Monday, April 11, 2011

Cuesta Abajo


Caminito

Em lingüística existe o estudo de níveis de linguagem, que também é estudado por alunos de ensino secundário — pelo menos se os professores não pularem esse capítulo. Os maiores níveis de fala, o culto e o coloquial, são formados pela cultura inerente, pela formação escolar e recebem influência do grupo social a qual pertencem ou da situação em que a língua é utilizada. O nível culto é aquele que nunca usamos. O coloquial é o usado na conversação pessoal.

Deste, há uma variação, chamada “gíria”. Essa é a forma mais variável de todas, já que uma expressão pode sair de moda como uma roupa. Por exemplo, “sossega, leão”. Não existe nada mais obsoleto, hoje. Não confundir com jargão: essa é uma espécie de gíria técnica de cada profissão.

Existe a gíria dos políticos, dos punks, etc. Muito do léxico da gíria acaba se incorporando ao que chamaríamos de dicionário. É quando a palavra ganha notoriedade além do grupo restrito ou do sincronismo. Um exemplo de gíria muito interessante e que se perpetuou pela música popular, principalmente, é o Lunfardo.

O que é o Lunfardo? Segundo o falecido poeta, tradutor e pesquisador José Lino Grünewald, se trata de um subsistema linguístico que, pasmem, nasceu no meio marginal (a palavra “lunfardo” vem de lunfa, “ladrão”) que viviam na zona pobre da então europeizada Buenos Aires do começo do século XX.

Os sem-culotes, párias da sociedade, egressos do falido mundo rural que Jose Hernandez cantou em Martin Fierro . A Buenos Aires daquele começo de século também era um espaço urbano para onde arribavam estrangeiros de vários países: polacos, turcos, italianos, e franceses.

Com o tempo, surgiu a sociedade dos compadritos, ou seja, dos párias com ares de nobreza. Foi nesse caldeirão cultural que o Lunfardo nasceu.

O Lunfardo é, pois, um filho bastardo mas de parentalidade diversa. Para o também pesquisador, José Clemente, é um gênero metafórico onde a palavra inovadora (neologos) sempre busca se ligar a uma realidade sincrônica através de uma realidade sincrônica: ou seja, procura se conectar a uma vivência anterior conhecida, “de forma a se fazer inteligível”.

Pela imaginação do seu povo, ele também amalgamou elementos de muitos outros idiomas, inclusive o Português. O seu léxico também encontrava cognato no léxico de nosso país — além do argot francês e o slang inglês. De certa maneira, isso explica a popularidade da música portenha no Brasil.

Sendo oriundo de uma raiz marginal, o Lunfardo tem o objetivo de “esconder”, de ser ininteligível aos não-introduzidos.

A despeito desta ininteligibilidade, é muito comum que esta gíria seja utilizada originalmente para falar em encoberto, de modo a obter vantagem contra a Polícia — num jogo de cintura lingüístico típico de malandros, da malandragem. Vingou como um “falar” enigmático.

Frederico Cammarota se referiu à gíria potenha como um sistema fechado similar ao “dizer secreto dos sacerdotes do antigo Egito”. E quem detém a língua, detém o poder. Porém, a marginália de Buenos Aires não chegou a tanto. Contudo, se eles não dominaram a capital argentina, eles dominaram pela canção.

Os poetas, os letristas infiltrariam o falar dos “lunfas” através de suas canções. Foi através deles que ele se incorporou o espanhol falado no Rio da Prata.

José Lino elenca alguns exemplos: mate, significando cabeça; bobo por relógio (trabalha de graça); pelar, tirar dinheiro; mina, mulher, aquela que é explorada como se fosse uma mina de ouro; e para o cafetão, personagem perene das letras de tango, podemos listar: cafiolo, caralisa, cafisho (como em “Mano a Mano”), canfli, canflinero, cafriolo, além de cáften, entre outros.

Foi justamente no tango — originalmente uma música de pobres e que ganhou casaca e palheta com Gardel quando ele cantou “Mi Noche Triste” no sisudo Teatro Empire, no dia 14 de outubro de 1917. Foi Gardel quem tirou o tango da rua, e o transformou numa sólida instituição cultural que ganharia o mundo nos anos seguintes.

O tango deu uma seara ao Lunfardo, e se tornou a crônica daqueles dias. Muitas letras inesquecíveis no vasto território da música portenha são quase verdadeiros tratados de lingüística. Se a Gardel coube o fato de dar elegância e alma ao tango, os seus históricos letristas transformaram o gênero com figura de proa de um movimento que nascera das ruas e falava delas.

O curioso é que o estudante neófito na língua espanhola há de “boiar” no oceano de gírias que se infiltrou no cancioneiro guapo.

Um dos maiores compositores de tango (se não o maior), Enríque Santos Discépolo, enfeixava a gíria em suas canções. Como em “Chorra” (“chorro” é Lunfardo, que significa o ladrão que passa a perna, e a palavra nasceu gíria e hoje é utilizada largamente, como o povo argentino chamou o governo De La Rúa de ladrão ao impedir o saque aos bancos “chorro, donde está nosso ahorro?”), por exemplo:

Y he sabido que’el guerrero
Que murió lleno de honor
Ni murió, ni fue guerrero
Como me engrupiste vós
Está em cana, prontuariado
Como agente ‘e la camorra
Professor de cachiporra
Malandrín e estafador.


“Engrupir”, como no Brasil, significa passar a perna, “cana”, polícia, “engrupir”, adular, “camorra”, bando de marginais (como em italiano), etc. Ou na citada “Mano a Mano”, de Celedonio Flores:

Se dio el juego de remanye cuando vós, pobre percanta,
Gambeteabas la pobreza em la casa de pensón.
Hoy sós toda una bacana, la vida te ríe e canta
Los morlacos del otários los tirás a la marchanta
Como juega el gato maula com el mísero ratón.


“Percanta” é como se chamam as meretrizes em lunfardo. No mesmo sentido, “gambetear” é se esquivar. “Bacana” é o vida mansa; “morlaco” é o dinheiro. O “otário” é o revés (ou vesre, em Lunfardo, que também usa de anagramas para neologismos) do malandro, como se dizia no Brasil, nos tempos da malandragem.

“Marchanta” é golpe. Aliás, “mano a mano” é Lunfardo também, e quer dizer “de igual para igual. São expressões que se universalizaram pela música. Alfredo Le Pera, o parceiro musical de Carlos Gardel, era paulistano e também mestre no jogo de palavras, autor de “Mi Buenos Aires Querido”, “El Dia En Que Me Quieras”, “Amargura” e “Cuesta Abajo”. Mas o maior de todos é, sem dúvida, Enríque Discépolo.

Discépolo foi o cronista maior do tango. Fazendo uma tíbia comparação, eu diria até que ele foi o Chico Buarque da sua geração. Escreveu clássicos como “Yira...Yira”, “Victória”, “Malevaje” (populacho, bando de malevos), “Esta Noche Me Emborracho” e “Uno”, clássico dos clássicos.

Mas o Lunfardo também é poesia. De acordo com José Bacia, até meados dos anos 60 o gênero foi representado por poucos livros de menção, até La Crencha Engrasada, de Carlos de la Pua. Foi o divisor de águas, quando essa modalidade poética foi reconhecida como arte singular.

Em 1962, nasceu a Academia de Lunfardo que, segundo Grünewald, foi quem trouxe criatividade maior na dialética entre arte popular e imperativo estético, com direito a um manual sobre o assunto, Aprenda Lunfa Básico.

A seguir, um breve glossário:

Alpiste: álcool
Bagre: mulher feia
Biaba: assalto (vem do piemontês biava)
Cabrón: corno
Chafe: policial
Currar: iludir
Entregar la rosca: morrer
Escrachado: mal trajado
Farolar: administrar drogas
Forfai: sem dinheiro (oriundo do turfe)
Gamba: nota de cem pesos
Ganzua: pé de cabra (para gatunos)
Garufa: farra
Gil: otário (como em “Cambalache”)
Jerquear: gozar
Macanear: mentir, atochar
Manflora: veado
Matungo: cavalo ruim (como no Brasil)
Mishiadura: pobreza
Nieve: cocaína
Panaro: bunda de mulher
Percanta: concubina (do genovês percanta, princesa, ou alteração fonética da indagação per quanto?, que os imigrantes faziam às meretrizes na rua)
Porra: cabeleira
Orto: bunda
Puente: ladrão de carros
Quieco: bordel
Rechiflado: entrevado, abichornado
Shomer: miserável (do francês chomeur)
Tangata: recital de tango
Timba: carteado
Toquero: policial corrupto
Verano: vergonha
Vivanco: esperto
Yeta: azar
Yuta: cadeia
Zaranda: surra
Zorzal: cantor

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