Tuesday, November 14, 2017

A Importância de ser Noel


Noel por Noel


Numa de suas aulas de história da música, o professor Celso Loureiro Chaves fez uma comparação que eu nunca inha pensado em fazer: a de associar Gershwin com Noel Rosa. Ele inclusive aludiu ao fato de que os dois eram da mesma geração. Claro que o Gershwin era um pouco mais velho, nasceu em 1898, enquanto Noel era de 1910, muito embora ambos tenham morrido quase ma mesma época, em meados de 1937.

Realmente, essa comparação tem algo de lógico. Muito se compara Jobim ao autor de "Porgy", mas seu duplo brasileiro é o Poeta da Vila.

Não se se é o nosso inexpugnável complexo de vira-latas que nos impede de fazer esse tipo de comparações, considerando-as esdrúxulas, já que um compositor é norte-americano e escrevia números para musicais da Broadway em Nova Iorque, enquanto o outro era de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, e era conhecido como aquele rapaz trêfego que sempre batia ponto ora no rádio, ora nos arcos da Lapa ou no café Nice, no centro da Capital Federal.

Noel praticamente definiu o gênero samba canção mas sua música teve que ser defendida com unhas e dentes pelas décadas seguintes pelas suas maiores intérpretes, Marília Batista e Aracy de Almeida, que tanto o regravariam, pelas décadas seguintes. Tanto que a música de Noel ficou eternamente associada às duas. As novas gerações já tinham os seus novos compositores, Alberto Ribeiro, J. Cascata, entre outros.

O próprio Noel Rosa, não me recordo quem disse: no seu tempo, ou, mesmo tempos depois de sua morte, era lembrado não como grande compositor - ou o grande cancionista, como se diz hoje. Era lembrado como um cara de rádio, não mais do que um contra-regras e um notório boêmio.

Aliás, Noel não era o único a sofrer esse tipo de lapso, de esquecimento histórico. Há os que morreram em vida por muito tempo, como Cartola, que só foi ser redescoberto e levado ao disco quase nos últimos degraus da vida (como diria Nelson Cavaquinho), nos anos 70.

A música de Gershwin era da Broadway. Só anos mais tarde é que ela se plasmaria como standards de jazz e como temas imortalizados por cantores como Sinatra. Por conta disso, Gershwin nunca saiu de moda.

Nos anos 50, 60, uma nova safra e um novo estilo de samba-canção parece ter suplantado Noel. Sua música não era reproduzida nas novas gerações como acontecera com Gerswhin. A música de Noel não virou standard nem dos grupos de samba-jazz que surgiram após o advento da Bossa Nova, a partir dos anos 60. Noel era tão fora de moda quanto um soneto parnasiano. Por que Noel não virou standard como Gershwin?

Quando, em 1966, Chico Buarque foi entronizado como o "novo Noel", seus fãs provavelmente não conhecessem um por cento do repertório do Poeta da Vila, cuja produção parecia coisa do passado, restrito ao repertório de intérpretes idem, como Carlos Galhardo, Almirante, Nuno Roland, Mário Reis e outros.

(Um parêntese: Na mesma época, Maria Bethania gravou um extended-play com canções de Noel (RCA, 1965), em parceria com Rosinha de Valença, mas não valeu. Bethânia sempre soube das coisas)

E a própria Bossa Nova, como ocorrera com um Ary Barroso, não o reabilitara: João Gilberto só iria gravar Noel nos anos 90, com "Palpite Infeliz". Quando um songbook do autor de "Feitiço da Vila" surgiu, no fim daquela década, Noel parecia algo como um elo perdido. Talvez o problema não fosse só dele.

De fato, numa época em que se emulava o samba sob a forma de pagode, um samba como "De Babado" ou "Conversa de Botequim" parecia algo pretérito, algo quase com fumos de lenda, de algo mais avoengo e defunto que as modinhas de Caldas Barbosa ou a "Lua Branca" de Chiquinha Gonzaga.

Mas, se sua obra fosse revisitada, talvez descobríssemos que Noel Rosa, muito antes de Alfs, Farneys e outras bossas mais modernas, definiu o gênero samba-canção como ninguém em seu tempo, de tal forma que, se não fosse por ele, o gênero, que ganhou uma nova cara com Aracy Côrtes, talvez, talvez sem Noel Rosa, ainda estivéssemos no tempo de Sinhô, cantando coisas como "Papagaio louro/do bico dourado/tu/que falavas tanto/por que agora vives calado?" ou coisas ainda mais castiças, como "O, pé de anjo/és rezador/tens um pé tao grande/que és capaz de pisar/Nosso Senhor".

Gershwin produzia para o Broadway, sua música ficaria restrita à Broadway. Mas, como a rua 52 não ficava longe dali, não era difícil que aquele tipo de canção, que não era propriamente jazz, acabasse se tornando cavalo de batalha por centenas de milhares de músicos do estilo nos anos seguintes. Gershwin nunca saiu de moda.

Porém, ao mesmo tempo em que ele compunha para aqueles musicais, ele não estava sozinho e havia uma indústria musical por trás dele, ou de Cole Porter. A música deles tinha a capacidade de se propagar de forma espantosa.

No caso de Noel, sua música, ao contrário de Sinhô, não ia para a Praça Tiradentes. Ia para o disco, ou então para o rádio (ou ambos). Porém, não existia uma indústria cultural em formação, como nos Estados Unidos dos anos 40. Como acontecera com as marchinhas dos anos 30, aquela música rapidamente desapareceu nas poucas cópias de discos que restaram ou sumiram pelo éter.

Porém, se o criador de "An American In Paris" foi grande, ele não poderia ser considerado o compositor que definiu um estilo de se fazer canção popular na américa: o catálogo da grande songbook americano tinha uma paternidade diversa. No caso brasileiro, é possível dizer que ele, Noel Rosa, teve, para a canção brasileira, um papel mais decisivo e preponderante do que Gershwin para a música norte-americana. Nem é o caso de querer apontar qual dos dois é o melhor. Isso sim seria tarefa inútil.

A questão é que Noel teve e tem uma importância para a MPB que lhe foi omitida, ao passo que um Gershwin não precisou muito para tornar-se um dos maiores compositores ianques do século passado e, com naturalidade, ter o seu repertório perpetuado de forma natural e duradoura.

De fato, Noel emprestou ao samba-canção uma nova poética, uma linguagem mais popular que um "Ai Ioiô" apenas sugeria. Faltava um compositor que colocasse o gênero num status de maioridade. Ele foi quem nos deu, como diria Gilberto Gil, régua e compasso. Se Sinhô foi o nosso João Batista da música, Noel foi o nosso messias. Para a músic brasileira, Noel foi mais do que o nosso Gershwin. Foi Gershwin, Porter, Irving Berlin, tudo ao mesmo tempo, mas o nosso complexo de vira-latas não foi capaz de detectar.

Que nos desculpe Augusto de Campos, mas não podemos falar de linha evolutiva da Música Popular Brasileira sem Noel Rosa.

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