira, e acaba roubando a cena.

O dono do circo (Al Ernest Garcia) percebe que Carlitos tem talento para o picadeiro, porém não sabe que é engraçado. Ou melhor, percebe que o seu humor é, na verdade, involuntário. Ao fazer um teste, ele falha miseravelmente. No entanto, quando é perseguido por um cavalo, ele provoca um pandemônio no show dos outros artistas, provocando o riso da plateia, que pensa que o pandemônio faz parte do show.

Mesmo ciente do talento do vagabundo, como ele faz com todos os funcionários, ele o paga mal e o trata com mão de ferro. Carlitos trava conhecimento com a enteada do dono do circo, Merna (Merna Kennedy), a domadora de cavalos. Ele percebe que ela é maltratada pelo tio, que a deixa inclusive passar fome.

Ele logo apaixona-se por ela, e acredita ser correspondido. No entanto, a moça gosta de outro, Rex, (Harry Crocker), o acrobata da corda bamba — e usa Carlitos como confidente. Ele, que havia comprado um anel para ela, fica arrasado, e mal consegue atuar. O dodo do circo ameaça demiti-lo.

Rex desaparece e Carlitos, a fim de tanto suplantar seu rival quanto garantir sua sobrevivência no picadeiro, decide realizar a performance na corda bamba. O vagabundo sai ileso da experiência e garante o emprego. Porém, ao ver o dono do circo agredindo Merna, ele a defende e é demitido.

Ela foge em desespero. Resignado, Carlitos decide encontrar Rex para que ele se case com ela. Eles então retornam ao circo. Quando o tio decide repreender Merna pela fuga, Rex o impede, dizendo que agora ela é sua esposa. Ambos são finalmente recontratados. À pedido de Merna, Carlitos aceita permanecer com a trupe. Porém, quando o grupo parte, ele fica.
O circo deixa cidade e, desolado, Carlitos resta sozinho. No lugar onde antes ficara o picadeiro — partindo para outra possível aventura.

Diálogos

O primeiro elemento de The Circus que parece dialogar com a commedia dell’ arte é o papel do próprio Chaplin na produção. Como era comum nos seus filmes mudos, ele era o factorum: escrevia, encenava, dirigia, ensaiava e fazia a trilha original de suas produções.
O segundo talvez resida na originalidade de própria concepção de contar a história no mundo da representação, o circo — onde ele pode, ao mesmo tempo, jogar com planos diversos metanarrativos, mostrando, também a relação da arte cênica com a plateia.
Chaplin, como muitos biógrafos explicam, só passou a roteirizar sistematicamente seus filmes falados. Antes, tudo era improvisado.

Porém, assim como na commedia, o diretor tinha todo um esquema em mente — e que não compartilhava com ninguém.
Contudo, é de se imaginar que, como acontece com o teatro italiano, como autor, foi necessário internalizar todo um processo devidamente esquematizado a fim de que se pudesse improvisar ou glosar sobre esse tema — um triângulo amoroso tragicômico que não tem com efeito nada de original.

O terceiro: o roteiro possui um tema recorrente no commedia dell’arte: um jovem casal (Merna e Rex) apaixona-se mas precisa passar por várias peripécias para que possam terminar juntos.

Quem corre ao seu auxílio é, justamente um “criado”, Carlitos. Chaplin no entanto joga com a narrativa, dando ao espectador a impressão de que ele seria o par da história junto com Merna.

Mesmo sabendo que ela gosta de Rex, o vagabundo resigna-se e, ao invés de impedir, ele passa a interceder para que o casal possa se encontrar. Pelo intermédio de Carlitos, Rex e casa-se com Merna.

Porém, como o final feliz é o encontro do casal de jovens, Carlitos fica só: mesmo sendo o protagonista da fita, na história, ele está deslocado ao papel do zanni, ingênuo, burlesco, lúcido e desastrado, além de roubar a cena, como é típico dos personagens burlescos (basta lembrarmos de personagens que fugiram do teatro para a ópera, como o Papageno, da Zauberlote, do Mozart).
Carlitos é o arlequim por excelência; Merna pode ser a Colombina, embora Esta também apareça como serva na commedia. Porém, para fazer jus ao triângulo amoroso em The Circus, temos o casal Merna-Rex respectivamente como Colombina e Perrô, enquanto o vagabundo é o arlequim, fazendo jus ao estereótipo do personagem que, mesmo com o coração partido, cumpre o destino dos jovens amantes.

O dono do circo, naturalmente, é a pedra no caminho deles. O drama termina quando eles se casam, e o tio de Merna não pode mais subjulgá-la. Nesse momento, a trajetória de Carlitos/arlequim termina.
Conclusão

Ao contrário das produções anteriores (The Gold Rush, The Kid, A Dog’s Life por exemplo), Chaplin optou por um final “infeliz”. Para o bem do drama, a felicidade ficou deslocada para o casal jovem. A respeito disso, é moeda comum relacionar cenas de histórias de Carlitos com episódios da vida de Chaplin.
Freud certa vez disse que a insistência do Vagabundo em socorrer as mulheres em apuros de seus filmes remete à impotência do jovem Chaplin em salvar sua mãe de ingressar num hospício. A própria imagem da separação de mãe e filho é espelhada na cinebiografia do diretor (Richard Attenborough, 1992).

Jeffrey Vance (2003) entende que The Circus é uma metáfora do próprio papel do diretor britânico naquele momento histórico do cinema. Para o historiador, como no enredo, Carlitos chega no circo e transforma aquele famélico espetáculo numa atração de multidões. Porém, no fim do filme, a trupe está preparando-se para partir, mas sem ele.

“Ele é deixado só no espaço deixado pelo picadeiro. Isso me lembra do papel de Chaplin na história do cinema. O show está partindo mas sem ele. Ele filmou essa sequência quatro dias após o lançamento de The Jazz Singer (o primeiro filme falado de sucesso) em Nova Iorque. Quando ele colocou a trilha sonora em The Circus, em 1928, Chaplin montou a seqüência com “Blue Skies”, a canção que [Al] Jolson tornou famosa, porém Chaplin a tocou lenta e tristemente, como uma elegia fûnebre”.

Referências:

CHAPLIN, Charles. O Circo. https://www.youtube.com/watch?v=M28IMFrkBgw
Acessado em 5/07/2017. EUA, 1928, 71 min.
LARCHER, Jérôme. Masters of Cinema: Charlie Chaplin. London: Cahiers du Cinéma, 2003.
MATERNO, Angela In: BRANDÃO, Tânia (org). O Teatro Através de História. Entourage, 1994, vol. 1
ROBINSON, David. Chaplin: His Life and Art. London: Paladin, 1986.
WEDDLE, David. Nothing Obvious or Easy: Chaplin’s Feature Films.Variety, 2003. p. 6,

No comments: