Sunday, October 15, 2017

Quixote e o Maluco Imaginário


Dom Quixote por Doré


Acho (começar um texto com "acho" já é altamente comprometedor) que existem várias discussões curiosas na história da literatura, entre elas se houve ou não um adultério em Dom Casmurro ou se Dom Quixote ficou ou não ficou maluco.

Na verdade, penso (melhor que acho) que eu estou sozinho na teoria de que o Cavaleiro da Triste Figura. Acho que centenas de pessoas têm como ponto pacífico que ele ficou maluco. E, de certa forma, a própria conduta dele no romance - sempre envolvendo-se em confusões por conta de sua insanidade, para todos os que convivem com ele, a sobrinha, a criada, o cura, etc, o têm como o maluco e ele age como um maluco.

Mas para mim, ele é a metáfora do personagem apaixonado, seja por qual coisa. Paixão por política, por futebol. Quando a gente sai da vida e trava combates pela vida, a gente se esquece da realidade de ser finito e limitado. Se essa loucura é uma forma de sublimar a dor de estar vivo, então ficar maluco como Dom Quixote é uma forma de despertar para uma realidade malucamente salutar. É com ser uma pessoa quixotesca.

É uma pessoa que colocou o coração na ponta da chuteira por uma ilusão, e a sua trajetória, ou a trajetória que Cervantes propõe para ele é de acreditar nos ideais de cavalaria (que todos acham que isso foi por culpa do excesso de leituras, algo que não deixa de ser curioso em Cervantes, porquanto ele tinha noção de que a Inquisição queimava livros da mesma maneira que seus amigos o fizeram com a sua biblioteca, ou seja, Cervantes parece debochar dessa opinião, que existe até hoje, de arte "degenerada" ou que seja prejudicial à alguém ou às pessoas em geral, desculpem pelo parêntese gigantesco).


Dom Quixote vive a realidade dele vivendo o seu imaginário e, para os demais, ele é uma pessoa não vamos dizer maluca (na interpretação delas) mas 'anacrônica', que vive fora do tempo - que eu acho (!) que ele é um maluco mas que vive numa ilusão temporária provocada por algo estranho, que é o amor por Dulcinéia. Quixote cria a ilusão de uma mulher para que ele viva o seu amor cortês mas, no momento em que ele funda essa ilusão sobre isso, ele se torna dependente dessa ilusão.

Tanto que ele incorre em variados feitos, como o de libertar os galeotes (e ser punido por eles por querer que eles declarem à ela a sua façanha). Essa é uma cena engraçada, porque ele apanha da turba, a despeito de ter libertado eles (e um dos galeotes ainda rouba o ruço do Sancho Pança que, mais adiante, é recuperado, graças a Deus).

Pois falando no Sancho, ele resolve entrar na maluquice de Dom Quixote, e comete um engodo que é fundamental para o entendimento do que eu quero dizer. Dulcinéia não existe, mas ele recebe a incumbência de encontrá-la. Sancho naturalmente não a encontra, mas mente a Dom Quixote que a viu. No Livro 2, o ajudante do Cavaleiro da Triste Figura fica na saia justa de levá-lo ela. Ele aponta para uma aldeã. Quixote fica chocado ao descobrir que Dulcinéia é uma reles pessoa do povo.

A partir dai, ele acredita que ela foi encantada. Porém, como se sabe, no segundo livro, Cervantes espelha o primeiro, criando uma ilusão para o leitor, de que a história do primeiro livro foi publicada e que Dom Quixote é um personagem real, uma 'celebridade' e que as pessoas o conhecem por causa da publicação da primeira parte da obra.

Isso não faz muito sentido para o leitor, mas ele vai embarcar na aventura do segundo livro, onde Quixote conhece um rei e uma rainha que leram o livro, sabem do engodo de Sancho e embarcam na história de que ela existe e foi encantada. E são cúmplices em continuar enganando nosso herói, criando uma Dulcinéia fajuta que, encantada, cabe a Sancho ser imolado com centenas de milhares de chibatadas para que ela seja desencantada.

Quixote vive pelo amor à ela e a esperança de que finalmente possa vê-la. Mas, ao passo da leitura, você percebe que tanto isso é uma tarefa inútil para ele, e o leitor já sabe que ele não vai encontrá-la, já que, com efeito, ela não existe. Mas ela existe para ele até o fim.

Aí que fica a questão: onde começa a loucura, termina a imaginação e o imaginário? Dom Quixote ficou louco mas era uma loucura temporária? Ele age como maluco quando confunde um moinho com um dragão um um bordel com um castelo. Mas, fora isso, a conduta dele é 'reta', talvez até mais timorata do que a maioria das pessoas que o cercam (e que queimam livros).

Como disse alguém, ele sonha e viva o real do cotidiano, e o interpreta como signos de uma realidade anacrônica. Poderíamos dizer que ele vive mais um delírio do que a loucura completa.

A decadência final de Dom Quixote acontece quando esse mundo criado pelo seu imaginário se acaba. Ele tem uma epifania quando descobre que Dulcinéia del Toboso, criação do seu delírio, não existe. Ele fundou toda essa ilusão em algo que não existe. Quando ele racionaliza isso, é como se ele puxasse o próprio tapete. A existência dele, ou a sanidade de viver numa ilusão de cavaleiro era fincada nessa realidade que ele criou. A triste loucura final de Dom Quixote, não sei se Cervantes iria concordar comigo, é voltar à razão. Quando ele desperta do sonho, ele morre. É como levar um fora final: a partir dali, a vida do Cavaleiro da Triste Figura não faz mais sentido - inclusive para o leitor que, depois de páginas e páginas, já se acostumara com sua insanidade, e fica tão pendurado no pincel quanto Dom Quixote.

E agora? Dom Quixote é um maluco ou apenas delira de forma sadia diante de uma realidade vazia e opressora?

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