Tuesday, April 19, 2011

Apartamento 1313

Batem a porta. Um homem de meia idade irrompe a sala escura, cruzando com certa dificuldade a distância do quarto até a entrada do apartamento, em direção à porta. Tateia o interruptor de luz enquanto destrava a porta. “Deve ser a vizinha querendo se livrar da santinha”, pensa. Ao abrir, dá de cara com um caveira grave, trajando uma longa mortalha negra e foice enferrujada na mão. A caveira fixa seu olhar cavo no homem, e exclama, como quem tivesse repetido a frase diversas vezes:

— Oi. Eu sou a morte e vim te levar.

Ele leva as mãos ao coração:

— É só o que me faltava!
— O quê?
— Eu devo ter esquecido de tomar o remédio para a isquemia.

— Do que você está falando?

Tentava se lembrar:

— Não, agora me lembro! Não pode ser! Eu tomei os remédios, não poderia morrer assim, nunca morrer assim!

— Não te falta mais nada, não. A tua hora chegou — respondeu o vulto.

— Mas! Mas eu tomei o remédio do coração agorinha, antes de jantar! — e gritando em direção ao quarto, ele pergunta à sua mulher: — Não tomei, Orlanda?

Sua esposa ruge alguma coisa do fundo do aposento:

— Viu? Tomei!

Encara a Morte, e diz, triunfante:

— Viu?

— É mas não adianta que eu vou te levar de qualquer forma. Você não tem nenhum poder contra mim.

— Ai, meu Deus! A minha mulher não vai gostar nada disso! Não, não! Mil vezes não! Logo agora que eu parei de pagar o meu seguro de vida porque tinha que cobrir aquela batida que eu dei na kombi no mês passado! Eu ainda estou pagando aquela velha desgraçada! Por que quem bate atrás sempre é culpado? Por que raios as coisas são sempre assim? Quando a gente menos espera, estas coisas acontecem!

— É.

— E meu filho? Meu único filho? Ele vai me perder justamente na época da sua vida em que ele mais precisa de mim, a senhora não pode fazer isso comigo, não pode fazer isso com ele, não pode fazer isso com a gente! Pense bem, pense! É muita injustiça. A senhora não percebe que está sendo injusta?

— Não — respondeu a Morte.

— E o meu sogro, coitado! Morreu no fim do ano passado, e foi aquele escarcéu no velório dele, a senhora não imagina que coisa! Quanto problema aquele homem ajuntou para a família dele quando ele morreu! Apareceu no cemitério todas as mulheres dele, amantes, filhos! Filhos que ele nem sabia que eram dele!

— Isso acontece.

— Duas delas, de luto do chapéu até os sapatos. E a guerra em busca da pensão começou ali, com todas aquelas viúvas, uma puxando o cabelo das outras, haja água de melissa para acalmar aquelas mulheres histéricas.

— Aí está.

— Veja a senhora! E o trauma daquelas crianças? A senhora faz idéia do desgosto de ver uma família dividida daquela maneira, e naquela hora extrema! Uma filha dele, a do primeiro casamento, sofreu tanto com a morte do velho que dizem que enlouqueceu, tamanho foi o trauma! E ele era saudável, não bebia, tinha sido remador quando jovem.

A Morte o interpelou:

— Não me diga que você...

— Eu o quê?

— Que você mais um filho da puta que tem uns casos por aí? Que vergonha, hein, meu velho? Olha que isso só vai complicar as coisas para você, depois...

O homem tomou conta de si:

— Nãããão! Eu não! Quem, eu?

— É.

— Olha, eu tenho um casinho — olha para o quarto e baixa a voz — mas tá tudo em cima, viu? Eu só preciso, eu só preciso de um pouco de tempo, pelo amor de Deus, se não é por mim, é por eles! Eles não merecem me perder desta maneira, eu sei como é, mas eles não sabem! E você sabe que eles não sabem, e você sabe que eu sei que eles não sabem!

— Paciência.

