Tuesday, November 07, 2017

Asfalto Selvagem: uma parábola



Asfalto Selvagem é provavelmente mais lembrada por causa da primeira parte, que teve diversas adaptações para o cinema e a tevê desde que foi lançada em livro, no começo dos anos 60.

Único folhetim de Nelson Rodrigues assinado sem pseudônimo (os anteriores foram publicados com o nome de Suzanna Flag), a obra, em seus 122 capítulos, é quase que uma suma teológica do autor pernambucano.

Muito do que encontramos tanto na suas crônicas (esportivas, confissões e memórias) quanto em seu teatro, principalmente as tragédias cariocas, e seus contos de A Vida Como É... estão plasmados em Asfalto Selvagem.

A primeira parte, que conta a juventude de Engraçadinha no espítito Santo, tem todos os elementos de uma tragégia. O pai de família, um político importante, tem um filho com a cunhada (eis aí um elemento recorrente no teatro de Nelson Rodrigues), Sílvio. Quando ela morre, ele adota o filho legitimo como sobrinho. Com o tempo, Engraçadinha, sua filha, apaixona-se pelo irmão, numa situação complexa onde ambos estã respectivamente noivos de pessoas diversas, e o patriarca da família idilicamente deseja casá-los na mesma cerimônia.

O desenlace se dá quando Dr. Arnaldo precisa revelar a verdade para Engraçadinha. A partir daí, ela não pode desejar o irmão que, cada vez mais apaixonado, não resiste à nessecidade de estar com ela. Quando ele finalmente descobre que não poderá mais amar sua prima, ele se castra.

Dr. Arnaldo entra em desespero e coloca toda sua sobrevivência e sua reputação abaixo com a perda do filho, que jaz moribundo num catre de hospital. O desespero do personagem tem, por incrível que pareça, um fundo autobiográfico. Em 1929, o irmão de Nelson, Roberto, foi morto por uma vítima de um artigo sensacionalista do jornal do pai de ambos, Mário Rodrigues, A Manhã.

(Nelson retornaria ao mesmo tempo do pai velando o filho morto de forma deseserada com o Dr. Camarinha, o ginecologista do livro O casamento, de 1966)

O calvário de Dr, Arnaldo ao velar o filho à beira da morte é, praticamente, uma recriação do desespero do pai vendo o filho esvaindo-se em sangue. Como acontece com o patriarca de Asfalto Selvagem, Mário não consegue sobreviver à morte do filho; Mário morre de trombose dias depois, fazendo com que sua família desmoronasse, passando por anos de privações e pobreza. dr. Arnaldo comete suicídio.

Num desdobramento surpreendente, Engraçadinha resolve criar uma espécie de contrato nupcial com um noivo que ela não deseja enquanto ele, segundo ela, tem um sentimento vago com relação ao seu afeto. Em suma, ele seria fruto de um típico casamento de conveniência (nem o sogro realmente topa o genro), No entanto, essa conveniência permite que Engraçadinha - grávida de Silvio - parte para a capital do Rio de Janeiro a fim de começar nova vida.

Nos vinte anos seguintes, Engraçadinha sublima seu desejo sexual e a lembrança do amor de sua vida sendo dona-de-casa dedicada e vivendo em função de seus filhos. Esse equilíbrio só é quebrado quando um antigo promotor capixaba amigo do pai de Engraçadinha, dr. Odorico, em pleno centro do Rio, tem a visão de Engraçadinha com roupas de colegial. Ao interrogá-la, descobre que a menina é filha dela, e que sua familia mora em Vaz Lobo, na zona leste da capital.

Dr. Odorico, de certa forma uma espécie de alter-ego de Nelson Rodrigues àquela altura, jornalista da Última Hora e com mais de três décadas de experiência em jornal, usa o personagem como forma de dialogar, de forma bem homorada, com toda a vida intelectual e a opinião pública da época.

Misturando ficção e realidade e personagens idem, ele faz um retrato de época (já que tudo e todos que desfilam na segunda parte do folhetim eram reflexo que se plasmava na opinião pública da época, desde a polêmica do filme Les Amants até o cotidiano de gangues de filhos de ricos (chamados de "juventude transviada") que promoviam festas regadas a drogas como lança-perfume e curras.

