Monday, November 06, 2017

Sabino ou o Édipo Moderno



Publicado em 1966 (apreendido por uma portaria da Justiça e liberado apenas um ano depois), O Casamento, de Nelson Rodrigues é o único romance escrito somente para ser publicado como livro (os anteriores foram originalmente publicados em folhetim).

O livro conta a história da família de Glorinha, noiva de Teófilo, e a famila daquela, às vesperas do casamento de ambos. O personagem principal, no entanto, é o pai da noiva, sabino. Dono de uma grande imobiliária, de repente ele vê sua vida mudar quando move mundos e fundos para levar sua filha menor e preferida ao altar.

Em determinado momento, um personagem diz que toda família possui as suas trevas interiores, das quais e melhor não procurar provocá-las. Algo assim. Isso me lembra uma cena do Édipo Rei onde Jocasta, chocada ao notar que seu marido quer descobrir afinal qual é a sua origem. Com sua intuição feminina, ela diz mais ou menos a mesma coisa: pede para que o rei de Tebas desista de seus intentos.

Pois é interessante se notarmos que, tanto em Édipo Rei quanto em O Casamento, temos justamente essa questão. O protagonista decide desvendar um mistério, depois de instigado por alguém. Na peça de Sófocles, temos Tirésias. Ele e quem afirma: tu és o asssassino. No livro de Nelson Rodrigues, o amigo de Sabino, dr. Camarinha, revela um segredo: o genro do pai de Glorinha é um pederasta. Foi flagrado aos beijos com um ajudante do médico, Zé Honório.

A partir dai, ocorre um processo onde Sabino se vê numa situação de total estranhamento. Descobre que sua filha não ama o noivo de verdade - ama um outro (ela revelaria, no fim da história), seu genro é pederasta. Ao mesmo tempo, sendo considerado (pelo padre amigo da família) um homem "de bem" e, de fato, ele zela pela sua reputação que, ao longo da história, como se numa catarse proustiana, Sabino, em retrospectiva e em flashbacks, demonstre ser justamente o contrário.

Ele seduz a secretária, Noêmia. A convida para um programa numa garçonniere. Durante o encontro, ele inconscientemente declara que ama sua filha Glorinha; também revela, provavelmente influenciado pelo caso de Teófilo e Zé Honório, que teve um caso homossexual - que depois, diz à Noêmia que aquilo que ele disse era tudo fantasia.

Na trama paralela, Camarinha perde o filho, Antônio Carlos, num acidente que, na verdade, é um suicídio. Seu filho, arquetipicamente da geração "juventude transviada" (como eram chamados os jovens ricos que cultivavam uma espécie de hedonismo que, na maioria das vezes, ia parar nas páginas de polícia). Ele descobre, através de Glorinha, que ela fora deflorada por ele numa cena na casa de Zé Honório onde este, afrontando seu pai inválido, faz sexo diante deste, provocando a morte de sei pai. Nelson Rodrigues demostra que, confrontado com o beijo no consultório, a cena é naturalmente muito mais hedionda.

Como acontece em Édipo Rei, aos poucos, Sabino, o heroi, aos olhos do leitor, começa a cair vertiginosamente. Numa passagem, o Monsenhor (que, em seu papel de pároco, divertidamente mais parece uma mímese de rábula psicanalista) diz que, se não fosse nosso sentimento de culpa, estaríamos de quatro uivando para a lua (na verdade, essa frase é um dos leitmotif de Nelson Rodrigues em toda a sua obra).

Ao passo que Sabino é confrontado com todas essas situações, ele passa questionar não os outros, mas a si mesmo. No espelho, ele vê um ser hediondo. É quando Glorinha o convida para um passeio além da Avenida Niemayer (nos anos 50, a região de São Conrado e a Barra eram, como diz Ruy Castro, o paraíso do sexo á milanesa). Na praia, ela "seduz" o pai. Conta que sua mãe, Eudóxia, havia lhe dado um beijo de língua. Diz que ama um homem proibido. Súbito, Sabino beija a filha na boca.

Nesse meio tempo, na imobiliária, Noêmia, a secretária, é assassinada pela amante, Xavier, por ciúmes. Ele, mais tarde, mata a esposa e comete suicídio. Tudo isso às vésperas do casamento, que ocorre normalmente.

Porém, na noite anterior, aos outras filhas de Sabino, chantageiam o pai ao descobrirem um episódio do passado - que ele havia deflorado uma menina que seria a demoiselle na cerimônia, justamente a menina que ele implicara, chamando-a crualmente de "epilética" (fora justamente durante um desses ataques que ele teria abusado da moça).

No fim, o Monsenhor, que seria o padre do casamento, passa na casa de Sabino para avisar que não iria fazer discurso algum, mas diz, como um segundo Tirésias: todos devem assumir a sua lepra. E diz a Sabino: "assuma a sua lepra".

Ao descobrir que Noêmia havia sido assassinada, no último capítulo, Sabino, como um Édipo, assume a sua lepra. Existe um crime mas nao existe o algoz. Então, de forma surpreendente, como se culpado e julgando-se como tal, Sabino "assume" a autoria da morte da secretária. Mas o casamento, a despeito de tudo, acontece. Como diz um personagem do livro: "um casamento não se adia".

Sabino aqui parece funcionar como uma espécie de criminoso retroativo. Ao contrário de Édipo, ele não é o assassino de fato (como de fato já havia Sábato Magaldi analisado a forma como Nelson Rodrigues resolvia certas questões da tragédia onde não existia nessecariamente a mão de uma maldição de família ou do destino) mas decide, no fim das contas, escolher um falso cadafalso para onde possa finalmente expiar sua culpa ou, como diz o Monsenhor, assumir a sua lepra.

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