Olha, eu nem gosto das minhas am...das minhas outras mulheres. Quer dizer, gosto, mas não como a minha primeira. Na verdade, não gosto tanto dela como eu gostava antes, mas a senhora sabe como são os casamentos, o tempo passa, a gente vai se desacostumando com aquela vidinha romântica de antes, mas acho que o que salva o casamento são os filhos. Desde que não sejam muitos — e confidente: — Olhe, a senhora sabe que é assim, sempre foi assim. Todo mundo faz isso, por que eu deveria me culpar, por que eu deveria ser culpado por trair uma pessoa que não me quer mais? Tá me entendendo?

— Paciência.

— Como, paciência??? E quanto às minhas dívidas? Não posso morrer sem pagar as minhas dívidas, não posso morrer sem pagar minhas dívidas! Eu não quitei o carro ainda! E a lavadora de louça que eu dei de aniversário para a Orlanda? Faltam sete prestações!

A Morte tentou convencer:

— Aí, ó. É mais um motivo para partir. Aí você se livra destes problemas terrenos. Mulheres, crianças, dívidas. Dívidas e mais dívidas!

O homem já estava lívido:

— A senhora não entende? — diz o homem, esbugalhado de suor — Morrer assim é passar a perna nos outros!

A Morte era implacável:

— Mas ninguém está preparado para morrer. Quanta gente que morre e não tem tempo de arrumar as malas. E olha que nem precisa arrumar as malas.

— Mas eu vou complicar as coisas para os outros! Vocês precisam me dar mais uma chance, mais uma chance! Eu tenho que me redimir, tenho que saldar as minhas dívidas. Preciso de mais um emprego, preciso pagar o colégio do meu filho!

— Só um?

— Desse casamento, sim.

— Quantos são?

— Casamentos?

— Não. Filhos.

— Três. Um está na Índia.

— Índia? Aquele maldito país que ninguém mata ninguém, e só morrem por causa da monção e acidente de trem? Fazendo o quê?

— Ele é arqueólogo. Mas olha, isso não vem ao caso, o que vem ao caso é que eu não posso morrer deste jeito!

— É meu velho. Mas... — diz a morte, tamborilando as falanges ossudas na madeira da foice — você sabe que é assim que deve ser. Senão, ninguém partiria desta para melhor.

— Ó. Escuta só. Eu pago o meu seguro, vendo o carro, quito o apartamento, e depois que o meu filho menor entrar na faculdade, a senhora pode me levar. Pronto. Está bem assim? Hein?

— Você sabe que eu não posso regatear a sua vida.

— Por favor! Eu lhe pago o que você quiser.

— Me pague com a sua vida, que eu vim buscar.

— Por favor, tudo menos isso!

A Morte se enfureceu:

— Não. Mas Deixa de ser chato, homem! Que coisa! Fazia tempo que eu não levava alguém tão chato! Cacete!

— Tá bem, tá bem, eu paro de ser chato, mas por favor, me dá mais um tempinho só, pelo amor de Deus, BUÁ!



A mulher estranha as alterações de voz do marido à porta, e o interpela do quarto, num mugido:

— Querido, com quem você tá falando?

Caindo em si, ele percebe o escândalo ante aquela cena extrema. Olha para a Morte e se vira para trás, gritando com a voz pausada e firme:

— Não é ninguém, É o vizinho do 1313.

A Morte arregala os olhos cavos. Pergunta ao homem:

— Vizinho do 1313? Mas aqui não é o 1313??

Perplexo, o homem emenda, entre confuso e espantado:

— Não, a senhora pode olhar na porta. Aqui é o 1312.

— Oh! Que distração a minha. Me deram o papel e eu não vi direito. Bati na sua porta achando que estava no apartamento certo. Onde fica o 1313?

— É lá no fundo, do lado do extintor.


E foi embora, sem dizer adeus.

Assustado, o homem fechou rapidamente a porta, fechando as trancas como se escapasse das sete pragas do Egito. Sentiu vontade de chorar, mas não sabia se era terror ou alívio. Apagou a luz da sala, e voltou para a cama, onde a sua mulher fazia palavras cruzadas do jornal. Sem tirar os olhos do papel, ela pergunta:

— O que ele queria?

— O cara da porta? Queria, queria entregar a santinha do prédio. — disfarça o homem, fingindo a calma.
— Ué! Mas hoje não ainda não é o nosso dia! — exclama a mulher.

E ele, num cínico suspiro:

— Graças a Deus.

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