Tudo isso passa pelo universo da segunda parte da trama, onde dr. Odorico parece ser o foi condutor: ele é quem descobre Engraçadinha e a faz retornar ao passado enquanto ele tenta um frustrado idílio com ela. Embora apaixonado pela filha do Dr. Arnaldo, ele não deixa de transparecer ao leitor que tem, antes de mais nada, segundas e terceiras intenções: ele tem uma esposa, a qual rejeita, e tenta cortejar Engraçadinha com o único intento de levá-la a uma garçonniere, algo que era muito comum na época, quando ainda não existiam motéis.

Odorico busca a intimidade com ela mas encontra resistência não em Zózimo, marido de Engraçadinha, que a deseja ardentemente mas é frustrado por causa do 'contrato nupcial' onde, ao mesmo tempo em que seu desejo é interdito pela 'frieza' de sua esposa com relação a ele, que é obrigado segundo ele a beber por causa disso, e procurar casos fora do casamento que, com efeito, não despertam ciúme algum em Engraçadinha.

De certa forma, Odorico acaba tornando-se presença constante na vida da família de Engraçadinha. Zózimo, no entanto, não sente ciúme algum ante as investidas do juiz capixaba.

Quem realmente oferece resistência é o filho mais velho dela, Durval que, por fim, termina por escorraçá-lo da vida deles. O rapaz, por sinal, tem os traços idênticos ao do pai Sílvio, como Silene tem a duplicidade em Engraçadinha - tanto que este teme, como ocorrera entre ela e o "primo", que ambos se apaixonem. No entanto, como se fosse um fantasma real do pai (ao contrário do que acontece na primeira parte, o segredo de que Durval é filho de incesto e escondido de todos e sequer Zózimo o suspeita) que se interpusesse entre a mãe o mundo, ele impede que Engraçadinha tenha um novo amor.

Nesse sentido, ele intercede ao expelir Odorico da vida deles por fim, mas nesse trajeto onde Engraçadinha sai de seu casulo auto-imposto pela firme decisão de entregar-se pelo amor dos filhos, ela finalmente apaixona-se não por Odorico, mas por um alto funcionário do Itamraty que a interpela na rua. De forma inusitada (num rapto) ele consegue seduzi-la e fazer com que Engraçadinha finalmente apaixone-se novamente, mas como se fosse a primeira vez. Ela tenta fugir, alegando que é casada e tem filhos mas, por fim, cede (recurso tipicamente rodrigueano, onde os personagens, em geral, tem sempre, como diria Flora Sussekind, um fundo falso).

A única pessoa que descobre a infidelidade é Letícia, prima de Engraçadinha, que estava no Rio à procura dela, por quem nutria um amor desastradamente declarado. Ao ser rejeitada, passa a cortejar Silene. Rica, disposta a auxiliar o namorado da filha da prima, envolvida com um assassinato cometido em legítima defesa, ela promete auxiliar com as escusas da defesa. Contudo, dessa forma Letícia tenta chantagear Engraçadinha como extrema forma de poder tê-la novamente ao seu lado.

Engraçadinha, depois de entregar-se de corpo e alma a um novo amor, já nao vê sentido nenhum na vida que viveu por todos esses tempo, nem pela família, muito menos pelo marido e, obviamente por Odorico que, também de forma extrema, tenta marca um encontro amoroso com ela.

No fim, eles encontram-se no escritório dele. Eles discutem após ele roubar-lhe um beijo. Depois que ela sai, ele jacta-se aos cohecidos de ter possuido-a ali mesmo. Ou seja, este era o gáudio do dutor que usava de toda sorte de carteiraços como escudo de sua posição.

E naturalmente Nelson Rodrigues, como faz abertamente uma debochada crítica à forma estilo A Montanha dos Abutres da imprensa brasileira nos personagens jornalistas do folhetim, como Tinhorão, ele mostra em Odorico, um típico caso de membro da dministração pública que vive de pequenas corrupções e de abuso de poder.

Talvez seja essa a sub-narrativa mais interessante ao melodrama da segunda parte de Asfalto Selvagem, e que faça com que, ao ser cotejada com os dias de hoje, demonstre toda a atualidade tanto do contexto nacional da época quanto às opiniões de Nelson Rodrigues à época, embutidas nas falas dos diversos personagens. Claro que noves fora os ataques gratuitos à desafetos, como Guimarães Rosa (a quem chama o seu Grande Serão a pirâmides de confeitaria), Gustavo Corção (que já havia sido alvo de ataques sutis em A Vida Como Ela É), Alceu Amoroso Lima ( um ginecologista e fazedor de anjos do livro chama-se, justamente, dr. Alceu), além de brincadeiras com amigos seus, como Otto Lara Resende (que teria tal homenagem continuada em peça homônima).

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